*Por João Ker
Praia do Futuro é o quinto filme do diretor Karim Aïnouz. Com estreia nacional marcada para o dia 15, o longa-metragem já fez barulho no Festival de Berlim no início do ano e agora, finalmente, está pronto para conquistar os brasileiros. Estrelado por Wagner Moura, Jesuíta Barbosa e o alemão Clemens Schick, a produção meio brasileira meio alemã trata, em sua essência, sobre as transformações pessoais e a capacidade que o ser humano tem de se reinventar de acordo com sua necessidade.
Ainda assim, há uma preocupação latente por parte da equipe de que o filme seja tratado como apenas um “romance homossexual”. Reduzir um roteiro sensível e cheio de nuances sobre a psique humana é o mesmo que chamar o Brasil de “país do Carnaval”. Claro, por aqui a “festa da carne” é celebrada como em nenhum outro lugar, mas o país não tem só isso a oferecer. O mesmo acontece com Praia do Futuro: por mais que seus personagens principais, o salva-vidas Donato (Wagner Moura) e o motoqueiro Konrad (Clemens Schick), sejam homossexuais e vivam um romance ardente e imediato, o filme é cortado por outras temáticas que se sobrepõem e se entrelaçam ao longo da trama. Reduzí-lo a um de seus aspectos é ignorar o que ele tem de melhor: sua universalidade.
Como explicado pelo diretor e por Jesuíta Barbosa, o principal viés do roteiro é a transformação. Ou melhor dizendo, a reinvenção do próprio ser humano e o livre arbítrio que ele tem para ser quem quiser e escolher ser. Não importa se essa mutação de identidade aconteça graças ao encontro de um amor irrefreável e aniquilador, de um abandono inesperado ou de uma morte repentina. O fato é que os personagens de Praia do Futuro mostram ao público que essa metamorfose é possível, bem-vinda e muitas vezes necessária para o amadurecimento individual, mesmo que a princípio ela possa ser confusa e inesperada.
No filme, as cenas de sexo são cruas e chocantes, mas longe de serem escandalizantes. Elas mostram a cumplicidade entre Donato e Konrado e o modo como a paixão de ambos arde desde o princípio de forma espontânea e pura. Sem precisarem de muitas palavras, eles se apoiam nas expressões corporais e faciais que esboçam durante longos silêncios, sejam eles acompanhados ou existentes apenas no interior conturbado de cada um. Wagner e Clemens conseguem facilmente transpor para a tela o sentimento de um amor tão imediato e sufocante que a simples ideia da distância parece soar inadmissível para ambos. A cumplicidade que os dois mostram no filme vem de forma tão natural que, seja ela expressa durante carinhos pós-sexo ou no modo como um cuida do outro até nos mínimos detalhes, chega a comover. Jesuíta também brilha como Ayrton e, através das mesmas pausas reflexivas e interiorizadas que seu personagem tem ao longo da trama, consegue transparecer uma confusão de sentimentos que varia entre o total desconforto e desorientação à perturbação e felicidade de finalmente encontrar o irmão mais velho.
A fotografia em Praia do Futuro é um espetáculo à parte. O azul parece traduzir o sentimento dos personagens: claro e vibrante em Recife, quando o casal principal acaba de descobrir o amor correspondido e a felicidade dos dois parece não ter fim; escuro, silencioso e solitário nas primeiras cenas que aparecem em Berlim, transmitindo com clareza o que os americanos chamam de “feeling blue”; contemplativo, artificial e introspectivo através das piscinas e trampolins que Donato usa para espairecer e tentar encontrar uma solução para o problema do irmão recém-chegado. A cena do treinamento de salva-vidas parece uma coreografia poética de pernas e braços com o mar ao fundo. E há ainda as doses de humor que aparecem tanto nos desacatos de Ayrton quanto em cenas como a dança desengonçada e apaixonada do casal principal, servindo para descontrair e amenizar o clima de drama. Em todos os momentos, a câmera namora os atores como se eles estivessem em um projeto da antiga Nouvelle Vague e, é preciso ressaltar, pouquíssimos atores teriam o talento, a aptidão e o carisma de segurar takes tão longos, invasivos e contemplativos assim.
“O filme é o que ele é”, comenta o diretor Karim Aïnouz em entrevista exclusiva para o Site HT. “Eu não tenho medo de nada. A homofobia em relação a ele nunca foi minha preocupação. As pessoas perguntam ‘ah, você não tem medo de causar polêmica?’, mas isso não é polêmica. A corrupção e a violência que são polêmicas.” De qualquer modo, o cara que teve como seu longa de estreia o envolvente e violento Madame Satã não é nenhum principiante na arte de atrair a atenção do público. “O legal é você sempre fazer coisas que nunca fez. Nesse filme eu trabalhei com dublê, tive cena de afogamento, ele se passa em um período de oito anos – o último (O Abismo Prateado, com Alessandra Negrini) se passou em apenas uma noite, então a experiência toda foi satisfatória.”
Outra pessoa da equipe que tem passado por novas experiências é o ator-revelação Jesuíta Barbosa. Depois de ganhar o prêmio de Melhor Ator no Festival do Rio graças ao seu exímio trabalho em Tatuagem e de cair no gosto do público com sua atuação envolvente e impecável na série Amores Roubados, o horizonte nunca pareceu tão brilhante para o ator. “Eu estou vivendo o que está acontecendo e estou feliz com isso tudo. No momento têm aparecido muitos trabalhos e eu não poderia estar mais satisfeito”, comentou com exclusividade para HT. Em Praia do Futuro, ele faz a versão adolescente e confusa de Ayrton, o irmão caçula e fã número 1 de Donato. Depois de ser abandonado em Fortaleza quando o irmão mais velho decide morar em Berlim para viver seu romance com Konrad, Ayrton espera oito anos e vai à Alemanha atrás do seu “herói”. Para o ator pernambucano, essa figura homérica e inspiradora é encontrada nele mesmo: “Eu me desafio, gosto de me ver e me considero meu herói sem nenhuma modéstia. Claro, existem meus pais também, mas eu tento ser o herói de mim mesmo”. E ele está conseguindo. Seu trabalho ao construir Ayrton está na mesma altura do de Wagner Moura ao construir Donato (“Ele é um demônio”, elogiou Wagner antes de apresentar o longa). Provando papel após papel que tem um carreira promissora, Jesuíta já está atraindo a atenção de tabloides e dos inescrupulosos sites de fofoca, mas isso não é nada que o incomode. “Eu quero mais é que eles falem”, comenta o jovem de recém-completados 22 anos, gozando seu tão merecido sucesso.
De qualquer maneira, o cinema nacional parece ter encontrado um nicho que há muito passa despercebido e que, finalmente, vem sendo celebrado este ano. Recentemente, uma espécie de trilogia informal composta por Praia do Futuro, Tatuagem e Hoje Eu Quero Voltar Sozinho colocou, cada um a seu modo, personagens homossexuais no papel central e, melhor que isso, fugiu do estereótipo e do que o público está acostumado a ver de forma esdrúxula e caricata na TV. Ainda pode ser cedo para dizer, mas não é difícil imaginar que o filme de Karim faça um certo sucesso – mesmo que de forma tímida – nas bilheterias nacionais. E assim, aos poucos, o Brasil deixa de ter apenas a Praia do Futuro para ter uma população que não precisa nem ser futurista, mas apenas menos retrógrada.
Fotos: Zeca Santos
Trailer de Praia do Futuro
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