Racismo e invisibilidade: Jacqueline Sato debate estereótipos de gênero e etnia e celebra volta às novelas


Jacqueline Sato, em sua trajetória, tece diálogos que atravessam cultura, representatividade e pertencimento. Ao celebrar o sucesso de Mulheres Asiáticas, reflete sobre a invisibilidade das vozes amarelas no Brasil e sua luta por maior visibilidade, tanto para mulheres quanto para homens. A atriz, que retorna à TV aberta, mantém uma visão otimista e engajada, revelando a necessidade de criar novas oportunidades e destacar narrativas asiáticas brasileiras. Seu envolvimento com projetos como o curta Amarela e a criação de uma agência para talentos amarelos refletem sua busca por um espaço mais justo e plural

*por Vítor Antunes

Decididamente, esta não é a primeira vez que Jacqueline Sato conversa com o Site HT. Da outra ocasião, nos havia apresentado o projeto do programa Mulheres Asiáticas, que agora encerra a sua primeira temporada no Canal E!. A atriz celebra que o programa tenha encontrado acolhimento do público e da crítica. ‘O objetivo do programa era furar bolha e levar essa discussão para ambientes onde, muitas vezes, as pessoas ainda não pararam para pensar a respeito. Então, estou muito feliz que saiu assim. Recebo feedbacks lindos de pessoas que realmente se sensibilizaram com o programa, especialmente as que pertencem ao recorte, e que se abrem. Foram pessoas que, muitas vezes, não haviam pensado sob esse prisma e que seguiam emudecidas ou invisibilizadas, ainda que haja pessoas que falem sobre isso há muito tempo’.

Preparando-se para voltar à televisão, já que seu último trabalho Orgulho e Paixão (2018) já conta com seis anos, ela reflete sobre o impacto de retornar à TV aberta. ‘A TV aberta tem uma visibilidade muito maior e fico pensando que as pessoas vão entrar mais em contato com o meu trabalho através da novela. É lindo ver esse papel na novela e acho bem revolucionária a minha participação na trama’. Jacqueline não apresenta detalhes sobre a personagem, por restrição da Globo. Mas o que se sabe é que a personagem se chama Yuki, mulher de negócios que trabalha com Silvinha (Lellê).

Jacqueline Sato produz e apresenta programa que objetiva ar protagonismo às mulheres asiáticas (Foto: Andrea Dematte)

ORIENTE-SE

Não faz muito tempo que a presença de pessoas amarelas tem ocupado as telas, mas nem sempre foi assim. No meado de agosto, entrou para o catálogo da Globoplay a novela O Grito, que foi uma das poucas a trazer uma pessoa com ascendência amarela como um personagem importante, vivida por Midori Tange, uma aeromoça que era contrabandista. Totalmente fora dos padrões que eram conferidos às pessoas desta etnia. De lá para cá, não poucas vezes os amarelos foram retratados com algum desdém ou estereotipação. O que, porém, vem mudando nos últimos anos. ‘Eu vejo que está rolando um movimento, uma melhora. Eu espero que melhore muito mais, mas é importante reconhecer também esses pequenos avanços que a gente já tem’. Ainda que para as mulheres já tenha havido avanços, para os homens ainda há um grande caminho a se percorrer. E muito se deve ao preconceito e a uma leitura equivocada sobre o corpo das pessoas amarelas. ‘As mulheres asiáticas, por anos, foram objeto de hiperssexualização, tanto que isso é uma das coisas mais buscadas em sites pornôs. Porém, fizeram o oposto com os homens, colocados como seres que não têm sex appeal. Amigos meus, atores, falam que em testes dizem não pensar neles, por não serem suficientemente viris, ou seja, através da diminuição dos corpos dessas pessoas. O que é um reforço da lógica racista. É como se o homem amarelo não pudesse ser galã, e que o público não acreditaria que aquela pessoa pudesse ser atraente, o que é terrível. Ainda que isso esteja mudando por conta do K-Pop’

É muito raro haver quem consiga emendar papéis por que há menos oportuniddaes para nós. Ainda que tenhamos a Ana Hikari com um super nome potente, falta um equivalente na ala masculina – Jacqueline Sato

Jacqueline Sato questiona a ausência de homens amarelos destacando-se no audiovisual (Foto: Andrea Dematte)

Muito se dizia não haver presença de orientais em papéis de destaque por se dizer que eles não são a cara do Brasil, sendo que por anos mulheres brancas e/ou louras eram protagonistas. “Eu continuo sendo uma pessoa otimista, mas inicialmente eu me cobrava calma, e dizia para mim mesma que o papel ideal chegaria. Mas depois fui percebendo que era preciso algumas mudanças estruturais e que eu deveria começar a agir. Assim como é praticado nos Estados Unidos onde é muito normal muito de ver pessoas atrás das câmeras criando seus próprios projetos fazendo e tendo sucesso. Hoje em dia há um grande movimento de vários produtos feitos com elencos ou inteiros, ou majoritariamente asiáticos e que estão indo super bem comercialmente, inclusive então é uma demonstração do quanto esse público engaja. Já que cria-se, por exemplo, que o público brasileiro não se identificaria e eu acho, sim, que pode gerar identificação com o público nacional, especialmente fora do recorte étnico. Acredito que alguns outros profissionais do mercado já estejam de olho nisso, e eu espero que isso se reflita em mais trabalho, mais oportunidades e coisas boas, trabalhos bons”, pondera.

A gente também faz parte da história do Brasil, mas ainda assim somos poucos e somos vistos como não brasileiros. Falam-nos ‘Volta para sua terra, volta para sua casa’. Isso é horrível, porque é algo que precisa ser construído. Mesmo assim, somos os únicos que, ainda por causa das nossas características típicas, enfim, enfrentamos esses atos, ainda que cinco ou seis gerações de nossos antepassados haverem chegado aqui” – Jacqueline Sato

Jacqueline Sato, ao compartilhar a origem da ideia de criar uma agência formada exclusivamente por pessoas amarelas, revela o desejo de criar um espaço de conexão e visibilidade para um grupo historicamente sub-representado na indústria criativa. “O conceito era simplesmente conectar mais pessoas, como se fosse um site onde a gente pudesse evidenciar e conectar esses talentos, tanto entre nós, que pertencemos ao grupo, como também como um grande canal de comunicação e de acesso ao portfólio de pessoas interessantes.” A fala de Sato demonstra uma preocupação com a integração dessas vozes em um sistema de comunicação mais amplo, que permita tanto a interação interna entre os membros dessa comunidade quanto a exposição ao mercado.

Ao expandir essa ideia, Sato menciona o contato com outros grupos relevantes e a descoberta de novas possibilidades de integração: “Aí fui conhecendo outras pessoas do business, que são relevantes, outros grupos, e fui me conectando com essa parcela da população de uma maneira mais forte, para entender as possibilidades.” Isso culmina com sua participação no projeto ‘Papel e Caneta‘, que utiliza o sistema ‘mesa’ — uma ferramenta corporativa aplicada para solucionar grandes problemas ou desenvolver novos produtos. Esse projeto, segundo Sato, convida profissionais de diferentes áreas para trabalharem juntos na resolução de questões sociais urgentes. Um exemplo destacado foi a inclusão de sete mulheres negras no júri de Cannes, um ato transformador e de grande impacto na questão da representatividade.

Sato foi além de seu envolvimento inicial e se tornou apoiadora do projeto, ajudando a conectar talentos de ascendência asiática: “Fui convidada a fazer parte dessa mesa e depois acabei entrando também como apoiadora do projeto, fazendo conexões com pessoas para viabilizar a reunião de talentos de ascendência asiática.” Ela ressalta a falta de visibilidade dessas pessoas na indústria criativa, uma realidade que permeia diversas áreas, como o design e a atuação, tanto diante quanto atrás das câmeras. Seu objetivo com a agência e a plataforma virtual que está viabilizando é justamente trazer luz para essa comunidade e conscientizar a sociedade sobre a importância dessa parcela da população.

No contexto de sua atuação no cinema, Jacqueline Sato também reflete sobre o curta-metragem Amarela, que aborda a diáspora japonesa no Brasil, um tema de grande relevância dentro da sua própria trajetória e da cultura nipo-brasileira. “‘Amarela’. Ele trata dessa temática e é belíssimo, dirigido por André Hayato Saito. A produtora é a Mayra Auad e Gabriela Auad, e eu sou produtora associada. A Fernanda Takai também é produtora associada.” O curta conta a história de uma jovem nipo-brasileira de 14 anos que, durante o emblemático jogo da Copa do Mundo entre Brasil e França, em 1998, vivencia a dor e a sensação de não pertencimento. Dentro de sua própria casa, a personagem não se identifica com alguns elementos da cultura japonesa mantidos pela família, ao mesmo tempo em que, no ambiente externo, seu pertencimento ao Brasil é questionado. Sato destaca essa dualidade cultural e o impacto do racismo sutil, representado na frase: “E ela é brasileira, torce para o Brasil, mas as pessoas dizem: ‘Você está torcendo para o Brasil?’, como se ela fosse menos brasileira por ter origem japonesa.”

Há situações que ouvimos ao longo da vida e que vão machucando. A protagonista do filme é como muitas pessoas filhas da diáspora que estão num entre-lugar, como as argelinas na França. Vivemos entre lugares. Se eu viajar para o Japão, talvez me identifique com algumas coisas, mas com outras não. Acho bonito que algumas culturas conseguiram, de certa forma, se distanciar dessa centralidade. Mas eu, ainda que tenha ascendência japonesa, sou brasileira, e sobretudo, de Guarulhos – Jacqueline Sato

Jacqueline Sato reflete sobre sua ligação com a Sato Company, uma das pioneiras na introdução da cultura asiática no Brasil, especialmente no que diz respeito à disseminação de mangás e tokusatsus a partir dos anos 1980. Ao abordar o impacto geracional da empresa fundada por sua família, ela ressalta a importância do papel desempenhado por seu pai, que dedicou grande parte de sua vida ao trabalho, viajando e realizando uma espécie de laboratório em casa ao trazer conteúdo para ser avaliado pelos filhos: “Era bom saber que as pessoas gostavam, e eu sei que isso impactou gerações. Meu pai sempre trabalhou muito, viajava, e às vezes fazia laboratório em casa. Ele trazia conteúdo para assistir com a gente, para ver nossas reações.” Esse ambiente imersivo na cultura audiovisual formou parte essencial da trajetória pessoal e profissional de Sato, que cresceu cercada por esse tipo de conteúdo.

Apesar de sua familiaridade com o universo dos mangás e animes, Jacqueline também revela uma fase de negação, destacando que não se sentia obrigada a ser uma grande fã desse gênero, apesar de sua proximidade com a empresa e com a cultura que ela representava: “Mas qualquer generalização é incômoda. Não é porque eu faço parte da família que eu tinha que ser a maior fã de mangás e animes. Eu tive uma fase de negação, mas hoje olho para isso com orgulho.” Essa sinceridade demonstra sua luta interna por encontrar seu próprio caminho e identidade dentro desse contexto familiar tão marcado por uma tradição cultural.

Hoje, Jacqueline Sato abraça a importância da Sato Company com orgulho e reconhece o legado deixado pela empresa na promoção da cultura asiática no Brasil. Ela vê sua missão atual como a de amplificar novas vozes e histórias, atuando como uma ponte entre a tradição e o futuro, não apenas no Brasil, mas internacionalmente: “Hoje, como produtora, eu quero fazer ecoar as vozes de pessoas asiáticas brasileiras, tanto no Brasil quanto fora daqui. Temos muita história para contar. É urgente, tanto na ficção quanto no documentário.” Sua atuação agora se concentra na criação de projetos que deem espaço e visibilidade para narrativas asiáticas brasileiras, ampliando o diálogo cultural iniciado por sua família décadas atrás.

E assim, Jacqueline Sato caminha com o vento da mudança em suas costas, impulsionada por histórias que sempre mereceram ser contadas, mas por tanto tempo silenciadas. Seu olhar se volta ao horizonte, onde novos espaços de protagonismo emergem, trazendo consigo a promessa de representatividade genuína. Cada projeto, cada papel é um passo firme em direção à construção de pontes entre culturas, um respiro para vozes que ecoam com a força de gerações. E enquanto o mundo gira, ela permanece, atenta e incansável, tecendo futuros mais inclusivos.