*Por Vítor Antunes
“Estamos diante de um destes espetáculos que nos reconcilia com o prazer de ir ao teatro. Uma pequena joia de sensibilidade e emoção”. Foi assim que numa crítica de 1984 Miguel Falabella foi apresentado pelo crítico Wilson Cunha, na Revista Manchete, quando ganhou o primeiro dos lotes de prêmios, dos quais se acostumaria a vencer durante a vida. Aos 65 anos, o multifacetado artista anuncia para este ano alguns – de seus inúmeros – trabalhos tanto no teatro, como nos streamings. Cotado para viver Raulzito Martínez em “Todas as Flores”, de João Emanoel Carneiro, Miguel não fará a participação especial de 15 capítulos na novela do autor de “Avenida Brasil” em razão de estar preparando-se para gravar para o Disney+ a versão audiovisual da peça “O Som e a Sílaba”, de sua autoria. Tal como na montagem teatral, Alessandra Maestrini viverá a protagonista. A série terá 8 episódios, começará a ser filmada em outubro e Portugal será o cenário para o encerramento das gravações.
Outros projetos já com lançamentos encaminhados são o musical “A Marrom”, que consta de uma montagem biográfica em homenagem aos 50 anos da cantora Alcione, e “O coro – Sucesso aí vou eu”, série com duas temporadas já gravadas e que será lançada pelo Disney+. Sobre o projeto audiovisual, o autor o apresenta como sendo um produto no qual “os jovens cantam clássicos da nossa música. O que considero ser algo muito importante. A série tem uma trilha irrepreensível”, diz. Miguel exalta o fato de que a trilha, cantada inteiramente por jovens, pode apresentar grandes nomes do cancioneiro popular para as novas gerações, que “não conhecem mais Lupicínio Rodrigues (1914-1964), Paralamas do Sucesso ou Titãs. Tudo acontece muito rápido”. Ainda segundo ele, a trilha sonora do espetáculo possui, além dos artistas citados, músicas de Angela Ro Ro, Chico Buarque, Gilberto Gil, Adriana Calcanhotto e Carmen Miranda (1909-1955).
Sobre “A Marrom”, Falabella sinaliza haver sido convidado pelo produtor Jô Santana e que seu maior desafio foi tentar ser original num musical biográfico. Conta-nos ele que acredita haver conseguido: “Achei o caminho através do Maranhão e, de maneira muito forte”. A peça estreia dia 25 de agosto, no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, e conta com um elenco majoritariamente negro. As seletivas foram iniciadas na cidade natal da homenageada e de lá vieram quatro atores. Tanto em “O coro” como em “Marrom”, a diretora assistente é Iléa Ferraz, experiente no segmento.
Fracassos e transgressões
Na longa carreira de Miguel Falabella, várias foram as peças em que o autor fez a direção ou ficou responsável por traduzi-la. Uma das peças em cartaz, “Summer”, que trata sobre a biografia da disco diva Donna Summer (1948-2012), não pôde sofrer grandes ajustes por uma questão contratual, de modo que o roteiro acabou um pouco mais limitado, como aponta o autor. O que faz um contraponto interessante com uma outra peça adaptada por ele, chamada “Algemas do Ódio”. Nesta montagem, de 1991, as alterações foram tamanhas e a peça fez um sucesso tão avassalador, que Miguel temeu que o autor original, Terrel Anthony, viesse ao Brasil e não reconhecesse a própria obra.
Nesta peça, Falabella tinha com companheiro de transgressão que era José Wilker (1944-2014). Ambos haviam, no ano anterior, recebido uma reclamação formal dos autores de “Mico Preto”, de 1990, por conta dos improvisos. Iam desde cenas faladas todas em inglês, ou gravadas olhando para o teto, ou de costas para a câmera. Miguel conta-nos que houve uma ocasião em que inventaram uma personagem, chamada Marietinha Aranha, da qual o ator não se lembra quem começou com essa história: “Um dia, não sei por que razão, Dennis Carvalho pediu que não entrássemos no estúdio com o roteiro, já que não decorávamos o texto. Passamos a improvisar muito de modo que as improvisações acabavam ficam uma loucura e rendiam cenas hilárias. Cada hora acontecia algo diferente com Marietinha. Ora ela era assaltada, ora tomava uma coronhada, ora saía do coma. No fim estavam todos falando de uma personagem que não existia, mas que foi permeando os capítulos, até que os autores reclamaram formalmente, já que eles não sabiam mais para onde ir. Estávamos muito doidos naquela época. Era uma loucura aquilo. “Mico Preto” foi um disparate, eu não sei como os nossos contratos continuaram válidos”, comenta bem humorado.
“Mico Preto” foi um disparate, eu não sei como os nossos contratos continuaram válidos – Miguel Falabella
Outro trabalho, “O Sexo e as Negas”, afamou-se pela polêmica. O autor quis fazer um trocadilho com o seriado “Sex in the City” e acredita, que o nome o qual batizou a série foi infeliz: “Creio ter sido mal compreendido. O título chegou mal nas pessoas. Eu devia ter batizado a série como “Cidade Alta”, já que a ideia surge na casa da Nieta, minha camareira e amiga de vida inteira, num aniversário em que fui e as mulheres comentavam acerca dos homens com os quais haviam saído. O Fred Reuter, ator, estava comigo e comentou “Olha que engraçado, parece o ‘Sex in the City’”, no que uma das mulheres retorquiu num sotaque carioca ‘É o Sexo e ar nega”. Mas, enfim, a série era linda. Essas coisas não me param. Segui com meu barco”, argumenta.
Diante de uma carreira vitoriosa, talvez o maior dos fracassos tenha sido a montagem de “Galvez, o Imperador do Acre”. A montagem, de 1984, passou por diversas mãos na direção, que acabou ficando com Luis Carlos Ripper (1943-1996). O espetáculo, de três horas e meia de duração, não deu público. Numa das vezes, um dos espectadores desmaiou. Na outra, a ministra da Cultura Esther Ferraz (1915-2008), dormiu na primeira fileira e seu ronco atrapalhou os atores em cena. A montagem saiu de cartaz no único dia em que teve público, por conta de uma greve dos músicos que recusaram a tocar por não haverem recebido.
Miguel diverte-se ao lembrar desse fracasso homérico, mas destaca os pontos positivos da montagem, embora a considere “um delírio”: “Recebíamos salário para ensaiar – e vínhamos de um momento muito duros de grana. Haviam músicas lindas do Eduardo Dussek. Sendo feita hoje, a peça talvez rendesse algo bem bacana, diante das técnicas atuais, mas, na época, a coisa não deu certo. O elenco era estelar e a peça foi importante por que me apresentou o Guilherme Karam (1957-2016)”. Pouco tempo depois de “Galvez”, ambos atores fizeram a montagem do primeiro sucesso da dupla “Miguel Falabella e Guilherme Karam – Finalmente Juntos e Finalmente Ao Vivo”.
“Quem Passou pela Pepe em brancas nuvens…”
“Quase pude ouvir a voz da Duse agora”, disse Miguel em determinado trecho da entrevista, quando chegamos, através da nossa conversa, batendo palmas no portão da antiga casa no prédio da Travessa Pepe, em Botafogo, onde Duse Naccarati (1933-2019), Falabella e os atores amigos, e “a família de caretas” dividiam-se nos três andares do edifício. A antiga moradora, bem como a maior parte dos amigos que conviveu com Miguel naquela época, caminharam resolutos para o passado. O tempo vivido ali tem fundamental importância na biografia do ator: “Ali na Pepe, eu, Vicente Pereira (1949-1993), Mauro Rasi (1949-2003), Claudio Gaya (1945-1992), Eduardo Dussek, Carlos Augusto Strazzer (1946-1993), Maria Padilha, Patricya Travassos tínhamos a concentração de energia de uma juventude que era um especial momento nas nossas vidas”, diz, saudoso.
Com efeito, boa parte do que se acostumou chamar de Teatro Besteirol nasceu ali, em algum dos três andares da Pepe. Época em que a coleção de fracassos era tanta que um dos residentes, Vicente Pereira, viu-se parafraseando o poema de Francisco Otaviano (1825-1889). Em vez de “Quem passou pela vida em brancas nuvens (…) não sentiu o frio da desgraça (…) só passou pela vida e não viveu”, Vicente Pereira declamava “Quem passou pela Pepe em brancas nuvens (…) não sentiu o frio da desgraça (…) só passou pela Pepe e não viveu”. Dos artistas que compuseram esse gênero teatral nascido nos anos 1980, permanecem, além de Miguel, o ator/cantor Eduardo Dussek e a atriz Thaís Portinho.
Sobre esta época, Miguel diz tê-la guardado em seu coração. “Eu acho que o Besteirol – aliás um nome que detesto e acho muito pequeno, por que chamar essa dramaturgia que fazíamos de besteirol, quando ela é pop, é algo como dizer que o Andy Warhol (1928-1987) é besteirol – é um humor que faz falta, porque nasce da civilização. É um humor que tem inteligência, que tem referência que nasce da civilização”, analisa. E prossegue dizendo que “Quando Vicente escreve um quadro baseado na Nouvelle Vague francesa, ou quando Mauro Rasi roteiriza “O Retrato de Doris Day”, é necessário ter referências para entender. Eu acredito que esse estilo dramatúrgico será olhado futuramente com outros olhos, porque o tempo e a distância sempre coloca as coisas em perspectiva. O que fizemos naquele tempo foi muito importante, muito vibrante e trouxe uma plateia de volta ao teatro naquele momento, rejuvenescendo o público que o consumia. Ainda que os temas e a vida tenham mudado, eu tenho esse momento é cristalizado. Guardo intocada esta efervescência”.
Reiterando o apresentado por Miguel, o professor Dr. Luís Francisco Wasilewski, que em sua carreira acadêmica debruçou seus estudos sobre o gênero, destaca a importância no teatro pós-ditadura: “O Besteirol trouxe de volta à cena brasileira o riso crítico na década de 1980, e Miguel Falabella soube com maestria retratar, sob a lente do humor, a sociedade brasileira. Acabou se tornando o poeta do insólito por captar com seu olho clínico o universo bizarro em que vivemos”.
Processo da família de Mauro Rasi e “A Camponesa Russa”
O início da década de 2000 marca o falecimento de Mauro Rasi e a montagem de um de seus maiores sucessos “Batalha de Arroz num ringue para dois”. Inicialmente tendo nele o principal personagem masculino e em Claudia Jimenez a protagonista feminina, a peça passou por um ajuste no elenco e por uma troca de “Claudias”. Jimenez passou a vez para a Raia. Após o falecimento de Rasi, a encenação foi feita em Portugal e acabou por gerar um imbróglio entre Miguel, Claudia Raia e a família do falecido dramaturgo, que era um de seus melhores amigos.
Nas palavras de Falabella, a questão jurídica é de uma “tristeza inexplicável. Eu montei o “Batalha de Arroz…” para que o Mauro morresse tendo algo seu em cartaz. E eu não teria nem idade para fazer o protagonista da peça”. O imbróglio jurídico ainda não foi plenamente resolvido mas, nas palavras do louro há uma certeza: “(Mauro) deve ter ficado muito triste. Era uma pessoa a quem eu queria muito bem. Foi uma loucura essa historia toda, que é quase kafkiana”, diz, citando Kafka (1883-1924), diante da surrealidade da situação. O ator finaliza citando uma frase de Chico Xavier (1910-2002), “Isso também passará”.
Sobre a polêmica atual de número de seguidores na internet ser porta de entrada para atuar como ator e a falta de conhecimento e educação, Miguel é mais abrangente: “Não é só restrito à nossa profissão. Você vê que estamos num momento crítico, caótico e triste, mas também não é um privilégio nosso, é coisa global. Recentemente vieram me perguntar sobre atores que saíram do BBB e eu disse: ‘Meu amor, eu vivo num outro mundo’.
Recentemente vieram me perguntar sobre atores que saíram do BBB e eu disse: ‘Meu amor, eu vivo num outro mundo – Miguel Falabella
A falência da educação pública se reflete de maneira brutal nas novas gerações. Estamos piores em razão de termos pessoas piores nos governando. Há uma dificuldade tamanha na interpretação de texto, sobretudo no teatro, o que é grave. É muito triste perceber isso, mas a gente tem que ser resistência senão o teatro deixa de ser verbo e passa a ser verba”. E continua, dizendo que “(Os atores) não conhecem História, não conhecem nada, (…) Não se discute mais teatro como política pública, não se discute nada! (…). Este regime político, se Deus quiser terá o seu ocaso. Somos mais fortes que tudo isso. O teatro sobreviveu a tudo, o teatro sobreviveu à Alemanha hitlerista, à ditadura militar onde as peças eram proibidas no dia da estreia…
Estamos piores em razão de termos pessoas piores nos governando. Há uma dificuldade tamanha na interpretação de texto, sobretudo no teatro, o que é grave. É muito triste perceber isso, mas a gente tem que ser resistência senão o teatro deixa de ser verbo e passa a ser verba – Miguel Falabella
Sobre o desconhecimento de cultura geral, o ator comentou que uma atriz que vira junto a ele o musical “Evita” achou até o último minuto que a protagonista da peça era um personagem ficcional. Espantou-se quando a jovem artista perguntou a ele se a ex-primeira dama da Argentina Evita Perón (1919-2002) existiu mesmo. De igual maneira, falamos sobre um outra atriz que não conhecia a falecida artista Dina Sfat (1938-1989) e ele nos brindou com uma de suas inenarráveis histórias junto à ex-mulher de Paulo José (1937-2021), sob a alegação que “isso tem que ser registrado”.
Segundo ele, Sfat convidara-o a dirigir a peça “Private Lives” do autor Noël Coward (1899-1973). Ao fim da primeira leitura, Falabella disse-lhe: “Dina, essa mulher é um viado! Tomando Martini, indo para coquetéis… Um viado!”. Pouco tempo depois, a atriz o procurado, dizendo haver desistido da montagem, motivada talvez, pela afetação da personagem. Ela o dissera: “Miguel não vamos fazer a peça. Eu sou uma camponesa russa, não posso fazer esse papel”, contou, às gargalhadas.
O menino do Cine Itamar
Criado na Ilha do Governador, Miguel tem muito do menino que passava horas no Cine Itamar, um poeira em art-déco, que havia na Ilha do Governador de então. Cinema onde sua avó o proibia de ir ao banheiro, em razão de haver uma lenda que “chinesas misteriosas davam bombons a crianças para fazer delas escravas brancas”. O menino míope que via projetada na tela as andorinhas que abrigavam-se na sala de projeção ao perceber as janelas do cinema abertas, é o mesmo que prendia o dedo entre os bancos de madeira do velho poeira. Os olhos azuis são os mesmos que, embora estando em São Paulo, retornam com frequência à Travessa Pepe, no prédio onde o santo azulejado permanece até hoje. Local onde haverá para sempre os abraços de Vicente Pereira em suas túnicas coloridas, onde a voz de Mauro Rasi lê as próprias peças divertidamente e melhor que qualquer ator, onde as pulseiras de Duse sacolejam eternamente e onde as memórias repousam num travesseiro que é “dobrado até virar um monturo”. A vida que chega lustra a cera brilhante do tempo. Esse menino, segundo o próprio Miguel, “nunca foi embora. Tem o mesmo olhar de encantamento do Cine Itamar”. Pois as coisas infindas, muito mais do que lindas, essas ficarão.
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