*Por Flávio Di Cola
Certa vez, o diretor de cinema e teatro Franco Zeffirelli definiu Piero Tosi quase como um mago porque ele trazia “o passado de volta ao presente”. Atores e atrizes se diziam literalmente tomados pelo personagem e sua época a partir do momento que endossavam os seus figurinos – evidentemente estupefatos pela espetacular qualidade das suas criações sob o ponto de vista artístico, artesanal e evocativo de tempos pretéritos. O perfeito domínio da confecção externa e interna do figurino, o projeto quase insano de captura através de tecidos e adereços genuínos do espírito secreto e inapreensível do passado, e sua fidelidade ao projeto artístico dos maiores diretores italianos em sua época áurea – Visconti, Fellini, Pasolini, Bolognini, De Sica, Zeffirelli ou Cavani – também podiam impor a esses mesmos atores sofrimentos atrozes. Claudia Cardinale, por exemplo, lembra que nunca pode sentar-se durante as longas e tensas filmagens de “O Leopardo” (Il Gattopardo, 1963), uma das obras-primas de Visconti, por que o corpete que Piero exigiu que ela portasse era autêntico da década de 1860 e sua antiga usuária era dotada de uma cinturinha de menos de 50 cm, padrão para as donzelas da aristocracia da época, o que exigiu da atriz uma completa transformação na sua maneira de andar, dançar e movimentar as mãos. Cardinale lembra: “Minha cintura era tão pequena que Alain Delon podia enlaçá-la quase completamente com as duas mãos”. Mesmo tendo um corpo que o próprio Piero Tosi reputava ser um dos mais plásticos e moldáveis que já vestira, Claudia – ao final das filmagens – herdou de sua personagem Angelica horríveis e doloridas placas de sangue em torno do seu tronco. Todavia, Visconti e Tosi jamais souberam desse sacrifício que a estrela entregou ao altar da Sétima Arte, pois numa época em que ainda havia “grandes mestres da tela” quem ousaria reclamar de tão ínfimo tributo para entrar na história do cinema?
Antes da homenagem de que Piero Tosi fora objeto em novembro do ano passado no Grand Ballroom de Los Angeles, o figurinista teve cinco quase-encontros com a cobiçada estatueta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. A sua primeira nominação para o Oscar de Melhor Figurino foi justamente por “O Leopardo” que mudou completamente o estatuto do figurino no cinema contemporâneo ao ter levado a culminâncias nunca atingidas o culto pela credibilidade histórica e pelo material autêntico como forma de tornar críveis e irrepreensíveis as reconstruções de época. Esse rigor se tornará um paradigma a ser perseguido nas evocações ambientais por toda uma geração de novos diretores como Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Stanley Kubrick, Terrence Malick, Roman Polansky, Bernardo Bertolucci, James Ivory, Neil Jordan, John Cameron, Terry Gilliam, Ang Lee e Anthony Minghella, entre outros.
Sua união com Luchino Visconti ainda lhe valeria mais duas indicações quase sucessivas: em 1970, por “Morte em Veneza” (Morte a Venezia), e em 1972 por “Ludwig, a paixão de um rei” (Ludwig). Os impagáveis figurinos para a drag queen Zazá (Michel Serrault) e seu marido Renato (Ugo Tognazzi) lhe trariam uma quarta nominação por “A gaiola das loucas” (La cage aux folles, 1978), enquanto o delirante vestuário para a versão cinematográfica de “La Traviata” (1982) de Zeffirelli significaria a sua quinta e última nominação. Dino Trappetti, dirigente da sartoria Tirelli – que confeccionou e que conserva a maioria dos figurinos de Piero Tosi num acervo que hoje é considerado patrimônio cultural da Itália – acredita que a associação do figurinista com um notório marxista como Luchino Visconti pode ter impedido o seu reconhecimento pela Academia de Hollywood justamente durante as suas décadas mais produtivas. Mas essa falta foi corrigida através do 15° Annual Governors Awards concedido pela mesma Academia em cerimônia privada especial e com alguns meses de antecedência em relação à premiação principal que ocorrerá no próximo dia 2 de março.
Piero Tosi foi apontado para o prêmio ao lado da veteraníssima Angela Lansbury, a inesquecível criadinha petulante que inferniza Ingrid Bergman no clássico “À meia luz” (Gas light, 1944) e de Steve Martin, honrado perpetuador da fabulosa linhagem de comediantes cinematográficos norte-americanos. Mas, segundo Trappetti, a indicação de Tosi para esse prêmio foi uma completa surpresa para a comunidade cinematográfica italiana, não só por ele ser um nome estrangeiro em relação ao sistema hollywoodiano, mas – principalmente
– por atuar numa área considerada subalterna em relação às cinco grandes funções
cinematográficas: produção, roteiro, direção, fotografia e atuação. Na verdade, a iniciativa de sugerir e lutar pelo nome de Piero Tosi na Academia foi da figurinista de “Os caçadores da Arca Perdida” – entre outros hits de Hollywood – Deborah Nadoolman Landis, mulher de
John Landis, diretor do festejado clipe de Michael Jackson “Thriller”. Aliás, a própria Academia demorou quase duas décadas desde a criação do Oscar para instituir a nominação de Melhor Figurino. Essa iniciativa só foi para frente graças à ambição implacável da legendária Edith Head que, em 1948, conseguiu estabelecer o prêmio – sem dúvida com a pretensão de ser a primeira a recebê-lo – o que desgraçadamente para ela não aconteceu, se bem que nos anos
seguintes Edith tenha arrasado: foi indicada 35 vezes, vencendo em oito oportunidades.
Piero Tosi, ao contrário, nunca foi seduzido pelo brilho dos prêmios e das celebrações. Embora
tenha recebido inúmeros troféus, principalmente no âmbito do cinema europeu, ele sempre
se definiu como um “pequeno artesão do espetáculo, mas que trabalha por detrás do espetáculo” e a quem as homenagens deixam “embaraçado”. Dino Trappetti narra o dia em que o e-mail da Academia chegou ao Atelier Tirelli, em Roma. As primeiras palavras de Tosi foram estas: “Este Oscar não é só meu. É também da equipe da Tirelli.” O escasso gosto de Piero por viagens longas e o seu delicado estado de saúde naquele momento fizeram com que ele renunciasse a receber o prêmio pessoalmente e pedisse ao presidente da Tirelli que se
responsabilizasse pela sua representação. Mesmo se ausentando, Dino conta que Tosi não deixou de se preocupar com a importância da homenagem e da lógica hollywoodiana que a
sustentava: “A comitiva da Tirelli em Los Angeles precisa de uma grande estrela na linha de
frente. Vamos convidar La Cardinale?” E no discurso pronunciado por Claudia perante as mais
importantes figuras da mais poderosa indústria audiovisual do planeta, ela não pode evitar
lembrar como fora literalmente “torturada” pelos figurinos de Tosi que vestira em tantos
clássicos fundamentais do cinema italiano e universal. Expoentes do star system hollywoodiano como Warren Beatty e Brad Pitt riram com reconhecimento e satisfação. Dino Trappetti explica: “A colônia cinematográfica compareceu em peso à cerimônia de premiação. Nesses momentos percebemos como essa classe é unida em Hollywood, principalmente quando é preciso afirmar o poder da sua indústria e das suas instituições. Na Itália, infelizmente, um encontro como esse seria impossível pela falta de união.” Entretanto, a magia e a expertise das sartorie italianas, mesmo assim, se fizeram presentes na recordação desses astros. Dino conta: “No final da cerimônia, Warren Beatty me procurou para me lembrar de um encontro que tivemos na Tirelli, em 1962, ao lado da sua namorada na época, Joan Collins, pois durante a preparação de “O Leopardo” ele fora cogitado para o papel de Tancredo, assumido depois por Alain Delon. Já Brad Pitt apareceu para nos cumprimentar pelos figurinos que Sandy Powell confeccionou no ateliê e que ele usou em “Entrevista com um vampiro” (Interview with a vampire, 1994, direção de Neil Jordan), pois foram os mais confortáveis que ele já vestiu!”
Do gracioso corpo de Claudia Cardinale ao super desejado de Brad Pitt, o legado de Piero Tosi
migra e sobrevive na imaginação e no aprimoramento do gosto visual do público de cinema,
embora ele mesmo seja – ainda hoje, aos 86 anos – um dos mais cáusticos críticos da “horrenda
vulgaridade” estética e comportamental do mundo contemporâneo. Zeffirelli acha que Tosi é
“um dos últimos representantes de um mundo que não existe mais”. Talvez exatamente por
isso, Piero seja ainda mais imprescindível para as artes e para a nossa vida.
* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Amante judiado e teimoso da Sétima Arte, suporta todos os contrangimentos na sua fidelidade às salas de cinema
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