*Por Brunna Condini
No ar na série “Segunda Chamada”, Vilma Melo fala da personagem com paixão. “A Maria Expedita tem uma força imensa. Ela é mãe de dois filhos, um está no tráfico, é chefe da boca, e o outro, ela conseguiu matricular na escola”, conta. “Como mãe, ela sente porque não conseguiu salvar o mais velho, mas quer salvar o mais novo. Tenta de todas as formas que o filho seja salvo através da educação. Apesar de ser uma mulher simples, sabe o valor da educação. Sabe que quando você nasce menos privilegiado, é através dela que pode transformar sua realidade”.
São 50 anos de idade, 32 de carreira e 24 dando aula de teatro no município do Rio de Janeiro. “Sou funcionária pública, dei aula em escolas de Bangu e Realengo. Esse universo do ensino faz parte da minha realidade. E a série “Segunda Chamada” está linda”, diz Vilma Melo. “Há 14 anos estou dando aulas também no Centro de Artes Calouste Gulbenkian. Lá tem o Teatro Gonzaguinha e tenho um núcleo aberto. Dou aula para adolescentes, passando por alunos em situação de risco, até pessoas que procuram o curso porque querem se tornar atores, diretores, inclusive gente que tem outra profissão”.
Ela, que foi a primeira mulher negra a levar a estatueta na categoria “Melhor Atriz” no Prêmio Shell de teatro, com o espetáculo “Chica da Silva”, em 2017, se orgulha de ter entregue a premiação para um ex-aluno este ano. “O André Lemos foi o primeiro diretor negro a receber o prêmio em mais de 30 anos. E eu fiquei muito feliz, porque fui convidada para apresentar o prêmio, e isso foi um ano depois que ganhei, o que não é comum, mas foi como devia ser. Tinha que ser eu a entregar para ele”, lembra. “E 2019 foi a virada para o Prêmio Shell. Foi uma conjunção de diversidade: não tinha mais aquele padrão branco de um teatro de elite. Mudaram o olhar, o que é maravilhoso. E este prêmio é o mais antigo e tem muita influência sobre os outros. Tinha gente de todos os estados, gorda, magra, preto, branco. Quando a gente pega a foto do Prêmio Shell deste ano é um marco. Estamos caminhando a passos lentos, mas estamos. Quem não mudar, ficará para trás”.
Em um país que pouco valoriza o professor, e isso se reflete na educação, a atriz resiste. E diz que abastecer seus alunos de força para realizarem seus sonhos, a alimenta. “Me vejo muito no “Segunda Chamada” como professora, apesar de dar aula de dia. Tenho essa camada heterogênea nas minhas turmas. Tenho que dar a mesma aula, para um menino de 13 anos da comunidade, e para um adulto, que trabalha e estuda à noite. Já dei aula até para um legista, por exemplo”.
E como continuar dando aula diante desta realidade do país?
“Só muito amor. Você acaba absorvendo. Sei da vida dos meus alunos, me envolvo. Já estive operada, em casa, ensaiando com alunos para o teste de habilidade específica da Unirio e eles passaram. Não há gratificação maior. O amor é o que te move, saber que ali você pode colher muitos frutos. A Nathalia Balbino, por exemplo, que está em “Malhação”, foi minha aluna. E é ativista, era moradora do Complexo do Alemão. Meus alunos quando têm alguma conquista, me ligam e avisam. Você transforma caminhos para mudança do padrão daquelas vidas”.
Vilma também recorda seu encontro com a arte. “Foi forte. Quando fui fazer vestibular, não sabia o que fazer e aquilo me agoniava. Aí passei na Unirio com uma amiga, e eu, moradora de Realengo, me inscrevi. A vida me levou. E quando pisei num palco pela primeira vez me senti muito à vontade. Eu brincava, sem expectativas e não parei mais. O encontro com a minha atriz transformou tudo e tive muito apoio da minha mãe”.
Aliás, a mãe, dona Darcy, é a principal responsável pelo valor que a atriz sempre deu à educação. “Minha mãe, mulher negra, divorciada, suburbana me apoiou na minha decisão pelas artes cênicas. Ela disse para fazer o que meu coração mandava. Ouvi isso de uma mulher pobre, que lutou para ser datilógrafa, que teve até a quinta série primária. É uma sorte ter essa mãe”.
Além do trabalho na TV, Vilma também está no cinema com o filme ‘Três Verões‘, estrelado por Regina Casé. “Esse filme estreou agora e está rodando pelos festivais. Fiquei muito feliz de fazer parte dessa obra, é um trabalho de uma delicadeza extrema. A Regina Casé é uma aula. É incrível vê-la em cena. Com ela, coisas pequenas se tornam enormes. Você aprende muito observando”.
E fala da importância do espaço para atores negros, em qualquer tipo de papel. “O audiovisual é um retrato da sociedade. Falo para os produtores de elenco que eles podem ajudar a mudar esse olhar na sociedade. A primeira escalação quem apresenta são eles. Se esse produtor tem uma responsabilidade social, ele vai querer não continuar pactuando com uma realidade que exclui. E incluo as outras cores também, que não costumam ser vistas no audiovisual. Quebramos isso, por exemplo, colocando pessoas negras onde qualquer ator poderia fazer o papel. Sem dúvida, o teatro é mais democrático. Se não me dão trabalho, eu me produzo. Mas quantas Vilmas não podem fazer isso? ”
Presente também na internet, a atriz está na web série ‘Onde Está Mariana?’, que fala sobre feminicídio. E Vilma salienta que as questões sociais são constantes nas escolhas dos trabalhos. “Essa web série é produzida pela Cleo, está no IGTV dela e tem muita diversidade: Valesca Popozuda, MC Rebecca, entre outros. Falando de um tema grave, que incomoda e que tem que ser falado, não pode ser jogado para debaixo do pano. As estatísticas têm crescido, porque estão sendo mostradas. Acho que nós, como artistas, temos dever social. Já que estamos expostos, que a gente faça parte de uma mudança social que vá atingir as pessoas de forma positiva”, analisa.
E revela, que o tema delicado já esteve presente na própria família. “Minha mãe sofreu agressão por parte do meu pai, por isso se divorciou, há tantos anos. Ela não fala sobre isso. Mas ela se separou, rompeu com isso. Ela era uma mulher à frente de seu tempo, mesmo vindo de uma realidade de pobreza, ela nunca se deixou abater. Por isso a educação sempre foi tão importante e ela incentivou a mim e meu irmão a acreditarmos nisso, porque era uma coisa que ninguém nos tiraria”.
E Vilma vibra falando sobre o quanto anda produzindo. “ Ator geralmente ama trabalho, mas eu quase não durmo”, conta, aos risos. “Estou com 50, mas não paro e nem quero parar. Vou começar a gravar em janeiro a segunda temporada de “Segunda Chamada” e vai voltar a peça “Vale Night” em janeiro também. E dia 14 tem a estreia de “Três verões” nos cinemas de todo o Brasil”, anuncia, animada. “Ah, tem também a websérie “Cidinha dá jeito” com dicas de que com pouco você pode se alimentar. Estou também no filme “Reação em cadeia”, do Marcio Garcia, também para 2020.Gente, só trabalho”. Amém!
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