* Por Flávio Di Cola, direto da cidade eterna!
Aqueles que estiverem com passagem comprada para os próximos dias com destino a Roma poderão não só conhecer por dentro o lendário complexo de estúdios cinematográficos inaugurado em 1937 por Benito Mussolini e parte inalienável da história do cinema como também poderão “vivenciar” in loco a filmagem de um épico ambientado na Roma dos Césares fantasiados e maquiados como protagonistas e figurantes. Essa proposta – chamada “Ave Cinecittà! – que, para muitos, pode parecer uma palhaçada ou um verdadeiro “mico preto”, também pode ser a solução para aqueles pais que já não sabem mais o que fazer com os filhos nos feriados. Afinal, um “biglietto famiglia” de 45 Euros dá direito para um casal e um máximo de três filhos a um “rolezinho” à italiana com duração de uma hora e meia nos cenários autênticos e remanescentes da super premiada série televisiva “Roma”, produzida pela HBO com a BBC e fenômeno de audiência entre 2005 e 2007. Mas, atenção: o evento e respectivas promoções “combo” só vão até o dia 1° de maio!
Seria um interessante exercício de imaginação supor o que Il Duce pensaria da transformação daquilo que foi um dos mais modernos e amplos centros de produção de cinema da sua época – rivalizando-se com os estúdios hollywoodianos e uma das glórias do seu regime – em mais um parque temático nos moldes norte-americanos. Mais uma prova de que um dos ingredientes permanentes da História é a ironia… E o que pensaria o genial Federico Fellini (1920-1993) que rodou quase toda a sua filmografia no gigantesco palco nº 5, agora transformado em ponto turístico para o entretenimento barato de multidões ruidosas e desavisadas sobre a importância histórica e artística das obras gestadas entre os muros dos seus 22 estúdios, nos seus 11 hectares de terreno para externas e na sua famosa piscina de 7000 m², onde foram simuladas espetaculares batalhas navais da Antiguidade em superproduções mussolinianas que enalteciam as “origens” gloriosas do “Popolo Italiano”?
Todos os grandes ditadores do século XX – Stálin, Hitler, Franco, Perón ou Vargas – compreenderam e usaram o cinema como meio de doutrinação das massas, e apenas secundariamente como entretenimento ou manifestação artística. Mas Mussolini foi, de longe, muito mais descarado do que eles na forma de explicitar a sua confiança no cinema como canal de propagação ideológica: na cerimônia de inauguração dos estúdios – data que comemorará seus 77 anos no dia 28 de abril – Mussolini descerrou um enorme out door em que ele mesmo aparecia manejando uma câmera, e sob o qual estava escrito o célebre lema: “La cinematografia è l’arma più forte” (A cinematografia é a arma mais forte).
Embora o cinema e Cinecittà fossem duas armas caras e poderosas, elas não evitaram a derrota e o colapso acachapante do regime mussoliniano. Depois do auge em 1943, quando trabalhavam nos estúdios 1.200 empregados que produziram cerca de 300 películas, Cinecittà passou para as mãos dos nazistas, foi bombardeada, depois transformada em hospital e campo de refugiados, e finalmente reaberta precariamente no pós-guerra. No final dos anos 1940, os americanos descobriram as vantagens de filmar na Itália os épicos caríssimos que iriam garantir a sobrevida de Hollywood perante o avanço irremediável da televisão. “Quo Vadis” (1950),“Ben-Hur” (1959) e “Cleópatra” (1963) são os exemplos mais faustosos desse período de ouro que também deu espaço à moda dos épicos de “espada-e-sandália” com halterofilistas fantasiados de Hércules, Ursus ou Ulisses, sucedidos pelos Djangos e Ringos dos “western spaghettis”.
Makin’ of de Cléopatra
Depois desses ciclos salvadores, Cinecittà entra num período de altos e baixos em que se evidenciam os vícios típicos da administração pública italiana – reconhecidamente péssima –, trazendo os perigos de uma falência iminente e de alguns incêndios de vulto. Cineastas- cinéfilos como Francis Ford Coppola e Martin Scorsese – ambos de origem ítalo-americana – ajudaram a romper esse ciclo de decadência ao transferirem para Cinecittà projetos de porte como “O Poderoso Chefão: Parte III” (The Godfather: Part III, 1989) e “Gangues de Nova York” (Gangs of New York, 2002). Todavia, são as produções televisivas – como a série “Roma” – e as publicitárias que têm garantido a sobrevivência dos míticos estúdios (privatizados desde 1997) numa era de impiedosa competitividade entre os diversos parques de produção cinematográfica cada vez mais atualizados tecnologicamente e espalhados pelo mundo.
Cinecittà sobreviveu a tudo isso. Mas hoje enfrenta um desafio novo e mais sorrateiro: os efeitos imprevisíveis da “disneylização” desajeitada de um nome e de um legado imponentes.
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