*Por Rafael Moura
Até hoje há narrativas que classificam as favelas e periferias como zonas de medo e carência, o que resultaria em uma produção simbólica pobre, sem levar em conta toda a complexidade destes territórios. Com o intuito de mudar essa realidade, o diretor Emílio Domingos fez uma imersão no cotidiano de jovens e adolescentes das favelas cariocas para o filme ‘Favela é Moda’. O longa aborda temas como representatividade, racismo, empreendedorismo, juventude e identidade cultural. E para coroar esse lançamento, no Canal Curta, o diretor convidou a pesquisadora de tendências Rafaela Pinah, diretora criativa do Coolhunter Favela para debater como essas regiões estão influenciando a sociedade e alterando as dinâmicas no mercado de moda.
“É importante registrar que esse novo ambiente sociocultural permitiu a ampliação da mobilidade simbólica”, pondera, acrescentando: “A internet inseriu as favelas no mapa e ampliou a construção de novas narrativas na cidade”.
O filme revela a força estética e política de jovens negros das periferias do Rio de Janeiro em busca de realização pessoal no mundo da moda. O documentário aborda a recente tendência do surgimento de agências de modelos nestas periferias e revela os dilemas, sonhos e desafios dos jovens em busca de visibilidade, distinção e ascensão social e nos apresenta uma geração que acredita na afirmação de identidades e sexualidades. O filme acompanha o desenvolvimento de modelos de uma agência que tenta reverter o cenário de sub-representação dos corpos negros e fora do padrão estabelecidos na moda. “Esse filme parte de uma imersão de quatro anos da agência Jacaré é moda. Comecei a filmar no meu aniversário, dia 12 de abril de 2015”, revela o diretor.
“Com as redes cada vez mais estamos podendo mostrar que ‘as periferias são grandes potencias que funcionam como zonas centrais, pois estão na centralidade das artes, de ações empreendedoras criativas, das invenções de relações que reforçam a convivência. Temos urgentemente que quebrar essas barreiras e essa visão distorcida que a sociedade tem sobre as comunidades”, enfatiza Rafaela. E completa: “Nós temos um apartheid social muito grande no Rio de Janeiro, fora a construção da dinâmica social que nos faz, naturalmente, excludentes. O que eu gosto de destacar nesse filme são as pessoas pretas preparando pessoas pretas para o mercado. Tentando quebrar esses lugar extremamente elitizado, visto que esses signos estão ruindo, ficando obsoletos”.
Com todos esses movimentos da cidade nós acabamos rompendo essas barreiras geográficas e Rafaela destaca ainda que o movimento negro vem abrindo as portas para outras construções estéticas e de moda que estavam acontecendo na cidade. “Meu grande romance com a Jacaré é moda começou com um evento na Lona Cultural de Realengo, bairro onde moro. Quando eu vi o filme fiquei muito emocionada por ver as nossas histórias sendo contadas, além da preocupação da inserção desses jovens no mercado. Eu fiquei encantada com a beleza e a estética que está dentro de casa dos personagens, que essa moda eurocêntrica por muitos anos preferiu esconder essas belezas ‘na cozinha’. Por isso acho importante esse filme. É um marco no rompimento dessas estruturas, pois levanta esses corpos para disputar o protagonismo com essa moda colonial em que conhecemos”, reflete a pesquisadora.
Domingues e Pinah concordam que ainda existem uma bolha muito forte para ser furada no mercado de moda. “Quando eu falo de periferias, eu friso as periferias mundiais, globais. O nosso olhar não se restringe apenas ao Rio, apesar das pesquisas serem mais focadas na cidade e como esse Rio de Janeiro se abre para o Brasil. É entender como essas limitações periféricas têm conexões. Quando viajo sempre tento passear, andar de ônibus, observar os locais que os moradores frequentam, não apenas os pontos turísticos e me deslocar para entender essa atmosfera”, frisa Rafa de Pina. O diretor corrobora com a opinião da profissional comentando que “a pandemia trouxe essa volta para casa, como uma conexão forçada e fomos impedidos de novo de acessar esses lugares, assim perdemos quando não conseguimos mais hackear os sistemas”.
O diretor comemora com orgulho o lançamento do filme que ganhou uma menção honrosa no Festival do Rio, em 2020, onde conquistou ainda o prémio de júri popular. O longa encerra a trilogia do corpo ao lado de ‘A Batalha do Passinho – O Filme’, de 2012 e ‘Deixa na Régua’, de 2016. “Eu como cineasta sempre volto minhas lentes para periferia porque, historicamente, é o lugar em que a cultura vive em ebulição no Brasil. É o lugar que nos deu gênios como Cartola, que só gravou seu primeiro disco aos 66 anos. Tento voltar minha câmera pra gênios da periferia, pra que novos Cartola não sejam reconhecidos só na velhice”, enfatiza.
Domingues revela que seu papel como uma pessoa não periférica é a não observação dessas regiões como algo exótico, sem a folclorização. “Eu sou filho de um porteiro, nascido na Tijuca, que morou em Del Castilho por alguns anos da minha infância. Frequentei muito Pilares, porque minhas tias de criação moravam lá e convivi durante muito tempo com essa realidade da Zona Norte, do Rio de Janeiro. Como narrador, a minha periferia é a dos meus personagens, das pessoas que filmo e das quais vou ao encontro e que convivo ao longo do processo dos filmes”, conta.
E acrescenta: “O ‘Favela é Moda’, meu filme mais recente, resultado de uma relação de cinco anos. O que me interessa é como essas pessoas vivem e criam estratégias e mecanismos para viver e como enfrentam os problemas da nossa sociedade. O que percebi foi que as comunidades são grandes potências criativas, pois esse processo de criatividade da periferia é algo que me interessa profundamente e acho que muito do que a gente tem como identidade nacional no país se deu por conta disso. É só olhar para o samba e as Escolas de Samba, que, apesar de toda a sofisticação, são manifestações extremamente populares. Se olharmos para os dias de hoje, temos o funk, que é o gênero musical mais popular do Brasil, surgido dentro das comunidades e com poucos sem recursos, mas que criou toda uma forma de lazer e de manifestação bem original”.
Aos 48 anos, o cineasta, cientista social, pesquisador e roteirista, mantém seu radar sempre atento, buscando o frescor e os bons ventos que trazem as novidades para a sociedade. Sua formação em antropologia lhe trouxe uma valorização do processo de pesquisa, do contato com o ambiente e do gosto pelo trabalho de campo, principalmente na convivências com as pessoas que acabarão se tornando seus personagens. “Tenho um processo que requer certo envolvimento e um tempo de pesquisa e conhecimento do modo de vida daquelas pessoas. Acho que isso tem muito de Antropologia e do princípio de alteridade que tento levar para os meus filmes. Isso pesa na valorização das narrativas que o outro tem a me render e a me dizer”, explica.
Já Rafaela acredita que ao mercado de moda brasileiro pouco evoluiu, mesmo depois de tantos discursos de inclusão e diversidade e muitos deles foram grandes jogadas de marketing para não perder vendas. “O despertar de moda nessa cidade é muito forte e pesado. O jovem da periferia, aqui, tem um grito no corpo, de forma estética que é muito diferente. Esse incômodo social, que muitas vezes ele nem sabe que tem, vai muito por uma coisa sonora. Esse corpo sempre está se fazendo presente de maneira muito rápida. Temos uma produção de manifestações de moda, cultural, muito mais rápida de que a maioria das cidades brasileiras. Eu ainda vejo um mercado muito excludente, com ‘pequenas rachaduras’ e que começa a absorver as belezas não eurocêntricas, de forma muito micro, se comparado com a nossa população. A sociedade vem tentando questionar de maneira afirmativa essa ausência de representatividade. Na verdade, essa moda não é inclusiva. Essa moda está preocupada com o mercado de consumo. Houve uma ascensão social e econômica da classe C. Ela se tornou um grande mercado consumidor e, logo, isso gerou uma pressão em relação à moda”.
E Emílio pontua: “Precisamos considerar que vivemos em um país em que mais de 50% da população é negra e parda e não se vê representada nos grandes veículos de moda. Essa disputa por esses espaços é uma disputa simbólica de representatividade. A moda, aqui no Brasil, tem uma imagem ainda muito voltada para uma estética europeia, infelizmente”.
No fim dessa conversa única, que foi uma aula sobre estética e novas narrativas, o diretor revela que já está trabalhando em um longa sobre o movimento Black Rio, ligado aos 50 anos da soul music, no Brasil. “É um projeto que eu já desenvolvo desde 2014 e vai contar um pouco do que foi essa cena musical, a partir da trajetória de um personagem, o videomaker e produtor de bailes soul Dom Filó, que vai se chamar ‘Black Rio, Black Power'”. Esse movimento, de origem negra, foi uma das grandes inspirações para o surgimentos dos nossos bailes funks. “Tenho, ainda, um projeto de série de oito episódios, chamado “Embraza”, sobre danças tecnológicas da periferia do Brasil, no qual abordo diversas danças, como o passinho, o treme no Pará, o brega funk. É um mapeamento dessas manifestações que surgiram a partir desse desenvolvimento tecnológico da música”.
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