*por Vítor Antunes
Artista múltiplo, Rafael Cortez revelou-se ao grande público no CQC, programa exibido pela Bandeirantes entre 2008 e 2015. Em razão de haver ficado vários anos no humorístico semanal da Band, Rafael afirma que o programa foi definitivo em sua carreira. “Foram 15 anos tentando um lugar ao sol no mercado artístico”, e que o sucesso revelou-o para o Brasil. Contudo, lamenta que o rótulo de ex-CQC seja ambivalente. O programa me jogou numa condição de figura pública, eu fiz um sucesso estrondoso de uma hora pra outra (…), mas, às vezes, eu desconfio que ninguém vai me chamar fazer uma novela, por exemplo, enquanto não me dissociarem do CQC. Eu adoraria fazer, já que também sou ator. Além disto, há os eventos corporativos. Tem gente que teme colocar a mim no palco por me associar ao programa, são temerosos que eu ‘vá falar alguma merda, porque o fulano que trabalhou com ele fez e o cicrano que é ex-CQC também foi processado’, salienta.
O humorista, que também é músico e ator, saiu, recentemente do “Matéria Prima”, da TV Cultura e repetiu a mesma fórmula do programa num canal na Internet. Além disto, o artista seguirá fazendo palestras Brasil afora, abordando especialmente os desafios do mundo corporativo. Os seminários “Atitude Transformadora” estão às raias de virar um livro, o terceiro de Cortez.
Diante de uma carreira volumosa, com várias frentes de trabalho, talvez aquela na qual Cortez mais esteja realizando-se seja a paternidade, que chegou tardiamente – em suas palavras – aos 45 anos. O artista é pai de Nara, de 7 meses, que encheu de ternura o paulistano workaholic. “Eu estou adorando esse lado pai”. Assinala que a chegada do bebê também mudou o tom das suas piadas. “Um dia a minha filha vai ver que o pai dela aos 46 anos ficava gemendo em cima de um palco, apelando pra fazer comédia. Tirei toda uma sequência do show, não por moralismo barato, (…) mas pela perspectiva de a minha filha ver algo assim um dia. Prefiro não fazer”, diz.
O HOMEM DE PRETO
No final da década de 2000, o CQC estreou na TV Bandeirantes. Sucesso de público, especialmente por sua estrutura transgressora e propondo-se fazer um jornalismo ácido e irreverente mesclado ao entretenimento, o show revelou profissionais como Rafinha Bastos e Danilo Gentili, além de solidificar a já longeva carreira de Marcelo Tas. Dentre eles, Rafael Cortez. Para este último, o extinto programa da Band não apenas revolucionou aquela geração, mas também a ele. “O CQC me transformou em tudo, foi um grande divisor de águas da minha vida e da minha carreira. Primeiro por haver redimido a minha história e as milhares de humilhações que eu tinha vivido”, afirma.
Foram 15 anos tentando um lugar ao sol no mercado artístico, sendo de ventríloquo a Bruxa Malvada do Oeste do “Magico de Oz” e tentativas de fazer novela, de fazer comerciais, de furar aquela panelinha desgraçada. Nunca tinha um lugar pra mim. Me descobri artista aos 17 anos e somente aos 31 é que fui ter uma grande oportunidade, justamente através do programa – Rafael Cortez
Segundo Cortez, “o CQC me jogou numa condição de figura pública. Eu fiz um sucesso estrondoso de uma hora pra outra. Num dia eu estava parcelando uma viagem em 10 vezes e no outro, recebendo um prêmio de melhor jornalista de TV do ano, no Copacabana Palace e tomando champanhe com Patrícia Pillar. O programa me permitiu conhecer eventos que eu só conhecia da televisão. Fui ao Oscar, ao Festival de Cannes, de Veneza, para as 500 milhas de Indianápolis, cobri a Olimpíada em Londres… Ganhei também um título de cidadão do mundo de certa maneira”, relata.
Todavia, estabelece um contraponto: “Hoje eu percebo uma coisa difícil de ser um ex-CQC que é o rótulo. Acabou em 2015 o programa, mas tem uma força grande ainda. Eu sou um ex-CQC que não tem um único processo. Fui o mais buena onda do programa. Não tenho nada que me desabone. Mas esse aspecto negativo da referência de outros colegas do CQC, de outros episódios, também pesa”.
Ainda sob a perspectiva do ator, faz falta na televisão os programas de humor. E, em sua ótica, muito se deve ao temor do cancelamento. “Não tem um projeto assim, como o CQC, na TV aberta hoje. É frustrante saber que apesar de tudo o CQC não teve descendentes. Um programa que aprendeu tanto com o Ernesto Varela, perosnagem do Marcelo Tas, e com a TV Pirata e que veio com os dois pés no peito da sociedade, mostrou um tipo de comédia e de abordagem que deveria permanecer, mas não tem nada”.
“O humor está completamente acovardado em 2023. A maior emissora do país não tem um núcleo de comédia pra chamar de seu. Mesmo com talentos como [Marcelo] Adnet, o Paulo Vieira, a Tatá Werneck. Ela e Fábio Porchat fazem um programa multiplataformas, mas um programa assim, e esquetes, um programa de abordagem jornalista, de situações, de dramatizações engajadas, não tem, acabou. As TV’s, especialmente elas, estão muito acovardadas com o politicamente correto, com a patrulha do cancelamento, com medo do patrulhamento ideológico. E nesse sentido ninguém aprendeu nada com o CQC – Rafael Cortez
Ele prossegue em sua análise: “Se o CQC fosse pautado por seus temores ele não faria o barulho que fez. E seus maiores temores em 2008, 2009 eram todos de ordem jurídica. Chegou a ser um dos programas mais processados. Tudo era motivo de processo. E os argentinos que idealizaram o programa, assim como a própria Bandeirantes se acovardaram? Não! Bancaram! Compraram o barulho. Dá pra fazer comédia em 2023. Eu mesmo não parei em nenhum único momento da minha carreira, desde que eu comecei no CQC. A necessidade de se ter um programa fazendo uma abordagem satírica, ácida, questionadora, maluca, intrépida no atual momento não sai de moda nunca e é uma pena que não tenhamos um projeto assim hoje”.
O ex-repórter-de-preto, porém, faz uma autocrítica ao extinto programa.“Eu não sinto falta do humor do CQC, acho que ficou defasado. Era algo bastante tóxico, digamos assim, em se tratando da masculinidade. Volta e meia vejo algumas matérias minhas muito do começo do programa e fico chocado com algumas piadas. E mais: chocado de ver como as pessoas riam daquilo. Porque se a gente fazia aquelas piadas é porque elas tinham lugar de fala, uma aceitação na sociedade daquele momento. Os microfones da plateia ficavam ligados, então há uma claque natural de pessoas que estão adorando aquelas piadas”.
Não é que a gente era machista, misógino ou babaca. A gente fazia um humor que tinha aceitação por parte da sociedade. O CQC foi de um humor moleque, de um humor de quinta série, e as pessoas adoravam. Mas as temáticas humorísticas do show estão ultrapassadas e que bom que nós evoluímos, todos nós inclusive. Desde os integrantes do CQC até a sociedade, todos nós – Rafael Cortez
MATURIDADE
Aos 46 anos, uma das pautas debatidas no seu stand-up comedy, “O Homem Nu”, trata, justamente, sobre a passagem do tempo e o amadurecimento. “A idade me assusta mais em função do comportamento da sociedade. Eu mesmo me acho mais bonito com 46 anos do que era com 34, 35, época em que eu fazia um esforço gigantesco pra ficar bem. Ia pra academia direto, cheguei a por botox, fiz implante capilar, tomava suplementos, ia direto no dermatologista, fiz peeling… É curioso, porque é uma fase na qual eu investia mais nisso. Estava galgando carreira como apresentador na RecordTV, na Globo, e acho que tudo isso me fazia levar muito mais a sério esteticamente. E o meu corpo funcionava relativamente melhor do que agora. Eu tinha mais disposição, era mais magro. Mas eu me sentia pior do que eu me sinto hoje assim”.
Estou com 46 anos e não faço nenhum procedimento. Assumo todos os meus fios de cabelo branco. Nunca mais vou por um Botox na cara! Adoro as minhas rugas porque elas são uma expressão do comediante que eu também sou. Cada ruga minha é uma expressão facial que eu uso e abuso no palco. Ela se comunica com a plateia. Eu não me sinto mal de estar envelhecendo, o que eu acho o apavorante é que a sociedade não gosta de pessoas velhas – Rafael Cortez.
Enfatiza ainda que “as pessoas são escrotas com os que envelhecem. A sociedade é apaixonadas por juventude de modo que comportam-se de forma nojenta com os mais maduros. Eu falo, então, sobre as coisas leves de ser um quarentão. Sobre como a gente começa a ficar mais rabugento, falo da andropausa que acaba rendendo umas coisas engraçadas como a queda da libido. Essas temáticas são divertidas pro comediante e pra plateia, que se identifica. Para mim, o desafio da maturidade é se fazer atraente, importante, altivo e valoroso para com a sociedade etarista”, frisa.
PATERNIDADE
“Filhos. Se não tê-los, como sabe-los?”. Esta pergunta, um trecho de – “Poema Enjoadinho” de Vinícius de Moraes (1913-1980), revela que ter um filho é algo surpreendente. Muito possivelmente, Rafael faria coro ao poetinha. “O meu grande projeto pra 2023 começou ano passado: É a Nara, minha filha. Ela está com oito meses, uma bebezinha linda. Sou muito apaixonado com a ideia de, finalmente, ser pai. Eu fui um pai tardio com 45 anos. Fui conhecer a minha companheira com 42 eu estou adorando esse meu lado mais humano, porque eu sempre fui muito workaholic, sempre trabalhei muito. E a chegada dela mudou tudo na minha vida e quase tudo pra melhor. Eu digo quase tudo porque meu sono piorou, eu durmo menos e acordo mais vezes durante a noite”, analisa, com bom-humor.
Sobre a pequena, “Rafa” diz que ela o “trouxe muitas percepções, me fez descobrir um ser humano mais tolerante. Eu relativizo mais as coisas, eu não deixo que os problemas que antes eram enormes na minha vida, continuem me tomando de assalto. Eu sempre fui muito passional, muito fatalista. Se eu recebia uma rasteira de algum contratante ou tomava uma invertida na vida profissional eu sofria muito mais. Agora as coisas são relativas, exatamente por que a tenho em minha vida. Às vezes eu acho as coisas difíceis da carreira, as durezas, fico desapontado com alguma coisa que aconteceu ou que fizeram comigo e aí olho pra cara da minha filha e ela está sorrindo pra mim, apaixonada, e tudo se torna pequeno”.
O artista confidencia uma história particular de quando era jovem e “desde muito cedo eu sabia que eu teria uma filha e ela se chamaria Nara. Quando a Marcela [Calhado, sua esposa]engravidou, eu comecei a receber feedbacks de amigos de escola, que diziam que eu, muito pequeno, falava que teria uma filha com esse nome. Então, é uma conexão de outras vidas. É uma conexão de outras histórias assim”.
E para um humorista, tudo é piada? Não necessariamente. “O fato de eu ter uma filha não me faz criar piadas sobre ela, que não é citada no meu show. Ela é muito sagrada pra mim e eu acho que a comédia, tem um lado meu profano, um lado meio sacana. Uma vez que a gente coloca alguma coisa no palco, na figura do comediante de stand-up isso acaba ficando um pouco manchado e eu tenho tanto respeito pela minha filha que eu não consigo fazer piada dela. Não consigo. Tentei uma coisinha ou outra, mas eu me sinto meio babaca. A paternidade ocupa um lugar muito sagrado no meu coração”, relata.
Aliás, o comediante, aponta, outrossim, que “A chegada da Nara me fez pensar muito mais no tipo de comédia que eu estou fazendo. Havia em meu show uma sequência inteira sobre sons no sexo, que as pessoas adoravam, e que há muitos anos eu fazia nos meus solos. Desde que a Nara nasceu eu fazia essa sequência e ia embora meio mal. Pensava: ‘Pode ter alguém filmando isso. Um dia a minha filha vai ver que o pai dela aos quarenta e seis anos ficava gemendo em cima dum palco apelando pra fazer comédia’. Aí eu tirei toda essa sequência e não por moralismo barato, mas porque na perspectiva da minha filha ver algo assim num dia [pode constrange-la]. Eu prefiro não fazer. No lugar dessa sequência do sexo, eu coloquei o meu violão com uma esquete musical que me agrada mais”.
Além do “padrão pai” o ator dará prosseguimento aos seus projetos como palestrante e shows de humor. Comemorando quinze anos como stand up-comedian, está em cartaz com “O Homem Nu”, show solo com o qual rodará o País, além de ministrar as palestras chamadas “Atitude Transformadora”, na qual volta-se para o mundo corporativo e a importância de iniciativas que unem intrepidez e ação no mundo dos negócios. “ É o grande projeto da minha carreira corporativa e dessa palestra está nascendo o terceiro livro da minha vida, que vai gerar um livro homônimo”. Até o início deste ano estava na TV Cultura de São Paulo, da qual apresentava o programa “Matéria Prima”. Ainda que tenha deixado a emissora educativa, seguirá com um projeto semelhante àquele, mas na internet, de maneira independente no seu canal do YouTube com co-transmissão nas redes sociais e nas redes sociais as patrocinadoras.
ASCENDÊNCIA
O sobrenome não é por acaso. Rafael Cortez é parente de Raul Cortez (1932-2006). Ator tão representativo das artes brasileiras que, mesmo falecido há 17 anos, está no ar em duas novelas – “O Rei do Gado” (1996) e “Senhora do Destino” (2004), na Globo e no Viva, respectivamente – e nesta semana teve mais uma obra sua, inédita, disponibilizada no Globoplay: “Partido Alto” (1984) a qual deu vida ao bicheiro Célio Cruz. Raul é sobrinho do avô paterno de Rafael. Além de Raul, o irmão de Rafael, Leonardo, também é ator. E há em seu seio familiar, músicos, escritores… De modo que a manifestação artística chegava a ser algo digno de forte auto cobrança.
Sobre sua relação com o icônico ator intérprete de Jeremias Berdinazzi, “Rafa” diz “Meu avô paterno, foi muito importante pra carreira do Raul, porque o pai do veterano não apoiou sua carreira. Tinha muitas ressalvas e preconceitos com a história de um filho ser artista, algo que reproduzia um padrão daquela época retrógrada e conservadora dos anos 1940. Meu avô deu todo apoio para o Cortez, que tinha-lhe muita consideração. A única vez que eu de fato estive com o famoso artista foi no velório desse meu avô, em 1996, auge d’O Rei do Gado. O velório parou. Chegou a ser engraçado porque ficou todo mundo voltado para Raul. É uma pena que a nossa família não tenha conseguido aproveitar da sua presença senão como artista. O Leonardo Cortez, meu irmão, tem uma história bonita com o Raul. Já próximo de seu falecimento ele ligou para Leo a fim de dizer que tinha lido um texto seu e gostado. Foi uma coisa redentora. Eles tiveram uma conversa muito legal, muito proveitosa, mas ele morreu pouco tempo depois”.
A citação incidental a Vinícius de Moraes se dá por uma de suas amigas ser, justamente, Nara – eternamente – Leão. Mesmo nome da filha do humorista personagem central desta matéria. Vinícius de Moraes teve cinco filhos. E a eles dedicou alguns versos, como o “Poema Enjoadinho”, aqui referenciado. Outro, foi gravado e musicado por Toquinho. Diz que “É comum a gente sonhar, quando vem o entardecer. Pois eu também dei de sonhar um sonho lindo de morrer. Vejo um berço e nele eu me debruçar, com o pranto a me correr. E, chorando, acalentar o filho que eu quero ter”. Muito querida, tal como a lágrima que o poeta derramou, Nara é, para Rafael, a tradução do quanto o amor é cortês.
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