Edvana Carvalho, de ‘Renascer’, redefiniu protagonismo das trabalhadoras domésticas e está em peça sobre sexo +50


A atriz, que viveu Inácia em ‘Renascer’, celebrou a evolução da trama, destacando a herança recebida do patrão José Inocêncio (Marcos Palmeira) por sua personagem como um marco social na ficção e na vida real. Redefiniu ainda o papel das personagens negras na teledramaturgia e discutiu a importância de transformar a percepção do trabalho doméstico, historicamente associado à escravidão. Defendeu a valorização da arte na luta contra preconceitos. Após a novela, Edvana volta ao teatro com a peça “Aos 50 Quem Me Aguenta”, explorando temas como sexualidade, envelhecimento, maternidade, relacionamentos e solidariedade feminina ao superar os desafios impostos pela chegada dos 50 anos

*por Vítor Antunes

Todos os holofotes para Edvana Carvalho por seu trabalho em “Renascer”.  Infelizmente, apesar de aclamada pela crítica por seu zelo no trato artístico, a novela teve críticas por seu andamento, considerado arrastado para os dias atuais. Todavia, a abordagem de alguns temas sociais avançou sobremaneira em comparação à versão de 1993. Inácia, personagem de Edvana Carvalho, rompeu uma trajetória comumente destinada às personagens pretas nas novelas. Foi contemplada com uma herança, algo que não costuma acontecer. “Acho que a Inácia herdar algo marca a luta dos movimentos sociais, a luta do sindicato das domésticas e a luta da sociedade, entendendo que, mesmo que não seja culpa nossa, vivemos os reflexos de um processo escravagista, e é nossa obrigação transformar isso”.

Após a novela Renascer, Edvana está no teatro, na montagem de Aos 50 Quem Me Aguenta. Esse é um dos objetivos da atriz: conquistar o coração do público móvel do Centro do Rio, que está sempre “de passagem”. A peça comemora também os 40 anos de carreira da atriz, que assina o roteiro original do espetáculo, dirigido por Marcelo Praddo. A montagem aborda os aspectos emocionais e sociais de seu fortalecimento pessoal, explorando temas como sexualidade, envelhecimento, maternidade, relacionamentos e solidariedade feminina ao superar os desafios impostos pela chegada dos 50 anos.

“O trabalho doméstico é muito simbólico, porque lembra o trabalho da escravidão no Brasil. Se passar por esse viés em outros lugares, ele é muito mais profissional. Como sociedade, estamos avançando em cerca de duas décadas. Essa mudança de olhar para a personagem também marca uma mudança de status para atrizes, já que outras tantas marcaram presença e estiveram presentes abrindo esse lugar para a gente” – Edvana Carvalho.

A atriz aborda a transformação e valorização das mulheres, especialmente no trabalho de desmistificar a ideia de que o emprego doméstico se assemelha ao trabalho escravo. Ela defende que é necessário oferecer melhores condições e direitos para desconstruir a visão, outrora ingênua, mas agora reconhecida como estrutural, de que as empregadas domésticas, por morarem com seus patrões, estariam em situação normal. “Antes, havia uma percepção equivocada de que era assim mesmo, mas hoje sabemos que isso não é certo”. Ela também destaca o papel da arte em mostrar como as coisas deveriam ser, afirmando: “No trabalho artístico, você tem a oportunidade de mostrar que pode e deve ser diferente”.

O debate proposto pela atriz reflete uma realidade comum nas novelas: a representação das criadas. Por exemplo, a personagem Inácia, vivida por Chica Xavier (1932-2020) na primeira versão de Renascer, não teve direito a nada após a morte de José Inocêncio (interpretado por Antônio Fagundes). Tia Nastácia, do Sítio do Picapau Amarelo, era considerada “como alguém da família”, embora sua vida se restringisse à cozinha. Já Januária (Zeny Pereira [1924-2002], de Escrava Isaura, teve como recompensa, após anos de dedicação, apenas a liberdade, que foi apresentada como um “final feliz”.

Marcos Palmeira e Edvana Carvalho em cena de ‘Renascer’

A atriz menciona que Bruno Luperi e outros diretores estavam alinhados com essa visão e que ela lutou para trazer essas questões à tona em entrevistas e conversas. “Embora não seja possível mudar completamente uma obra, é possível adaptá-la e provocar reflexões”. Ela e Marcos Palmeira frequentemente faziam provocações, ressaltando que personagens como Inácia eram tratados como “da família”, o que perpetuava uma visão problemática. Agora, ela acredita que, 30 anos depois, é possível avançar, destacando que a sociedade vem evoluindo, ainda que lentamente, nessa desconstrução.

Edvana Carvalho numa referência à Oxum (Foto: Diney Araújo)

A atriz, enquanto mulher preta, ressalta que não subiria ao palco sem falar sobre o que considera necessário, seja em palavras ou por meio de sua imagem. Ela observa que os avanços em questões sociais, como o direito de usar o elevador social, são fruto de diversas lutas. “São essas questões que vamos mostrando à sociedade. Acho que, aos poucos, passamos a entender o que deve ser mudado”. Ela finaliza afirmando que está atenta a essas mudanças e que o trabalho ainda continua.

Por muitos anos, as novelas retratavam a Bahia sem trazer baianos no elenco. Traziam um sotaque estereotipado, que beirava o cômico. Renascer foi um diferencial não só por trazer atores nordestinos, mas por trazer artistas baianos. Perguntamos à Edvana se ela acredita haver demorado para haver essa migração de artistas nordestinos ou uma presença maciça deles no cenário artístico da televisão. “Não acredito que seja uma ‘migração’ do Nordeste para as novelas, mas uma presença. O Nordeste faz parte do Brasil e tanto São Paulo quanto o Rio de Janeiro são compostos por nordestinos. Esse preconceito estrutural era naturalizado, ainda que desrespeitoso. Estamos vivendo esse fluxo de mudança, de reestruturação, que traz não só os nordestinos para a tela da televisão, como o negro e o indígena, ou seja, a compreensão de que o Brasil não é só branco. Nada mais justo que as novelas e as nossas obras revelem que o nosso povo é misto, é de verdade e não é uma televisão ariana. Isso não dá mais, não cabe mais”.

Os pretos trouxeram muitas coisas, seus ensinamentos. Toda essa centralidade potente de Salvador, da cultura baiana, das mães de santo do Candomblé. O povo carioca tem raízes bem nordestinas, através da religião e do movimento musical baiano no Rio de Janeiro, embora sejam cidades bem diferentes. Porém, de forma espiritual e energética, estão ligadas” – Edvana Carvalho

Edvana Carvalho está em peça sobre a sensualidade da mulher de 50 (Foto: Diney Araujo)

A FÉ E O TEMPO

Um dos momentos mais elogiados de Renascer foi a retratação respeitosa da religião afro na trama. Algo que vem sendo gradativamente abordado na teledramaturgia com menos vínculos à estereotipação. “Foi muito linda essa bela homenagem, esse serviço que a novela e o texto do Bruno Luperi trouxeram, para falar de situações que a gente precisa discutir na sociedade, como o respeito à religiosidade das pessoas. Tivemos essa chance e foi maravilhoso unir isso, trazer esse lugar de voz e poder falar e mostrar a religião de matriz africana como uma religião como qualquer outra, compreendendo que através dela pode se comunicar com seus antepassados, por exemplo. Fé é algo único, quer seja na yoga, numa igreja ou num terreiro de candomblé. É isso que a gente tem que passar para a sociedade. Se era amor o que era necessário plantar, essa personagem veio carregada de amor e de justiça”.

“A cultura do Brasil, por mais diversa que seja, acaba tendo uma maioria, e a gente sabe que essa linha majoritária estrutura o racismo, que vai estar aparecendo em todas as suas facetas” – Edvana Carvalho.

Edvana Carvalho mostra nova faceta no teatro (Foto: Diney Araujo)

Edvana , ao falar sobre suas referências, menciona que sempre teve muitas figuras inspiradoras, especialmente no teatro e no cinema. Ela diz: “Eu tenho tanta gente que eu até tenho medo de falar os nomes e não me lembrar de todo mundo, mas acho que todas as mulheres de teatro e cinema da Velha Guarda, as atrizes do Bando de Teatro do Olodum, e principalmente as atrizes pretas.” A força dessas mulheres negras na televisão, seja como atrizes ou cantoras, foi fundamental para ela, que diz: “Quando eu via uma atriz negra ou uma cantora negra na televisão, ou um cantor negro, eu achava aquilo possível para mim, então, foram as minhas referências, o meu alicerce, a minha força para continuar.” Assim, Edvana demonstra como essas mulheres moldaram sua visão de futuro e lhe deram suporte para seguir em sua carreira.

Quando questionada sobre o conselho que daria a uma jovem atriz preta baiana como ela, Edvana pontua a importância de se preparar para ser artista: “Eu diria para ela se preparar para ser artista. Isso requer prática, participar de um bom curso, pois a formação traz ideias, traz novas linguagens para fazer teatro, de aproveitar e saber um pouquinho de cada coisa.” Ela recomenda explorar diferentes técnicas e disciplinas artísticas. Além disso, Edvana ressalta a importância de entender a arte como uma ferramenta social: “É entender que sua arte também é uma ferramenta de como você pode contribuir com a sociedade.” Ela reforça que o foco não deve ser a fama, pois esta é passageira: “Entender que nem todo artista está nisso pela fama, mas porque acha que essa é sua contribuição para o mundo. A fama acaba rápido.” Finalizando, Edvana aconselha a jovem atriz a aproveitar as oportunidades: “Aproveite para aproveitar ainda mais os caminhos que estamos que nós da atual geração estamos abrindo.”

Edvana Carvalho: “Quando eu via uma atriz negra ou uma cantora negra na televisão, ou um cantor negro, eu achava aquilo possível para mim” (Diney Araujo)

Com o desfecho da novela, Edvana Carvalho entrega mais do que uma personagem. Ela traz a força de vozes ancestrais, rompendo com velhas amarras e redesenhando papéis destinados às mulheres negras na ficção. Inácia, que herdou mais do que bens, carrega as marcas de uma luta que transcende o tempo. Edvana, com sua presença, abre caminhos, transformando a arte em um espelho onde se reflete a busca por justiça e igualdade. O fim da novela é apenas o início de novas narrativas, onde a atriz segue, firme, esculpindo futuros mais justos.