Que viva México! Hoje mergulhado em crise, o país do estilo brega-cucaracho já subjugou o mundo com mulheres avassaladoras!


A auto-estima dos mexicanos está em baixa por muitas razões: uma guerra sem fim contra o narcotráfico, o desaparecimento criminoso de 43 jovens e o falecimento de Roberto “Chaves” Bolaños. Por isso mesmo, é bom lembrar o brilho cultural do México e seu antigo império no cinema através de duas estrelas superpoderosas

* Por Flávio Di Cola

Ninguém pode negar que o México ajudou o mundo a se tornar um lugar mais interessante através das suas esplêndidas e misteriosas civilizações pré-colombianas, das peripécias de El Zorro, da trágica história do Imperador Maximiliano e sua rainha louca Carlota, de líderes épicos como Pancho Villa e Zapata, dos maiores muralistas da história da arte como Diego Rivera e José Orozco, de ensaístas e escritores geniais como Octavio Paz, Carlos Fuentes e Juan Rulfo; ou dos “reis da música romântica” como Agustín Lara, Jorge Negrete, Pedro Infante, Pedro Vargas ou Trio Los Panchos. Isso para não falar da sua culinária afrodisiacamente picante, dos mariachis – elevados a ícones pop pelas mãos de Robert Rodriguez –, e da mais cultuada figura artística feminina do mundo contemporâneo – Frida Kahlo.

Este slideshow necessita de JavaScript.

Fotos (Reprodução)

Exatamente por todas essas contribuições é que esse mesmo público mundial está vendo com muita tristeza a nação mexicana rumando virtualmente para a sua desintegração social e política se não conseguir derrotar e extirpar o domínio das máfias do narcotráfico sobre a vida dos seus 123 milhões de habitantes. O escandaloso desaparecimento (e a quase certa chacina) de 43 normalistas de uma escola rural do estado de Guerrero – um dos mais subdesenvolvidos e violentos do país – em setembro passado, com a cumplicidade escabrosa de autoridades municipais, policiais e poderosas organizações criminosas, instalou nesse simpático país uma pesada atmosfera de pessimismo que nada combina com o lado imaginário agradavelmente associado à palavra “México”. Um imaginário que deve grande parte da sua força, charme e encanto às fabulosas divas da era de ouro do seu cinema e que traduziram iconicamente todo o sentimentalismo, o exagero e o despudor latinos que contrastam tão bem com o pragmatismo que caracteriza os seus vizinhos gringos ao norte do Rio Grande.

Ah, se o Presidente da República Federativa do México Enrique Peña Nieto tivesse, ao menos, um pouco da coragem das mulheres encarnadas por Dolores Del Río, ou do descaramento das personagens de Lupe Velez, ou da segurança insolente das heroínas vividas por Maria Félix para ele enfrentar a crise profunda que se abate agora sobre o seu país! Entre a década de 1930 e o final da de 1960, o então poderosíssimo cinema mexicano exportou para o planeta o paradigma da mulher vulcânica, inflamável, que se elevava ou se desgraçava sem meias-tintas, expressando de um jeito despudorado as facetas mais indômitas da nova mulher que emergia entre as violentas transformações do século XX. Conhecer um pouco da trajetória das divas mexicanas e de suas personas cinematográficas é também entender o porquê do imorredouro sucesso planetário de mulheres intensas e poderosas como Madonna, Angelina Jolie, Salma Hayek, Catherine Zeta-Jones, Gisele Bündchen ou Beyoncé.

Este slideshow necessita de JavaScript.

Fotos (Reprodução)


Cena de Maria Félix e Dolores Del Río em “La Cucaracha (1958): duelo com tempero de guacamole (Reprodução)

Dolores Del Río (1904-1983), para começar, teve que se insurgir contra todos os valores comportamentais do feudalismo ibérico que ainda imperavam nas sociedades hispânicas, como era a do México do início do século XX. Filha de um presidente de banco e grande proprietário de terras, ela foi educada num convento. Quando anunciou à sua família que pretendia seguir a carreira artística e alguém lembrou a ela que nenhuma moça de boa família em toda a história do México tinha se aventurado na profissão de atriz e se arriscado a ser confundida com uma prostituta, retrucou: “Bem, então serei a primeira”. Sua carreira em Hollywood foi triunfal e muito devido à sua extrema beleza que lhe trouxe o título de “mulher mais linda do cinema” na passagem das décadas 1920-1930. Seu casamento com o envelhecido, feioso e tímido chefe do Departamento de Arte da Metro-Goldwin-Mayer Cedric Gibbons – que desenhou a estatueta dos prêmios Oscar em 1928 – provocou rumores maliciosos por parte daqueles que viam nessa união uma reprodução da fábula “A bela e a fera”. De qualquer forma, Gibbons construiu para ela o mais fabuloso palácio art déco de Hollywood, exaustivamente divulgado em revistas de decoração e copiado em todo o mundo.

Mexico casa art deco de Dolores Del Rio e Cedric Gibbons final

Luxo latino na Califórnia: a mansão art déco de Dolores Del Rio e do maridão, o diretor de arte mais famoso de Hollywood nos anos 1930, Cedric Gibbons (Foto: Reprodução)

A beleza exótica e delicada de Del Rio era tão requisitada pelos produtores da Meca do Cinema que um dos maiores deles – David O. Selznick – a contratou tão rapidamente que a colocou num filme de que só se tinha o título – “Ave do Paraíso” (The bird of the paradise, RKO, 1932). Quando o diretor King Vidor perguntou-lhe se já havia algum roteiro, Selznick respondeu: “Não importa a história. Faça qualquer coisa que se passe nos Mares do Sul, mas em que no final Dolores Del Rio se jogue num vulcão em chamas vestida com um sarongue bem curto!” O ano de 1933 marca o auge do seu estrelismo precisamente no papel de uma brasileira no antológico musical “Voando para o Rio” (Flying down to Rio, RKO), dirigido por Thornton Freeland e Busby Berkeley, e que lançou para o mundo a dupla de dançarinos Fred Astaire e Ginger Rogers. Divorciada de Cedric Gibbons, Dolores continuou alimentando as colunas de fofocas em razão de um romance com outro grande nome do cinema – Orson Welles –, antes de ser trocada por outra “Deusa da Beleza” que emergia sem competidoras, Rita Hayworth. No início dos anos 1940, Dolores Del Rio resolveu voltar ao seu país de origem para contribuir com o seu prestígio no projeto de industrialização do cinema mexicano, e que o conduziu ao sucesso e ao reconhecimento mundial, a ponto dessa cinematografia monopolizar a produção global dos filmes em língua espanhola e desenvolver um star system próprio, cobiçado até por Hollywood. Nesse período estrelou sucessos tremendos como “Flor silvestre” (Idem, 1943) e “Maria Candelaria” (Idem, 1943) que a transformaram no próprio símbolo do México aos olhos do mundo.

Mexico Dolores Del Rio 2 final

Direto das selvas de Yucatán, surge uma atriz felina: estrela latina absoluta de Hollywood na virada dos anos 1930 e no limiar das produções faladas, Dolores Del Rio assume sua porção jaguatirica no cinema americano antes de voltar pra sua terra (Foto: Reprodução)

 


Dolores Del Río em “Ave do Paraíso” (Bird of Paradise, 1032): quem diria, o povo já nadava pelado nos anos trinta! (Reprodução)

Mas Dolores Del Rio tinha uma concorrente, e séria!, entre os muros dos gigantescos estúdios cinematográficos de Churubusco-Azteca, nos arredores da Cidade do México: Maria Félix (1914-2002), rainha das mundanas, das destruidoras de lares, das aventureiras, das perdidas, das vamps latinas que irão contaminar os sonhos e a imaginação perversa das massas durante as duas décadas em que o México produziu os mais tresloucados melodramas da história do cinema. Os títulos dos seus grandes sucessos dizem tudo: La mujer sin alma (1943), La devoradora (1946), ou Messalina (1951), a primeira superprodução italiana desde o final da Segunda Guerra. Maria Félix ficou também mundialmente conhecida por dois codinomes que traduzem, à perfeição, dois fatores – beleza e riqueza – que quando perigosamente combinados numa só mulher, garantem as mais deliciosas vilãs do cinema ou das telenovelas: Maria Bonita e La Doña, este último em referência ao filme “Doña Bárbara”, sucesso de1943 em que cristaliza sua imagem de mulher má e bela. O enredo é infame: Dona Bárbara é uma riquíssima herdeira de terras, que tendo sido estuprada por piratas na adolescência alivia esse trauma destruindo a vida de todos ao seu redor, inclusive da própria filha, com quem se rivaliza em conquistas amorosas.

Este slideshow necessita de JavaScript.

Fotos (Reprodução)

Hollywood sempre a desejou, mas Maria Félix jamais se curvou ao jogo dos grandes estúdios americanos – verdadeira fábrica de estrelas em que ela talvez se tornasse apenas mais uma –, preferindo manter-se como rainha da segunda maior cinematografia do mundo. Essa opção fez com que recusasse papéis fabulosos como o da voluptuosa e perigosa mestiça Pearl Chaves no western de 1946 “Duelo ao Sol” (Duel in the Sun), superprodução dirigida e produzida pela mesma dupla de “Ave do Paraíso”, 14 anos antes com Dolores Del Rio, que escandalizou o público da época pelo erotismo exacerbado, catapultando Jennifer Jones ao superestrelato. Outro papel que Maria Felix desdenhou e que entrou na história do cinema através do corpo da sua substituta – Ava Gardner – foi o de Maria Vargas em “A Condessa Descalça” (The Barefoot Contessa, 1954), arrasadora crítica à indústria do cinema dirigida por Joseph L. Mankiewicz e que, ironicamente, narra a trajetória fatal de tantas lindas mocinhas latinas que são importadas, mercantilizadas e trituradas por Hollywood.

Jennifer Jones : para competir com os mexicanos, a meca mundial do cinema inventa sua morena latina de farmácia em "Duelo ao Sol" (Duel in the Sun, 1946)

Jennifer Jones: para competir com os mexicanos, a meca mundial do cinema inventa sua morena latina de farmácia em “Duelo ao Sol” (Duel in the Sun, 1946)

Maria Félix encerrou a sua carreira como mito e riquíssima, colecionando jóias e antiguidades, idolatrada pelo público do seu próprio país, assim como Dolores Del Río. Duas atrizes mexicanas do passado – mas universais em sua beleza e talento, e muito atuais na coragem e nos múltiplos papéis que viveram para enfrentar os duros golpes de um mundo hostil. O México de hoje precisa, mais do que nunca, do exemplo delas.


Cena de “Dona Bárbara” (1943): Oye! asco de hombre! (Reprodução)

*Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e ex-coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria