Por onde anda Aisha Jambo? Atriz de “Cabocla” e “Alma Gêmea” estará no teatro debatendo reflexos da escravidão


Atriz que marcou presença na TV desde o início dos anos 2000, destaca-se pela representatividade negra em suas personagens. Atualmente, suas atuações podem ser vistas em reprises como Alma Gêmea e Cabocla, além de seu envolvimento na peça A Desmontagem da Escravidão, que será transformada em curta-metragem. Aisha reflete sobre a evolução do mercado audiovisual: “Vejo o atual momento em que há mais negros nos elencos e sendo protagonistas de um modo muito promissor, e que finalmente o povo brasileiro vai poder se ver representado nas telas com dignidade”

*por Vítor Antunes

Quando ela surgiu na tela da TV, ainda eram pouco notadas as presenças de adolescentes negras na televisão. Aisha Jambo fez Malhação, dando vida à Naomi, par de Cabeção (Sergio Hondjakoff), e, depois disso, diversas obras, dentre as quais, duas estão no ar: Cabocla e Alma Gêmea. No que tange às novelas, ela está fora do ar desde 2017, com O Rico e Lázaro. Além das novelas atualmente em reprise, Aisha pode ser vista na peça A Desmontagem da Escravidão, na qual atua e coproduz com Paulo Mileno, e que vai virar um curta-metragem de ficção. Ela também está idealizando um documentário de longa-metragem sobre Vanja Ferreira, a primeira harpista negra do Brasil e mãe da atriz. Aisha também poderá ser vista na 4ª temporada da série A Divisão, no Globoplay.

Sobre as reprises de Alma Gêmea e Cabocla, Aisha diz estar sentindo-se num “universo afrofuturista com a reexibição. Eu me conecto com esses trabalhos com muita emoção porque eles têm uma importância fundamental na minha carreira e na história da televisão brasileira. É sempre bom lembrar que não eram personagens estereotipados e tiveram peso no roteiro e, até hoje, o público se identifica, sendo personagens que ficaram eternizadas em seus corações. Eu agradeço as combinações perfeitas: Walcyr Carrasco no roteiro genial e Jorge Fernando (1955-2019) na direção, igualmente brilhante, e em Cabocla Benedito Ruy Barbosa e Ricardo Waddington, com quem retomei a parceria iniciada em Malhação. O Ricardo é um diretor muito exigente e também muito motivador”, analisa.

“Faço televisão há praticamente 25 anos e hoje a realidade é outra. Tivemos uma evolução do mercado e do próprio formato dos folhetins, o que gerou uma recente democratização e diversidade do mercado para atores, roteiristas, diretores e, inclusive, produtores de elenco. Nessa retomada, o mercado mudou profundamente, com o fortalecimento do streaming, quando as pessoas não podiam sair de casa e ficavam consumindo lives e séries. Continuo sendo convidada para trabalhos e testes para novelas, séries e filmes. (…) .Eu sei que sou referência na história recente da televisão brasileira e latino-americana sobre a representatividade da comunidade negra, e as narrativas negras estão em ascensão. Estou muito feliz com os convites mais recentes que foram escritos especialmente para mim, no audiovisual e no teatro, como os curtas-metragens Paçoca e Do Outro Lado da Linha e o espetáculo teatral A Desmontagem da Escravidão.”

Aisha Jambo faz diversos trabalhos, além de estar no ar em duas reprises da Globo (Foto: Eduardo Moenne)

PASSOS E PÉS NO CHÃO

Entre os próximos projetos da atriz, há uma montagem para crianças, o espetáculo Malaika e o Mundo dos Sentidos, parceria que surgiu na Casa Poema da Elisa Lucinda, que mescla poesia e apresenta a kalimba, instrumento musical africano. Além da peça A Tropicalíssima Mercedes, espetáculo sobre Mercedes Baptista, que deve ser dirigido pela Zezé Motta, e a peça Desdêmona, série sobre mulheres e que é inspirada em Shakespeare.

Por falar em Mercedes Baptista (1921-2014), esta foi a primeira bailarina negra do Theatro Municipal do Rio e coube a ela fazer o balé de pés no chão. Ao falar de Mercedes, Aisha lança luz sobre pertencimento. E, por abordar o assunto, faz uma peça que debate a escravatura: A Desmontagem da Escravidão. “A importância de debater a escravidão ainda hoje é de primeira grandeza. Conforme diz o professor Henrique Cunha, foi fixada no imaginário social brasileiro a falsa ideia de que o escravizador europeu era detentor do conhecimento, produtor da cultura que comandava as atividades econômicas. Consequentemente, restaria ao escravizado o lugar do inculto, do não civilizado, do não produtor e não operador dos conhecimentos. Quando, na realidade, ocorreu o inverso: os escravizados detinham os conhecimentos profissionais, em razão desses terem sido desenvolvidos nas civilizações africanas”, teoriza.

Além disto, ela prossegue dizendo que “outro fator que sempre foi encoberto na chamada história ‘oficial’ do Brasil é que todas as culturas realizadas na economia brasileira eram culturas de climas tropicais e de solos também tropicais. Isso apontava que os conhecimentos não foram desenvolvidos nas culturas europeias. Nesse sentido, reforçamos o que o professor Henrique enfatiza sobre a existência e persistência de um despreparo da maioria dos professores, pesquisadores e historiadores brasileiros quando se trata sobre esse período ainda obscuro que foi a escravidão”.

Parece que a contribuição do negro foi somente com o trabalho braçal, sendo ignorada totalmente a sua história antes da própria escravidão e a resistência durante a escravidão. “O que nos interessa é falar justamente sobre isso e o afrofuturismo. Eu enxergo a questão negra como afirmação do sujeito negro e orgulho da sua identidade, e os debates sobre representatividade ganham cada vez mais força dentro dessa perspectiva de mudança social, que sempre foi um dos objetivos na minha carreira” – Aisha Jambo

Ainda na questão da representatividade, Aisha era uma das poucas negras a estarem presentes na TV no início dos anos 2000. Perguntamos como ela vê o atual moment, em que há mais negros nos elencos e sendo protagonistas. “Eu sei que fui uma das poucas mulheres negras a estar presente na TV e com destaque na primeira década do milênio. Assim como  Malhação, da mesma forma em Alma Gêmea, as minhas personagens impactaram o público pela sua altivez, espiritualidade e estética diferente, como o uso de turbantes. Nas histórias, a representatividade é uma questão da construção da estrutura do roteiro e que não é isolado; eu faço parte das tramas centrais e tenho um peso no roteiro. Sabina Belec, de Alma Gêmea, por exemplo, era uma personagem importante, pois trabalhava essa questão da mediunidade.”

Eu gostaria de citar o grande mestre do documentário brasileiro, Eduardo Coutinho (1933-2014), quando fala que a religião é o grande tema do Brasil. Bem como gostaria de falar que minhas personagens não eram personagens estereotipadas. A de Malhação era estudante da classe média em escola particular, e a outra era uma princesa negra, vinda da Martinica, de uma família nobre” – Aisha Jambo

Aisha segue destacando que “ambas as personagens eram despojadas e autênticas. Conforme disse a nossa diva e mestra, Léa Garcia (1933-2023), quando o negro não é representado de forma estereotipada e é bem-sucedido, isso satisfaz o ego da comunidade negra, mas também o personagem não tem nenhum peso na história. E no contraditório desse status quo, eu consigo resolver essas duas equações com personagens bem-sucedidas e que têm peso na narrativa. Algo que, mesmo com as chamadas narrativas negras, a gente não vê acontecendo com frequência”.

Aisha Jambo e Erik Marmo em “Alma Gêmea” (Foto: Reprodução/Globo)

As palavras de Aisha Jambo contemplam o atual cenário em que a presença de negros nos elencos e, sobretudo, em papéis de protagonismo, despontam. “Vejo o atual momento em que há mais negros nos elencos e sendo protagonistas de um modo muito promissor, e que finalmente o povo brasileiro vai poder se ver representado nas telas com sua dignidade, respeito e autoestima resgatadas”.

Essa é uma fase que transcende a simples inclusão; é uma ascensão das narrativas negras, um resgate que rompe com séculos de silenciamento. Aisha relembra um marco de si própria: “É um momento de ascensão das narrativas negras e eu tenho o maior orgulho de ter sido, em 2011, a primeira protagonista de uma série de televisão pública que foi a personagem-título Natália da TV Brasil, onde tivemos o primeiro beijo gay de uma mulher negra.”

Reconhecendo que a diversidade não é uma conquista isolada, Aisha reflete sobre a mudança que se espalha por diferentes áreas da produção audiovisual: “É notório que a diversidade vem ganhando espaço e eu sinto que contribui muito para isso com o protagonismo e a condução em temáticas fortes nas histórias e como porta-voz no debate público.”

A atriz ressalta que esse avanço não se limita apenas ao que vemos nas telas, mas também se manifesta na criação, na escrita e na direção. “Hoje se fala de narrativas negras, temos a FLUP, os laboratórios para comunidade negra e indígena, e isso vem de um processo histórico de muita luta dos movimentos sociais, do qual sempre fui e continuo sendo baluarte, que também carrego um legado da minha família e dos meus ancestrais.” Ou seja, essa transformação é fruto de um longo e árduo processo de luta, do qual ela e tantos outros são parte intrínseca.

Aisha Jambo, Dhu Morais e Cosme dos Santos (Foto: Divulgação/Globo)

Ao citar os nomes de Taís Pontes, Renata Andrade, Hudson Martins, Mayara Aguiar e Jeferson De, Aisha Jambo evidencia que a mudança na televisão não é apenas superficial, mas uma reconfiguração profunda na indústria: “Gostaria de citar alguns exemplos de mudanças onde os negros também fazem parte da criação. Hoje temos a Taís Pontes e a Renata Andrade como autoras-roteiristas, o produtor de elenco Hudson Martins e os diretores Mayara Aguiar e Jeferson De, entre outros. Essa mudança, portanto, não é apenas no elenco, mas sobretudo no mindset da televisão.”

A invisibilização de artistas pretos na historiografia do teatro é, para Aisha Jambo, um reflexo amargo do apagamento sistemático que o racismo impõe sobre a consciência histórica de uma nação. Em suas palavras, ecoam tanto a dor quanto a resistência, como quando ela recorda seu trabalho na Casa Poema, ao lado de Elisa Lucinda e Geovana Pires, no espetáculo Solano – Vento Forte Africano. A construção do arcabouço teórico do espetáculo A Desmontagem da Escravidão tem como alicerce a obra e o legado de Abdias Nascimento (1914–2011), uma figura que deveria brilhar tão intensamente quanto os grandes nomes da dramaturgia nacional: “Eu trabalhei na Casa Poema com as minhas queridas amigas Elisa Lucinda e Geovana Pires com o espetáculo Solano – Vento Forte Africano e Abdias Nascimento é referência na construção do arcabouço teórico do espetáculo A Desmontagem da Escravidão.”

A atriz, ao refletir sobre a exclusão dos artistas pretos da historiografia, denuncia o ciclo de apagamento que permeia diversas esferas da cultura, desde a literatura até as artes cênicas, e que impacta até mesmo figuras notáveis como sua mãe, Vanja Ferreira, a primeira harpista negra do Brasil: “Eu vejo essa invisibilização de artistas pretos na historiografia do teatro como parte do apagamento que a consciência histórica que o racismo provoca na vida nacional. Se apaga o negro da literatura, do jornalismo e das artes em geral, como pintura, cinema e música. Por exemplo, a minha mãe, Vanja Ferreira, é a primeira harpista negra do Brasil. Somente nos meios acadêmicos se reconhece o protagonismo dela. E nós devemos lutar contra essa lavagem cerebral.”

Aisha Jambo, Daniel de Oliveira e Tony Ramos em “Cabocla” (Foto: Divulgação/Globo)

Aisha resgata a história de Solano Trindade (1908-1974), que, junto com Abdias Nascimento, pavimentou o caminho para o teatro negro no Brasil através do Teatro Experimental do Negro (TEN). Ela convoca a sociedade a reconhecer e valorizar essas contribuições que sustentam a arte negra e são a base para a dramaturgia voltada para essa comunidade: “Solano Trindade fez parte do Teatro Experimental do Negro (TEN) de Abdias Nascimento ainda na primeira metade do século XX e as pessoas não falam sobre esse legado. Eu creio que cabe a todos nós, o povo brasileiro, resgatar essa grande contribuição que foi feita pelos artistas pretos e que é o nosso apoio para o teatro preto estar de pé. Se ‘não existe’ dramaturgia para negros, vamos criar essas dramaturgias. Esse foi o papel do TEN, do Teatro Profissional do Negro (TEPRON), do Bando de Teatro Olodum, da Cia dos Comuns, a Cia Os Crespos, Grupo Emú, entre outros.”

A atriz também critica as representações distorcidas dos negros na mídia, como o uso de blackface na novela A Cabana do Pai Tomás (Globo, 1969-1970), e aponta para os avanços recentes, embora insuficientes, na inclusão e representação autêntica de negros na televisão brasileira: “Certamente, essa invisibilização é fruto do apagamento das narrativas negras e dos negros da narrativa. Por exemplo, a bizarrice do blackface na novela A Cabana do Pai Tomás (1969–1970), ao menos, hoje, seria impossível de acontecer. Entretanto, ainda que pese que em alguns momentos encontramos alguma problemática na escalação dos atores negros em ambiente da comunidade negra, como na novela Segundo Sol (2018), retratada no maior estado negro do Brasil. Mas por outro lado, também, hoje o pano de fundo estaria muito mais para o cenário dos bailes blacks no subúrbio ao invés da discoteca da zona sul, como em Dancin’ Days (1978–1979), dos anos 70.”

Uma das poucas fotos coloridas de Sérgio Cardoso caracterizado em blackface na novela “A Cabana do Pai Tomás”. Algo impraticável hoje em dia (Foto: Revista Manchete)

Por fim, Aisha enaltece o legado de figuras como Zezé Motta, Léa Garcia (1933-2023) e Ruth de Souza (1921-2019), mulheres que abriram portas e pavimentaram o caminho para a geração atual de artistas pretos, incluindo ela mesma. Embora reconheça os progressos, ela reafirma a necessidade de continuar avançando, com os caminhos agora abertos para um futuro mais inclusivo: “É percebida alguma mudança do final das décadas de 60, 70, 80 e 90. Principalmente com a abertura de portas que tivemos com Zezé Motta, Léa Garcia e Ruth de Souza. O nosso caminho foi pavimentado através dessas divas da teledramaturgia, cinema e teatro. O que propiciou o meu surgimento no cenário. Com o amadurecimento da minha carreira, amadurecemos também o debate público. Temos muito ainda para avançar e os caminhos estão abertos.”

No palco da história, onde o passado se entrelaça com o presente, Aisha Jambo se ergue como uma guardiã das memórias silenciadas, uma voz que ecoa o clamor dos que vieram antes e a esperança dos que virão depois. Ela nos lembra que a arte, em sua essência mais pura, é um ato de resistência, um fio invisível que tece a alma de um povo e resgata do esquecimento as narrativas apagadas. A cada passo, ela não apenas pavimenta seu próprio caminho, mas estende a mão para aqueles que, como ela, lutam para que o brilho da cultura negra nunca mais seja ofuscado. Assim, a atriz se torna símbolo de um novo futuro onde o protagonismo negro finalmente encontra seu lugar merecido: um afro-futuro.