Estréia nesta sexta-feira em circuito nacional “Quando Eu Era Vivo”, longa-metragem de Marco Dutra estrelado por Marat Descartes, Antonio Fagundes e Sandy Leah. E, a despeito da visibilidade que a participação destes dois últimos confere à produção da RT Features, o filme promete dar o que falar. Em primeiro lugar, por se tratar de um filme de terror – gênero que não costuma ser recorrente na filmografia nacional. Segundo, pela abordagem do cineasta, mais afeito ao tipo de horror psicológico que se fazia nos anos 1970 do que à parafernália pirotécnica que se convencionou atrelar a este tipo de produção nos últimos anos. Para o diretor, não existe espaço para zumbis acrobatas, capazes de dar flik flak em rodas de capoeira, muito menos vampiros “estilo Matrix”, como aqueles vistos na série de cinema “Underworld”. Em entrevista, conversamos com ele e parte do elenco, após a sessão privê, nesta última quarta no Rio de Janeiro.
Baseado no livro “A Arte de Produzir Efeito Sem Causa” (Companhia das Letras, 2008), de Lourenço Mutarelli, o filme conta a história de um filho que abandonou o emprego e a mulher, retornando à casa do pai, agora sem a presença da mãe, já falecida, e do irmão caçula, internado em um manicômio. O cineasta conta que viu no enredo a possibilidade de exercer um filme de terror, segmento que lhe é caro e que já havia exercitado no seu primeiro longa (Trabalhar Cansa, 2011), faturando o Prêmio Especial do Júri no Festival de Paulínia neste mesmo ano e sendo selecionado para a mostra Un Certain Regard, em Cannes, co-dirigido pela sua principal colaboradora, Juliana Rojas, agora responsável pela ótima montagem.
Fotos Flora Dias (Divulgação)
“Quando eu era garoto, ia à vídeo locadora e não entendia porque existia uma prateleira com a chancela “Filme Nacional”. Isso não é gênero. Gênero é terror, comédia, sci-fi, drama e por aí vai. Aliás, ainda vou realizar um musical. Adoro muitos deles”, confessa Dutra, 33 anos, paulista da gema formado pela ECA/USP. Ele é daquela cepa que se formou lendo o horror-pipoca de Stephen King, assistindo blockbusters e tomando susto com monstros notórios como Jason, Chucky, Michael Myers e Freddy Krueger e, felizmente, não é herdeiro daquela turma que, no Brasil, acreditava que bom cinema só se fazia com uma ideia (política) na cabeça e uma câmera na mão, repetindo Goddard (em tediosas sequências de cenas que iam e vinham) e fumando desbragadamente em mesas de bar entre goles de scotch nacional. Fruto da geração que foi criança nos anos 1970/1780 e que, por isso, cresceu familiarizada com a fantasia (por vezes macabra) de Steven Spielberg, George Lucas, Tobe Hooper e John Carpenter, ele pode se dar ao luxo de fazer cinema fantástico sem aquelas cobranças que a fornada anterior de cineastas fazia a si mesma.
E mais: embora tenha formado sua cultura visual ao longo dos anos 1980/90, quando a supremacia do aparato tecnológico já se sobrepunha ao roteiro, faz parte daquela rapaziada que curte o bom terror psicológico dos anos setenta. Sim, parte de sua cultura pode até ser resultado do horror repleto de efeitos especiais, que começou a engatinhar com “Poltergeist – O Filme” (idem, de Tobe Hooper, com roteiro de Steven Spielberg, MGM, 1982) e que encontra hoje seu ápice naqueles longas derivados de videogames (como Resident Evil e Silent Hill), que mais parecem filmes de ação, onde as evoluções da câmera amplificadas pela tecnologia 3D e a verborragia da computação gráfica levam a tal velocidade de edição “estilo Matrix”. Estes, obviamente, se afastam daqueles genuínos exemplares do susto na tela grande, concebidos por mestres na carpintaria cinematográfica, como Carpenter, Wes Craven ou George Romero. Dutra opta por este tipo que embrulha o estômago, causa frieira, boca seca e deixa as veias nas têmporas latejando de medo. Portanto, apesar de conhecer o fino da filmografia atual, é dotado de referências de décadas anteriores e se diverte usando ferramentas que já foram testadas por outros realizadores em épocas passadas.
O cineasta prefere evocar figuras fantasmagóricas do além (com direito ao espectro de mãe e presença do demônio) em uma linha mais formal, clássica até, naquele estilo que se consolidou nas décadas de 1960/70, ainda que faça uso, na história, de videocassetes e personagens assistindo trechos antigos de filmes caseiros, recurso que remete ao terror atual em películas como “O Chamado” (The Ring, de Gore Verbinski, Dreamworks SKG e outros, 2002) e “Atividade Paranormal” (Paranormal Activity, de Oren Peli, Solana Films, 2007). Mas, quando questionado, ele faz questão de enfatizar que não se espelha nesses exemplos contemporâneos de cinema fantástico, mas que tudo já estava ali, no roteiro, fazendo sentido. De fato, pelo uso de uma iluminação escura, mais sombria, retrô e bem menos azulada que a das produções modernas, o film maker parece estar praticando um cinema mais próximo de um Brian de Palma setentista que evocando sucessos de bilheteria mais recentes.
Assim, Dutra retrocede no tempo para fazer seu público gelar. Certamente, ele passa por 1976, ano pródigo para o gênero terror, quando Brian de Palma estourou com “Carrie, A Estranha” (Carrie, United Artists) e Roman Polanski lançou seu inquietante “O Inquilino” (Le Locataire, Paramount Pictures), chegando ao limiar da década de sessenta, com as taquicardias de “Os Inocentes” (The Innocents, de Jack Clayton, Twentieth Century Fox, 1961). Certamente, o horror do diretor é mais cotidiano e, mesmo bebendo de fontes sobrenaturais, se aproxima daquele tipo de medo muito mais real, como o que leva um pai e um filho a sentirem estranheza por desconhecer um ao outro, mesmo fazendo parte da mesma família. Na verdade, a roupagem do gênero acaba sendo valiosa ferramenta para um roteiro que fala de uma relação familiar e isso parece nortear a cabeça do cineasta. Como exemplo, Marco Dutra cita o mestre do suspense Alfred Hitchcock: “Em “Rebecca” (idem, Selznick International Pictures, 1940), todo aquele mistério serve para falar da presença que a esposa anterior ainda ocupa naquela casa e na vida de seus habitantes, mesmo depois de supostamente morta e de o proprietário já haver casado com outra. O medo ali serve para metaforizar o terror de substituir alguém dentro do coração”, afirma o diretor.
O elenco, de maneira geral, está bem, com ótima intensidade passada por Kiko Bertholini em sua curta participação, e mesmo Sandy Leah, escolhida a dedo para o papel pela necessidade de se ter uma cantora-atriz com dotes vocais destacados, funciona dentro do conjunto onde, naturalmente, Antonio Fagundes está brilhante como aquele pai que, embora não seja afetivo, é efetivo, revelando angústia ao tentar entender o que acontece com seu filho. Este, interpretado por Marat Descartes – ator-fetiche do diretor – atinge brilho com seu misto de contenção, tristeza lacônica e gradativa loucura, e é responsável pelos maiores sustos do longa. Possuído por um espírito ou apenas alguém que enlouquece gradualmente? Essa é a pergunta que a platéia faz ao longo da projeção. Descartes menciona, inclusive, que pensou no Jack Torrance de “O Iluminado” (The Shining, de Stanley Kubrick, 1980), o personagem do livro de Stephen King que ganhou vida no cinema através de Jack Nicholson. Ambos se entregam à atmosfera lúgubre do cenário e sucumbem à loucura, mas, ao contrário do histrionismo deste, o Junior concebido pelo ator brasileiro imprime medo pela economia interpretativa, quase catatônica.
De qualquer forma, é importante ainda estabelecer que, tão importante quanto os atores de carne e osso, a elaborada cenografia (sob a batuta da diretora de arte Luana Demange) é praticamente protagonista do filme. Com um trabalho de produção de arte que deve ter demandado muitas idas a lojas de quinquilharias second hand, a reconstituição do decadente apartamento onde se passa a história é impecável, sobretudo quando se observa quão assustadores são aqueles objetos esquecidos pelo pai, que vão sendo aos poucos retirados do confinamento pelo filho e sendo dispostos pela casa, na tentativa de evocar um passado que não volta mais. Sim, todos nós temos um quartinho – ou um armário, caixa, baú, o que quer que seja – de pálidas memórias que, quando emboloradas, despidas de significados alegres, mais parecem espectros a ocupar espaço em nossas vidas. E isso é assustador. E é com esse requinte de detalhes que a cenógrafa chega a dispor em uma prateleira, como naqueles terríficos filmes de décadas passadas, de um boneco do Fofão, aquele personagem da “Turma do Balão Mágico”, o antigo programa infantil da TV Globo. Óbvio que sua simples presença, aliada à sua cabeleira vermelha espetada e à iluminação sombria, se encarrega de imprimir susto no público que, por associação subliminar com Chucky, aquele homicida brinquedo assassino, a todo o momento imagina que uma entidade qualquer possa tomar posse do boneco.
No mais, vale à pena fechar observando a eficaz edição de som (Paulo Gama e Gabriela Cunha) e boa trilha sonora, a cargo de Guilherme e Gustavo Barbato e do próprio Marco Dutra, lembrando que a canção de ninar que o protagonista resgata da memorabilia da mãe, sussurrada por ele e pela açucarada voz de Sandy, tem efeito similar ao assustador cântico sacro (Ave Satani, genial, composto por Jerry Goldsmith) entoado na trilha sonora de “A Profecia” (The Omen, de Richard Donner, Twentieth Century Fox Film Corporation, 1976). Como neste, o recurso escolhido pelo diretor de deslocar uma sonoridade de sua inocente atmosfera original para impregná-la com significado demoníaco é suficiente para causar calafrio. Quando o realizador se refere ao uso de ferramentas presentes na cinematografia mundial, é este tipo de expediente a que ele se refere. Vale conferir, além de esperar pelas próximas realizações do diretor: “Quero fazer dois novos filmes: um sobre uma mãe grávida de um lobisomem e outro sobre vampiros”, confessa.
Assista o trailer abaixo!
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