Protagonista de “Cine Holliúdy”, Larissa Góes lecionou para surdos e retrata a importância das representatividades


Com uma breve passagem pela televisão, quando esteve no elenco de “Velho Chico”, novela de 2016, a atriz agora é um dos principais nomes da primeira linha de shows da Globo. Muito jovem, Larissa foi destinada a dar aulas de teatro para surdos e descobriu que muitos deles entram na escola tardiamente, ainda que para aprender a LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais. Estudos revelam que são poucos aqueles que comunicam-se de forma devida usando o idioma. A atriz fala sobre representatividades preta, nordestina e surda. Causas que a mobilizam e destaca a importância de todos os programas da Globo que estão no ar atualmente terem ao menos um protagonista não-branco

*por Vítor Antunes

Larissa Góes é a protagonista feminina de “Cine Holliúdy” , série de sucesso da Globo que vem no rastro do filme homônimo e está na terceira temporada. Além disto, pela primeira vez, a emissora traz em todos os seus projetos inéditos – incluindo programas da linha de shows, como o “Cine” – protagonistas não-brancos. Para Larissa “movimenta um traço forte do que é o Brasil. A série traz essa pluralidade de raça, de cor. Quando faz isso, mostra outros lugares de protagonismo e não coloca pessoas pretas em lugar subalterno. Também permite que muitas pessoas, muitas crianças, possam assistir e se sentir representadas”. A ausência de representação para a atriz era algo tão definitivo em sua infância que ela dizia ter querido nascer branca. “Eu queria ser (da cor) da minha tia, que é uma pessoa branca. E eu nunca tinha me dado conta disso”. Tomando a fala da atriz por base, mergulhamos nas pesquisas e trouxemos uma novela global afro excludente, “Água Viva” (1980).

Professora de teatro, uma das experiências mais importantes da carreira de Góes foi lecionar numa numa escola de surdos no Ceará, o ICES. A artista relata que “havia pessoas que entraram tardiamente na escola. Haviam alunos com 17 anos, com 30, as idades mais variadas”, o que revela a dificuldade da inclusão da pessoa surda na alfabetização em LIBRAS – a língua brasileira de sinais. A artista também discute a importância do reconhecimento da LIBRAS como língua e não como linguagem – ou seja, como uma variação do idioma normativo. De igual forma propõe um olhar de relevância desta para as pessoas PCD. “Eu não sou uma pessoa surda, eu sou ouvinte. Estando com eles, eu posso abrir escuta, estar ali e colaborar na integração social”.

Francis (Edmilson Filho) e Rosalinda (Larissa Goes). O casal romântico da terceira temporada de “Cine Holliúdy” (Foto: Estevam Avellar/TV Globo)

ENCONTRE SEU MUGANGO

Na variante linguística cearense, “mugango” pode ser traduzido como sendo “um jeito  engraçado e/ou personalíssimo de fazer algo”. Foi assim que Larissa Góes pensou para poder compor sua personagem, Rosalinda. “Tive de pensar nesse meu mugango, como dizemos no Ceará, nesse meu jeito de ser a personagem. Claro que não fiz isso sozinha. Eu não acredito no meu trabalho de forma solitária. Eu procuro pessoas que me permitam essa troca e o elenco foi muito generoso. Se dispunha a ensaiar, a encontrar novas formas de dizer. Matheus Nachtergaele, por exemplo, disse-nos que cada personagem tem um contraponto, de que nenhum deles é expressamente bom ou mau”, observa.

Quando fala de Rosalinda, a mocinha da história afirma que ela traz “uma dança, uma alegria, uma leveza, mas também um destemor e uma certa marra. É como ela própria se apresenta: “Sou Rosalinda mas não sou flor que se cheire“. A atriz também margeia e traz com relevo as questões femininas e feministas, por ser muito assertiva: “Ela larga a banda dela para ficar em Pitombas, cidade da série, após envolver-se com o Francis (Edmilson Filho). Mas ela não é dependente dele, de modo algum. A moça irá ministrar aulas de dança, vai fazer os filmes com ele… É uma mulher de atitude!”.

Vejo na Rosalinda as mulheres da minha família – Larissa Góes

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O papel principal de “Cine Holliúdy” chegou num momento inesperado. Larissa estava em cartaz e precisou abdicar desta para fazer a série da Globo. “Estava numa peça chamada ‘Zabumba’ e ainda tinha apresentações para fazer. Tive que me organizar por aqui por Fortaleza e vibrei muito por haver sido aprovada neste trabalho, ainda que tivesse de fazê-lo no Rio de Janeiro. Não podia deixar as pessoas que estavam na mesma montagem que eu ficarem desamparadas. Eles me acolheram”. Rosalinda é a primeira personagem de relevo na carreira televisiva de Larissa. A atriz esteve, em outra ocasião, no elenco de “Velho Chico“, de 2016.

Para compor a protagonista, a atriz diz haver inspirado-se em registros de mulheres ciganas. Povo culturalmente marginalizado, tal como os artistas. “Eu trago na personagem uma cigana, uma coisa que dialoga com uma mulher que dança, um corpo que se mexe no espaço e que tem força pré-determinada. Que se mostra como quer, que se compõe, se posiciona diante do que acredita e dos seus ideais. Vejo isto nesta mulher e trago nela outras questões além do sotaque e da corporeidade”.

O artista no Brasil ainda é marginalizado e é triste pensar que muitos brasileiros marginalizam também as criações artísticas e colocam-nos em locais contrários àqueles que nos identificam. Vejo minha profissão como composta de pessoas generosas, que compartilham  e trocam emoções, além de proporcionar sensações que transcendem o que está dito – Larissa Góes

“Sou Rosalinda mas não sou flor que se cheire” (Foto: Fábio Rocha/TV Globo)

NORDESTE-SE

Contando com “Cine Holliúdy“, todos os produtos de dramaturgia da Globo possuem protagonistas não brancos. Uma mudança de comportamento na emissora que sempre foi acusada que apresentar um Brasil escandinavo, onde os personagens principais eram, na maioria das vezes, aloirados ou brancos. Para Larissa, “Isso movimenta um traço forte do que é o Brasil. Ele traz essa pluralidade de raça, de cor. Quando mostra isso, voltamos a outros lugares de protagonismo. Especialmente quando não colocar pessoas pretas num lugar subalterno. É possível que os telespectadores assistam e se reconheçam”.

Larissa afirma achar “importante e necessário poder ir para outros lugares e haver outras discussões a partir disso. Tem muitas situações na minha vida que eu só fui reconhecer racistas depois. Como a de não abrir a bolsa dentro do mercado exatamente para fugir de olhares silenciosos sobre um possível furto. Isso foi algo perpetuado [pela sociedade]. O racismo está numa proporção gigantesca, mas tem detalhes que passam despercebidos. Quando tudo é agigantado passamos a ver que o buraco é mais embaixo. O movimento preto faz um trabalho de formiguinha para conquistar mais espaços”, argumenta. A fala da moça, especialmente no que tange ao audiovisual é assertiva. Novelas brasileiras dos Anos 1980 não apenas não traziam atores pretos como protagonistas como não os escalavam. No elenco principal de “Água Viva”  (1980), por exemplo, não havia um ao menos. Se considerado o elenco de apoio, apenas um preto: Clementino Kelé.

Fernando Eiras, Jorge Fernando e Ticiana Studart em cena de “Água Viva”. Um Rio de Janeiro branco (Foto: Acervo/Globo)

“Representatividade importa”, diz ela. E prossegue: “Uma criança preta, mesmo muito jovem, já sofre os olhares diferentes das pessoas. Eu já entrei numa loja e fui destratada, diferentemente do meu companheiro na ocasião, que era branco. E é algo tão naturalizado que eu só fui perceber depois. Quando a gente não tem contato com pretos protagonistas em produções artísticas, e em empresas, damo-nos conta de que elas têm um papel muito maior que o trabalho delas, mesmo que não queiram”.

Outro elemento importante trata-se da representatividade nordestina. A maior parte do elenco de “Cine Holliúdy”  é daquela região. Para Larissa, trata-se de um “movimentos de redescoberta do nordeste. Me sinto pertencente não apenas por carregar este lugar de protagonismo, que por si só já traz alguma responsabilidade na narrativa, na cara da série. Mas também por estar junto do Edmilson, que também é cearense e outros atores que movimentam a cena regional, como Cari Costa e Solange Teixeira que brilham em outros trabalhos. Eles são inspirações e desde o início da minha careira estão presentes. São referenciais. A série traz a mim muita identificação. Desde o lugar onde nasci, o meu sotaque e a propriedade de fala. É uma série original, com pessoas reconhecíveis”.

Quando apresentamos outras formas de Nordeste, que fogem do chão seco, da fome, e da pobreza e do sol ardente , isso é o que nos interessa. Isso enriquece , quando se ampliam percepções sobre o assunto. Eu gosto dessa interdisciplinaridade. Afinal, na região não há apenas cantores de forró, ainda que este seja um traço marcante não é o único. “Cine” está mostrando mas também outras camadas de Nordeste – Larissa Góes

Larissa Góes acredita que “Cine” representa uma outra possibilidade de Nordeste para além da estereotipação (Foto: Jamille Queiroz)

Larissa Góes acredita que representatividade é, mais que importante, algo definitivo (Foto: Jamille Queiroz)

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GRACIAS A LA VIDA

Ainda muito jovem, Larissa ministrou aulas de teatro para surdos. “Meu trabalho na sociedade surda surgiu quando eu tinha 18 anos. Um amigo intérprete de Libras lecionava teatro no ICES [Instituto Cearense de Educação dos Surdos] precisou sair daquela instituição e não havia quem desse aula. Só que havia um detalhe: Eu não falava Libras. Era um grande desafio assumir esse trabalho, aos 18 anos, e dar aulas para alunos que eram que eram mais velhos que eu”. Goes aponta para um panorama. A alfabetização em LIBRAS possui baixa penetração entre pessoas com graus variados de surdez. É o que sinaliza a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019. Apenas 1,8 % das pessoas com perda leve a moderada de audição sabe falar a Língua Brasileira de Sinais. Entre os que têm grande dificuldade de ouvir são 3% e os que não conseguem ouvir de modo algum, 35,8% sabe usar a Língua de Sinais.

Larissa diz que a preparação para as aulas era urgente: “Precisei estar numa escola onde  formei para ser fluente na Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Tenho alunos que ainda fazem teatro e querem se movimentar através da arte e isso é gratificante e bonito. Eu estava ali ensinando e não tinha muita ideia do movimento das pessoas surdas, já que eu sou uma pessoa ouvinte. Estando com eles eu posso abrir escuta e estar ali e, nessa integração social, auxiliar na integração dessas pessoas”.

LIBRAS não é linguagem. É língua. E é brasileira, não é universal. É construída a partir da nossa visão de mundo, da nossa cultura – Larissa Góes

Por haver lidado com pessoas PCD’s, Góes, além deste trabalho, optou por, em sua formação em teatro, fazer montagens inserindo pessoas surdas. “Eu fiz um trabalho com uma atriz surda, a Iro Rauen, que trabalhou comigo na peça de conclusão da disciplina de encenação, na minha Graduação em Teatro pela UFC (Universidade Federal do Ceará) e topou criar esta montagem, mesmo com todos os desafios e dificuldades”. Para a atriz, ainda que haja um maior debate por inclusão, e as coisas estejam acontecendo de forma mais acessível, tudo ainda é meio incipiente “É um passo, um movimento”. Ela própria, para tentar atingir um maior número de pessoas nas redes sociais, passou a fazer postagens mais acessíveis, tanto através do uso de hashtags, como de descrições das fotos, auxiliada pela Secretária de Cultura do Ceará, Camila Vieira, que é uma mulher de baixa visão, para prover descrições mais funcionais para pessoas PCD’s no Instagram.

Uma artista musical, Larissa fez uma playlist exclusivamente para compor a personagem da série global. “É uma mistura. Tem Marinês (1935 — 2007), Amelinha, Milton Nascimento, Fagner… Mas acho que a canção que define a personagem é da Mercedes Sosa (1935 – 2009). Trata-se de “La Maza“, a marreta, em espanhol. “Ela começa lenta e compassada e depois tem uma virada. É um giro da saia da cigana. É uma música que fala de luta e resistência. E diz: “Se não acreditasse em que me escuta, no que dói. Se não acreditasse no que resta ou naquele que luta (…). O que seria da marreta sem pedreira? Uma confusão de carne com madeira. Um instrumento sem menores pretensões. Se não acreditasse na loucura da garganta do rouxinol, (…) Se não acreditasse em meu som“. Para a atriz, a música traduz essa “Força inspiradora da personagem”.

Quando fala de si, remete a outra música. Não seria difícil pensar numa canção que traduza alguém que deu aula para surdos ou viu formas de incluir pessoas de baixa visão no Instagram, rede que é essencialmente visual. Ou para alguém que diante da escolha profissional, optou pelo sonho. Uma mulher que ao definir-se diz ser “esperançosa. Acredito que alguma coisa que eu possa fazer é nutrir a esperança. è um sentimento dos mais importantes. Se não nutro-o perco a vontade de fazer qualquer coisa. É um cainho, é essa espera que me move. Esperança somada à ação”. Tal como Paulo Freire (1921-1997), tão nordestino que ela, afirma que mais importante que a já citada esperança, é esperançar . Por esta razão, a moça afirma que a música que define o seu atual momento é “Sonho Impossível”, de Chico Buarque e Ruy Guerra. Afinal, é preciso lutar quando é fácil ceder e só assim será possível vencer o inimigo invencível. E deferida a vitória, o mundo verá uma flor brotar do impossível chão.