*Por Brunna Condini
Novembro é o mês que marca o movimento da Consciência Negra, que pretende englobar a percepção histórica e cultural do povo negro. Além disso, a data visa desde a sua criação, colocar foco no combate à discriminação racial e à desigualdade social, tendo como data reverenciada o dia 20, por conta da morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, considerado símbolo da luta pela liberdade e valorização dos negros. De lá para cá, o movimento de conquista dos espaços e da importância da representatividade vem mudando o cenário de silenciamento e apagamento de vozes e histórias negras, traço principal do racismo estrutural.
E quem vem hoje dar dicas e indicar material que traga o protagonismo negro na linha de frente é a roteirista Cleissa Regina Martins, que começou sua carreira na televisão abrindo caminhos importantes, já que é a primeira roteirista negra a ter um projeto autoral na TV Globo, o especial ‘Juntos a magia acontece’(2019), criado por ela, que também foi o primeiro protagonizado por uma família negra. Ela foi revelada pelo Laboratório de Narrativas Negras para o Audiovisual uma parceria da Globo com a FLUP (Festa Literária das Periferias), onde criou o argumento para o roteiro, em 2017. Pelo trabalho, Cleissa foi indicada na categoria de Roteirista do Ano no 4º Prêmio ABRA (Associação Brasileira de Autores Roteiristas). “Fui muito cuidadosa escrevendo e acho que essa indicação reconhece esse trabalho que, para além de representatividade, teve qualidade técnica”, ressalta ela, que atualmente é co-representante do GT de Equidade Racial da Associação Brasileira de Autores Roteiristas.
No momento, ela se dedica à criação de uma série documental sobre a inserção de jovens negros na indústria da moda. “O setor é muito elitizado, uma área onde sinto falta de representatividade e sei que é bem difícil para as pessoas negras entrarem e se manterem. Me interessa saber quem está conseguindo furar essa bolha e como estão fazendo isso. Acho que no audiovisual faltam coisas leves com personagens negros em posições dignas. Quero muito fazer uma comédia romântica, filmes de comédia para a família toda, para além dos dramas de temas mais pesados. Quero emocionar e contar boas histórias, com protagonistas negros e de um ponto de vista negro, mas espero realmente ter a liberdade de colocar a arte em primeiro lugar, porque acho que isso é negado para a gente também”.
A pedido do site, a roteirista escreveu um texto tendo como temática de fundo a representatividade e o protagonismo negro no audiovisual. E escolheu como recorte, o apagamento na contagem de algumas criadoras negras na direção de longas, como no caso da atriz e diretora Sabrina Rosa. Cleissa também aproveitou para indicar filmes e séries de profissionais que ela admira. É só abrir espaço na agenda e pegar a pipoca.
Com a palavra, Cleissa Regina Martins:
“Em 2011, Sabrina Rosa – atriz, diretora e roteirista – escreveu uma peça de teatro, convidou amigas para atuarem e tentou financiá-la. Tentou muito, mas não conseguiu. Ouvia que pretos não vendiam. Cavi Borges, um conhecido produtor de filmes de guerrilha do Rio de Janeiro, deu a ideia de Sabrina fazer um filme. A estrutura de peça teatral tornaria o roteiro mais barato e ela conseguiria fazer sem o financiamento que não chegava.
Assim nascia o longa-metragem ‘Vamos Fazer Um Brinde?’, filme no qual quatro amigas e um amigo se reúnem para a virada do ano, falam de amores, ciúmes e intrigas e celebram a vida. Roberta Santiago faz Sara, a anfitriã da festa e uma mulher que não superou um amor do passado. Roberta Rodrigues é Heloísa, uma aspirante a atriz que acabou de fazer um teste para um papel de ex-presidiária e não aguenta mais só ser chamada para papéis estereotipados. Juliana Alves é Vera, uma mulher nas nuvens por conta do namoro recente, mas com dificuldades no relacionamento com a família. Cintia Rosa faz Suzana, uma grávida com certos problemas emocionais. E Fabrício Santiago faz Dinho ou Cláudio, um homem gay orgulhoso de sua própria história. O longa é leve e gostoso de ver, como poucas obras nacionais e internacionais com protagonismo negro. E em 2011 já propunha ideias que hoje ainda temos dificuldade de concretizar nas telas.
O filme foi feito em três dias na casa da atriz Juliana Alves, que tinha acabado de se mudar e cedeu o espaço para a amiga. Mesmo sem dinheiro, Sabrina pensou sobre toda a concepção artística do filme e levou seu olhar para a tela. Com uma trajetória de atriz, ela queria a câmera em função do ator e não o contrário, por isso o tom quase documental da direção de fotografia, que faz mesmo com que a gente quase se sinta no apartamento com os personagens, como se aqueles fossem nossos amigos. O filme estreou no Cine PE e ganhou o prêmio especial do júri no festival, mas na época muita gente foi resistente ao longa por ter tanto protagonismo negro. Sabrina diz que foi perguntada se não exagerou: uma crítica branca não acreditava que a personagem de Cíntia Rosa poderia usar o vestido de grife que compunha seu figurino.
Por algum motivo, o nome de Sabrina Rosa foi apagado das contagens de mulheres negras que dirigiram longas-metragens de ficção na história do cinema brasileiro, mas nunca é tarde para corrigir erros. Que Sabrina e ‘Vamos Fazer Um Brinde?’ entrem na lista depois de Adélia Sampaio, a primeira mulher negra a dirigir um filme de ficção, com ‘Amor Maldito’ em 1984 (70 anos depois do que seria o primeiro longa-metragem brasileiro). Que ela se junte a Glenda Nicácio, que divide a direção de longas-metragens com Ary Rosa desde 2017 quando fizeram ‘Café com Canela’; e a Viviane Ferreira, que estreou seu primeiro longa de ficção, ‘Um Dia Com Jerusa’, em 2019.
É preciso que chegue o dia em que não seja possível contar nos dedos de uma mão o número de mulheres negras que já dirigiram longas-metragens de ficção no cinema brasileiro. Se formos falar na chefia de salas de roteiro de séries, a coisa fica pior ainda. Pessoas negras, mais da metade da população brasileira (54% de acordo com o IBGE) querem conteúdos que as representem em sua complexidade, como bem faz ‘Vamos Fazer Um Brinde?’. Enquanto esse dia não chega, existem muitas obras de mulheres negras para serem vistas e apreciadas, e – com o perdão do trocadilho – devemos fazer um brinde a elas”.
Algumas indicações de Cleissa dos lançamentos mais recentes:
Filmes
- Vamos Fazer Um Brinde (2014) – Roteiro: Sabrina Rosa. Direção: Sabrina Rosa e Cavi Borges. Onde: Youtube.
Um grupo de amigos se reúne para passar a noite de réveillon e conversam sobre histórias antigas, amores recentes e brindam à vida.
- Um Dia Com Jerusa (2020) – Roteiro e Direção: Viviane Ferreira. Drama. Onde: Festivais.
Uma jovem que trabalha com pesquisa de público acaba por passar um dia com Jerusa, uma senhora solitária, mas graciosa e cheia de boas memórias.
- Atlantique (2019) – Roteiro e Direção: Mati Diop. Drama romântico. Onde: Netflix.
Ada, uma jovem de 17 anos, prometida para casamento, vive um amor proibido com um rapaz, até que coisas estranhas começam a acontecer quando trabalhadores desaparecem no mar e seus espíritos retornam.
- The Forty-Year Old Version (2020) – Roteiro e Direção: Rhada Blank. Comédia. Onde: Netflix.
Radha MusPrime, uma dramaturga prestes a completar quarenta anos tenta reinventar sua carreira, mas dá de cara com as estruturas racistas do meio da arte; de repente ela percebe sua habilidade com o rap e resolve investir na música.
- The Photograph (2020) – Roteiro e Direção: Stella Meghie. Comédia Romântica. Onde: Youtube Filmes.
Mae conhece Michael, um repórter que investiga a vida artística de sua mãe, enquanto lida com a morte dela. Os dois começam um romance e com a matéria de Michael, Mae descobre segredos sobre sua vida.
Séries
- Afronta (2018) – Criadora: Juliana Vicente. Documentário. Onde: Netflix.
Série documental de entrevistas com jovens negros brasileiros que têm causado mudanças em suas áreas de atuação, passando pelo cinema, música, dança e moda.
- I May Destroy You (2020) – Criadora: Michaela Coel. Drama. Onde: HBO.
Na série mais comentada do ano, Arabella é uma escritora londrina com um bloqueio criativo que só crescer após ela ser vítima de um abuso sexual.
- Insecure (2016-Presente) – Criadora: Issa Rae. Comédia. Onde: HBO.
Já na quarta temporada e com a quinta aprovada, a série acompanha Issa Dee e sua amiga Molly enquanto elas navegam por relacionamentos, problemas no trabalho e a chegada dos 30 anos.
- A Black Lady Sketch Show (2019) – Criadora: Robin Thede. Comédia. Onde: HBO.
Uma série de esquetes com mulheres negras protagonizando cenas engraçadas e surreais.
- Lovecraft Country (2020) – Criadora: Misha Green. Terror. Onde: HBO.
Ambientada nos anos 50, Atticus, Lettie e George embarcam numa viagem por um país segregado e cheio de terror racial, monstros e magia.
Artigos relacionados