*por Vítor Antunes
“Um porteiro baixinho, de fala arrastada e folclorizada, atarracado, chamado Ribamar. Ou é Severino? “. A frase anterior define bem a típica estereotipificação a qual os atores nordestinos costumam ser alvo. Não é difícil pensar em personagens que, na teledramaturgia brasileira obedecem a esse perfil. Não há recorrência nas novelas de personagens que sejam daquele pedaço do Brasil e que não caiam nesse lugar comum. Mais que isso, não há a crença que personagens com acento não possam ser outra coisa senão cômicos ou estarem fora de uma profissão subalternizada. Cearense, Rafael Aragão estará em dois espetáculos que voltam ao cartaz e que farão turnê pelo Nordeste. Um deles é o “Sílvio Santos Vem Aí”, e o outro é “Ney Matogrosso”. Em fevereiro começará a ensaiar “O Adorável Trapalhão“, montagem biográfica em homenagem ao ator e humorista Renato Aragão, na qual será protagonista. “O Renato e o Didi são duas figuras diferentes. Está sendo um desafio. Montar o espetáculo vai me exigir um exercício de palhaçaria, além da responsabilidade de fazer uma grande celebração à carreira e vida do Renato, que é um gigante. Renato e eu temos a mesma escola, as mesmas iniciais e sobrenome, e na primeira reunião descobrimos um grau de parentesco que não sabíamos”, relata.
Eu tenho vontade de fazer um personagem nordestino, não por ser um lugar confortável, mas para mostrar que o Nordeste é plural e nossos sotaques são diversos (…). Queria muito ter feito o Cine Holliúdy ou algo semelhante, por exemplo. O humor cearense é assim, ligeiro. O Brasil é tão continental que tem que ser levado todo tipo de humor produzido aqui – Rafael Aragão
O ator relembra que o início de sua carreira foi difícil em São Paulo justamente por não obedecer a esse estigma e ainda ter sotaque. “Estou em São Paulo há quinze anos e foi muito difícil pra mim no começo. Havia na classe artística uma certa visão de que o sotaque nos limitava. Se tentasse fazer uma participação em um trabalho, negavam dizendo que um advogado, médico, ou jornalista não podiam ter sotaque. Caberia o acento apenas para alguma profissão menos favorecida. Ou me negavam o papel por eu não ter ‘cara de nordestino’. O meu sotaque foi sendo neutralizado”.
Eu tenho essa força e vontade de colocar o Nordeste protagonista. Uma montagem como esta, baseada na biografia do Renato, só faz sentido se tiver uma equipe nordestina. Muito da vivência do Renato no quartel ganhou as telas – como o nascimento do Sargento Pincel e o Cabo 49. Esse cara que sai do Ceará, chega ao Rio e conquista o pais inteiro tem que ser contada por olhos nordestinos – Rafael Aragão
A DIGNIDADE DO PALHAÇO
“Desperte em você essa lembrança, Vem comigo ser criança, na carona da ilusão” dizia o samba da Unidos do Cabuçu, de 1988. A humilde escola de samba do bairro do Lins de Vasconcelos, e que hoje está situada no Engenho Novo, homenageou os Trapalhões naquela ocasião. Os personagens eram sucesso absoluto, e há muitos anos, tanto na televisão como no cinema. Até hoje, o desfile da Cabuçu – e os Trapalhões – residem no imaginário afetivo de quem (con)viveu aquela época.
E é apostando justamente nessa verve que Rafael Aragão trará aos palcos “O Adorável Trapalhão“. Montagem biográfica que trará não apenas Didi Mocó, mas também o Sr. Renato. Sim, são pessoas diferentes – e não por conta da antipática lenda de que o humorista exija ser tratado por seu nome de batismo – mas por conta de Renato e Didi terem tessituras, registros e energia opostas. E, não obstante, Rafael e Renato descobriram ter algum grau de parentesco.
Então, coube aí até outra forma de tratar o icônico ator: “Renato foi extremamente carinhoso, preocupado. Acostumamo-nos a ver o Didi na TV, e como eu sou ator, sei que as pessoas são diferentes dos seus personagens. Ele e eu trocamos uma ideia, ele perguntou de onde era, e eu disse ser de Fortaleza, falei-lhe da minha família e nos descobrimos parentes. Falei a ele “Não sei se te chamo de Renato, de Sr. Renato, ou de alguma outra forma’. E ele respondeu: Chama como quiser, meu sobrinho'”. Além de Renato Aragão, Rafael tem um grau de parentesco com a atriz Mariana Ximenes.
O ator também salienta a receptividade de Lílian Aragão e sua filha, Lívian. “Lílian foi muito simpática e acolhedora, me convidou a ir a casa deles – e fomos eu e Zé Possi Neto, o diretor – apresentamos o projeto a ela, que disse haver gostado e que nos apresentaria ao Renato”. O ator estava vendo um jogo de basquete quando os dois chegaram e ao fim da partida houve o encontro. “Nesse meio tempo, Lílian disse que já havia procurado tudo a meu respeito, conhecia minha carreira, e Renato também falou o mesmo, revelando uma pilha de projetos que havia recebido. De lá pra cá formamos uma amizade. Tanto Lílian como Lívian, sua filha, vão me ver nas montagens, me convidam a estar na casa deles. A Lívian me chama de primo, inclusive…”, diz o ator.
Rafa diz que “Renato se surpreendeu dando-se conta de que sabíamos mais da vida dele que ele próprio”. O musical será composto por canções autorais, assim como outras, consagradas e que fazem parte do imaginário da trupe, como “A Velha debaixo da Cama“, “Terezinha” – de Maria Bethânia – , e “Amigos do Peito“. Um sonho de Renato é estar no elenco desta montagem também.
E, 2014, o intérprete de Didi Mocó esteve em “Os Saltimbancos Trapalhões“, também levado aos palcos. “Estar no palco com Renato é um sonho e nessa situação é uma forma de celebrar a vida dele”. Aliás, também em face da popularidade de Renato, a ideia de Rafael assim como dos produtores, é de fazer um musical que o público possa ir. Daí a importância das contrapartidas sociais. “Uma das coisas que vamos fazer são as contrapartidas sociais, para levar o povo pro teatro. Essas leis de incentivo estão aí para apoiar a cultura, levar as pessoas e o público para o teatro. Teatro bom é teatro lotado. E o humor dos Trapalhões atingia todos os níveis sociais brasileiros, tanto no cinema como na TV aberta. Quero que o teatro tenha esse clima de programa de auditório, com a plateia vibrando junto, entrando com a gente em cena”.
Há pessoas que se emocionam só em ouvir a música tema de abertura do programa. Isso mexe não só comigo, mas também com o Renato, que numa das leituras ficou muito emocionado e tivemos de parar o ensaio – Rafael Aragão
Dono de uma voz elástica, Rafael Aragão dá vida a um personagem icônico da televisão brasileira: O Lombardi, que era locutor oficial do SBT desde a sua fundação até o falecimento, em 2009. Houve quem achasse, inclusive, que a voz do Lombardi era produzida por inteligência artificial. Além deste, interpreta Sidney Magal e Luiz Caldas no musical “Sílvio Santos vem aí”. Além disto, fazia outras imitações no musical dos Mamonas Assassinas. “O Dinho (1970-1995), líder do Mamonas imitava muita gente, e foi assim que eu descobri essa minha habilidade. Nunca fiz dublagem, apenas locuções para publicidade ou trabalhei a voz no palco. Até gostaria de explorar mais isso”, pondera.
Muito se diz que fazer um cearense rir é tarefa difícil pois aquela terra é repleta de humoristas. Talvez tenha algo errado nessa mística. Durante a conversa, a leveza deu o tom, e o bom humor, também. Certeza de que ao levar a vida de alguém que cultivou a alegria e esperança às crianças fuja impunemente à graça. Tal como diz o samba da Cubuçu, Rafael pega carona na ilusão e tal como seu ídolo, diz: “Aguarde e confie, ô da poltrona!”
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