Marieta Severo está em filme sobre a luta contra o câncer e fala de liberdade na maturidade e como mantém um teatro


A atriz atua no longa-metragem “Câncer com Ascendente em Virgem” ao lado de Suzana Pires, que tem como base a história real da produtora do filme, Clélia Bessa, que enfrentou um câncer de mama. Marieta também descobriu, ano passado, um câncer no endométrio. Refletindo sobre o envelhecimento e a perda de seu marido, o diretor Aderbal Freire Filho, ela valoriza a introspecção e o tempo em família. Ícone na TV, no cinema e no teatro, Marieta é sócia de Andréia Beltrão no Teatro Poeira e no Poerinha, no Rio, reforçando o compromisso com a cultura e a educação artística. “Nós somos duas mulheres que estamos mantendo há 18 anos teatro, tirando o dinheiro do nosso bolso, todo mês”, revela

*por Vítor Antunes

Marieta Severo esteve presente nos momentos fundamentais da arte contemporânea do Brasil. Em 1979, quando o cinema nacional tentava realizar algo fora da pornochanchada, ela fez uma participação em “Bye Bye Brasil“, filme elementar da cinematografia brasileira. Quando em 1994 ninguém acreditava que fossemos conseguir voltar a produzir cinema em decorrência dos frangalhos da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme), Marieta interpretou Carlota Joaquina (1775-1830), no longa homônimo, que é tido como célula mater da retomada. Agora, a atriz volta aos cinemas falando de câncer de mama, em um papel de destaque. No longa “Câncer com Ascendente em Virgem“, com direção de Rosane Svartman, a atriz vive Leda, uma mulher mística e conectada com o sagrado, que precisa lidar com o câncer da filha, Clara (Suzana Pires). “O filme se propõe a nos colocar como contadores de histórias que abrem espaço de conhecimento. O câncer é um estigma da minha geração. Antigamente sequer se falava a palavra “câncer”. Dizia-se que a pessoa estava com “aquilo”, ainda assim em voz baixa. O preconceito alimenta o estigma, a ignorância. O longa tem por base a história real da produtora do longa, Clélia Bessa. Ela teve um câncer de mama e o filme mostra como enfrentou a doença de uma forma forte, corajosa, generosa, especialmente para mulheres que estão na mesma situação que ela esteve”, analisa Marieta, que, no ano passado, também descobriu um câncer no endométrio.

E, na vida pessoal, apresenta o destemor como uma de suas maiores características. Viajou para Paris sozinha, quando se deu conta de que estava pela primeira vez depois de anos, “sozinha”. O marido, Aderbal Freire Filho, grande diretor, ator e apresentador, morreu ano passado depois de sofrer complicações complicações no estado de saúde deste 2020, quando teve um AVC hemorrágico. “Hoje eu começo a vislumbrar essa possibilidade de eu-sozinha. Comecei esse aprendizado. Pela primeira vez na minha vida, aos 78, eu estou me permitindo uma certa tranquilidade em trabalhos. Isso num tempo em que a gente não tem como dar conta de tudo, especialmente eu, que sou ávida por informação, em diversão, por séries… Gosto muito de tudo e procuro ter a cabeça ativa, pensante, veloz”.

Marieta Severo e Suzana Pires em “Câncer com Ascendente em Virgem” (Foto: Mariana Vianna)

ENTRE OS GODOS E AGADIR

Estou liberando as minhas emoções e elas são construtivas para a criança que há em mim“, disse Marieta há 50 anos, em entrevista à Manchete. Qual era essa “criança interior”? A que habita o coração de um artista e resiste até hoje com a atriz, ou Luísa, sua filha terceira filha do casamento com Chico Buarque, nascida pouco tempo depois desta entrevista, dada para o lançamento de “Titus Andronicus”, de Shakespeare, no qual Marieta vivia a rainha dos Godos.

Usamos este paralelo para abordar a viagem de Marieta para a Europa e ela nos conta: “Pela primeira vez na minha vida, depois de vivenciar uma situação extrema de lidar com o AVC do Aderbal durante três anos, ter um hospital montado na minha casa, sabendo que ele não iria se recuperar. Depois de quase um ano da morte dele, foi como se eu precisasse dar uma uma parada e me permitir a isso. Eu sempre trabalhei muito a vida inteira. Sou de uma geração que fazia teatro de terça a domingo com peças enormes. Sempre estive casada e com filhos. Fiz 78 anos e estou  num momento de vida onde posso permitir uma conexão comigo mesma em outros lugares, de estar com a minha família, de passar 22 dias fora do Brasil indo a exposições, óperas, balés em Paris …”.

“Pela primeira vez na minha vida, aos 78, eu estou me permitindo uma certa tranquilidade em trabalhos” (Foto: Leo Aversa)

Sobre a passagem do tempo e a consciência do amadurecimento, Marieta diz que administra o que lhe é permitido ter nas mãos. “O corpo não é mais o mesmo. Há de se lidar com isso. Eu sou uma pessoa que fez exercício a vida inteira, que é viciada em trabalho de corpo – já que eu queria ser dançarina -, então eu estudo dança e continuo me movimentando. Mas nada funciona mais da mesma maneira. Temos que aprender a lidar com os limites, ainda que eu tenha muita energia. Tem vezes que o meu corpo tá pedindo arrego e eu preciso dizer “calma, Marietinha, sossega um pouco”. Eu sou uma usina de energia e de curiosidade, de vontade de aprender e isso me guiou a vida inteira. Esse ímpeto é para mim uma mola propulsora. Olho a vida com desejo”.

O tempo está aqui, na minha frente. A consciência da morte está aqui na minha frente. Eu procuro lidar com isso – especialmente depois da morte do Aderbal tudo isso ficou muito mais presente, mais concreto. Ele era alguém muito atento à vida social e política, um grande companheiro e isso me deu uma consciência da precariedade que é viver  – Marieta Severo

Marieta: “A perda de Aderbal me fez ter consciência da precariedade da vida” (Foto: Leo Aversa)

Sobre a febre das redes sociais, Marieta afirma que “a tecnologia se estabeleceu e de uma maneira avassaladora com a qual todos nós teremos que lidar da maneira mais positiva, construtiva, útil e com regras, já que é um terreno que tende a ser amoral, a não ter sentido ético nenhum”.

Acho uma tristeza que a juventude leia pouco por estar muito ligada ao celular – Marieta Severo

Muito amiga de Leila Diniz (1945-1972), Marieta fez com ela novelas como “Sheik de Agadir” e “Anastácia, a Mulher sem Destino”, das quais falamos recentemente aqui no Site Heloisa Tolipan. “Tínhamos uma relação de irmandade  mesmo. Não sei pensar como seria a Leila agora, com quase 80 anos, neste tempo. Não consigo pensá-la idosa, com rugas. Penso somente na imagem dela jovem, como conheci, como uma mulher libertária. Por um lado, penso que ela estaria muito contente pelas conquistas da mulher e pelas mudanças reais de comportamento. Por outro lado uma tristeza profunda com uma onda conservadora que reza que a  mulher deve ficar em casa e tomar conta do seu marido – algo que parece coisa de uma geração anterior a minha”.

Em “Anastácia”, novela famosa pelo caos da audiência que acabou resultando num terremoto que dizimou os personagens – inclusive o de Marieta -, os atores acabavam se divertindo pelas loucuras escritas não apenas pelo autor Emiliano Queiroz (1936-2024), como por Gloria Magadán (1920-2001). Para ilustrar o terremoto de “Anastácia“, a câmera tremeu no rosto de Marieta. E, segundo ela, os atores não se restringiam a fazer as cenas. Pelo contrário. “A gente não lutava contra o texto não. Estávamos contando uma fantasia, não era algo menor. Era algo como Sherazade. Era divertido fazer as novelas em razão do texto da Gloria ser meio poeticoso. A gente acabava de fazer a cena e se matava de rir por que ninguém havia entendido nada, tudo era bem absurdo. Inclusive gravávamos cenas do deserto na Restinga da Marambaia”.

Marieta Severo e o elenco de “Anastácia” (Foto: Divulgação/Globo)

O TEMPO E A FÉ NA VIDA

Quando perguntada sobre religião, Marieta pontua: “Não tenho religião. Se eu for falar sobre tê-la, o mistério que mais me atrai é o candomblé. Eu estudei, fui criada na igreja, fui batizada na igreja presbiteriana e estudei no Colégio Metodista Bennett. Talvez por ser uma jovem muito libertária, querendo quebrar estigmas e padrões, vi que a igreja tinha muitos dogmas. Porém, se eu entro em uma igreja, se toca um órgão, eu tenho uma sensação de um mistério, mas não tenho a menor necessidade de formalizar isso. Sou muito pouco ligada na religiosidade. Acredito ter meus pés fincados no chão. Mas reconheço ter algumas transmissões de pensamento, de percepções. Há um mundo misterioso aí que eu acho fantástico, mas não tenho uma atração para ele a ponto de criar ligações, como ter que acender uma vela, por exemplo. Até por que há um risco iminente de eu acabar por queimar a casa”, diverte-se

Ainda muito lembrada por seu icônico papel de Dona Nenê, personagem da série “A Grande Família“, Marieta revela o quanto a personagem ainda ressoa entre os fãs. “Dona Nenê tem um lado muito precioso de mulher. Ela exercia ali dentro daquela casa. Então, ainda me chamam muito por seu nome. Muitas pessoas se identificam com ela, que é muito, muito querida. Era um programa de muita qualidade aquele, muito bom, e é impossível me desvincular da imagem dela. E eu acho um personagem delicioso. A base dela era o amor, a compreensão”.

Além de atriz, Marieta é também uma das sócias do Teatro Poeira e do Poeirinha, espaços de referência no cenário cultural carioca. Ao comentar sobre seu envolvimento com os teatros, ela destaca o desafio de mantê-los ao longo dos anos: “O Poeira e Poeirinha são dois teatros que estão no momento com quatro peças e que me ocupam muito. Ao qual eu me dedico fazendo a curadoria que o Aderbal fazia junto com a Andréa Beltrão e comigo, e que agora ficou mais por minha conta, e eu tenho maior orgulho do que a gente faz lá. Nós somos duas mulheres que estamos mantendo há 18 anos teatro, tirando o dinheiro do nosso bolso, todo mês. É o meu projeto principal de vida esses dois teatros, e eu acho que conseguiram um espaço de cultura, de respeito, de cultura teatral e tudo muito grande no Rio.”

Marieta Severo se mantém como um farol da cultura brasileira, resplandecendo a passagem do tempo com coragem, humor e uma sensibilidade muito grande. Com os pés fincados no presente e a mente a desvendar o mistério da existência, ela acolhe o passado sem nostalgia, mas com uma gratidão consciente. É uma mulher que não foge do peso das escolhas, que caminha pela arte e pela vida com a mesma avidez com que explora o mistério de si mesma. Ao lado de suas personagens inesquecíveis, dos palcos do Poeira, ela revela o desejo eterno de conhecer, de rir, e de continuar o caminho. Entre as nuances do tempo, Marieta permanece, à frente do nosso olhar e da própria trajetória, com a simplicidade e a profundidade de quem, aos 78 anos, ainda olha a vida com o desejo inquebrantável de aprender.