*por Vítor Antunes
Em meio à ditadura militar, “Sem Lenço, Sem Documento“, a segunda novela de Mário Prata, se propôs a discutir a presença e o protagonismo das empregadas domésticas na sociedade brasileira. Embora tenha sido precedida pelo sucesso de “Estúpido Cupido“, “Sem Lenço, Sem Documento” não obteve o mesmo êxito. Agora, esta obra será resgatada pelo projeto Fragmentos e estará disponível no Globoplay a partir do dia 16. O folhetim marcou a estreia de Bruna Lombardi e consolidou Christiane Torloni como uma revelação, segundo a crítica da época, ainda que ela já tivesse participado de “Duas Vidas“. Apesar disso, quase nada foi preservado da novela, exceto seis capítulos, que serão reexibidos na plataforma de streaming. A trama foi protagonizada por Ana Maria Braga, irmã de Sonia Braga, cujo nome coincide com o da apresentadora do programa “Mais Você” e as fotos na internet muitas vezes estão erradas e relacionadas à Ana Maria Braga, a apresentadora. Relembre os bastidores, a recepção da trama pela crítica e o contexto televisivo de 1977.
Trinta e cinco anos antes de “Cheias de Charme” (2012) retratar a vida das “Empreguetes”, a TV Globo já abordava as aventuras de um grupo de empregadas domésticas. Inicialmente, o título de trabalho da novela seria “Carteira Assinada”, porém, foi vetado pela Censura Federal. A personagem de Arlete Salles, uma das empregadas, foi orientada a ter aulas de boas maneiras, algo que curiosamente se repetiria anos depois em “Lua Cheia de Amor” (1990), quando Arlete interpretou Kika Jordão, outra personagem que precisava aprender a se portar. Em “Sem Lenço, Sem Documento“, a personagem de Arlete era uma fã fervorosa de fotonovelas, chegando a se imaginar nelas, uma referência explícita à abertura da novela, que apresentava imagens desse formato popular da época.
CAMINHANDO CONTRA O VENTO – E A AUDIÊNCIA
Ainda que fosse carente de uma trama central definida – propositalmente, segundo o autor –, “Sem Lenço, Sem Documento” começava com a chegada de Rosário (Ana Maria Braga), uma jovem que deixava Olinda, Pernambuco, para escapar de rumores que a atormentavam em sua cidade natal e em busca de uma nova vida. A escalação de Ana Maria Braga foi inicialmente alvo de incertezas, como apontou Hildegard Angel, à época crítica de televisão, que descreveu o teste da atriz como “sem grandes entusiasmos”. Ana Maria, que começou no teatro infantil interpretando Magali em uma peça da Turma da Mônica, fez uma montagem com Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) e dali foi convidada a fazer um teste para a trama.
Outro arco da trama era metalinguístico, narrando a história de Marco (Ney Latorraca) e Carla (Bruna Lombardi). Esta última era uma modelo que escrevia poesias, e sua participação na novela foi a estreia de Bruna na televisão. À época era considerada “a modelo mais cara do Brasil”, estava também lançando seu primeiro livro de poemas. O papel de Carla foi originalmente pensado para a atriz Silvia Falkenburg, que posteriormente adotaria o nome artístico Sylvia Bandeira. Ney Latorraca interpretava um autor acusado de plágio, uma crítica velada à própria experiência de Mário Prata, que havia sido alvo de acusações semelhantes com sua obra anterior, “Estúpido Cupido“. Coincidentemente, a novela Espelho Mágico, também de 1977, explorava temas semelhantes, trazendo a vida real para as telas.
A proposta de Mário Prata era ousada: apresentar uma história sem protagonistas definidos, na qual os personagens se desenvolveriam ao longo da narrativa. No entanto, a novela foi marcada por uma passagem de tempo abrupta de seis meses, tentativa de simplificar o enredo, que se perdia em tramas paralelas. “Sem Lenço Sem Documento” prometia explorar as complexas relações entre patrões e empregados, indo além dos estereótipos. Segundo o diretor Régis Cardoso, “não havia protagonistas, mas um painel de tipos cujas histórias se entrelaçavam”. Ainda assim, a novela não conseguiu cativar o público.
Em 1977, a crítica Maria Helena Dutra, do Jornal do Brasil, observou que as novelas daquela época enfrentavam uma crise de qualidade, com “Nina“, “Espelho Mágico” e “Sem Lenço Sem Documento” fracassando em audiência. Mesmo com ajustes na narrativa para atrair mais espectadores, “Sem Lenço Sem Documento” não alcançou os índices esperados, registrando 57% de audiência, enquanto sua antecessora, “Locomotivas“, atingia altos picos. Com audiência e repercussão aquém do desejado, a novela foi encurtada, encerrando-se com 149 capítulos.
Durante as gravações, Christiane Torloni e Dennis Carvalho se conheceram. Segundo relato da própria atriz à Revista Manchete, Denis se aproximou após uma entrevista “ousada” que Christiane concedeu à época. Joana Fomm, que havia passado pela TV Tupi, retornava à Globo depois de um hiato de oito anos, iniciando um ciclo de grandes sucessos na emissora. Sua última novela na Globo havia sido “A Última Valsa“, em 1969. “Sem Lenço Sem Documento” também marcou a estreia de Jonas Bloch na emissora.
Bruna Lombardi, em sua estreia como atriz, interpretava Carla, uma “feminista branda”. Na abertura da novela, aparecia um casal formado por Robin, um dinamarquês, e Silvana, uma modelo. A trilha de abertura era a icônica “Alegria, Alegria“, de Caetano Veloso, que mais tarde, em 1992, seria usada como tema da minissérie Anos Rebeldes.
Com o resgate de “Sem Lenço Sem Documento” no Globoplay, o público contemporâneo terá a chance de conhecer uma obra que, embora tenha passado despercebida em sua época, oferece hoje uma perspectiva fascinante sobre o contexto televisivo de 1977.
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