Personagens de “Terra e Paixão”, Kelvin e Ramiro roubam a cena, mas carisma pode ofuscar perversidades como assassinato


Desde que estreou no horário nobre, as novelas de Walcyr Carrasco não passam indiferentes tanto para o público como para a crítica. Os seus detratores observam a falta de cuidado no texto, ao passo que o público telespectador, faz dele um recordista de audiência. Na atual trama das 21h, um casal que tem se destacado é Ramiro e Kelvin, vividos por Amaury Lorenzo e Diego Martins. O sucesso de ambos ofusca o quão problemático é Ramiro, que matou uma mulher logo nos primeiros capítulos da novela além de dar cabo de todas as manobras ilícitas propostas pelo personagem de Tony Ramos. No campo dos relacionamentos, casais héteros tóxicos, acabaram ganhando torcida e shipps na Internet. Por que os personagens mais problemáticos de Carrasco acabam ganhando o povo? Para isso, convidamos o psicólogo Felipe Medeiro CRP-DF 01/21378, para falar sobre o assunto e discutir a adesão a esses personagens

*por Vítor Antunes

Se há algo inegável é a capacidade de carpintaria dramatúrgica de Walcyr Carrasco. O autor consegue, com muita habilidade cativar o público telespectador com personagens carismáticos – a despeito de seus críticos que alvejam seu pouco esmero nos diálogos, algo que também deve ser ressaltado. “Terra e Paixão“, a contrário das outras obras do autor, não vem sendo um arrebatamento de audiência, ainda que lidere com muita folga o horário. No dia 1º, por exemplo, a trama das 21h fez 26 pontos, ante os 5 do segundo lugar, a Record. Muito do sucesso se deve a dois casais: Kelvin e Ramiro – vividos Diego Martins e Amaury Lorenzo, respectivamente, além de Luigi (Rainer Cadete) e Anely (Tatá Weneck), que tem conquistado as redes sociais. No caso do casal homoafetivo, chama a atenção o fato de os dois terem um caráter duvidoso, e especialmente Ramiro, que é capanga de Antônio (Tony Ramos). Ainda que dramaturgicamente seja interessante um “jagunço” heteronormativo ser gay e lutar contra o seu desejo por homens, o personagem revisita um expediente comum nas novelas de Walcyr Carrasco: o carismático/problemático. E ainda sobre este personagem, acaba por revisitar outra recorrência nas histórias LGBT na dramaturgia que é o amor-bandido. Na atual trama das 21h, Ramiro matou uma mulher logo nos primeiros capítulos da novela além de dar cabo de todas as manobras ilícitas propostas pelo personagem de Tony Ramos.

Em todas as novelas das 21h escritas por Walcyr Carrasco – “Amor à vida“, “O Outro Lado do Paraíso” e “A Dona do Pedaço” – houve personagens masculinos muito controversos e que caíram nas graças do público, que relevou as suas maldades, tanto por conta da habilidade do autor, como através do carisma dos atores. No caso de Félix (Mateus Solano) e do casal #kelmiro, da atual trama das 21h, os gays eram pessoas problemáticas. O primeiro descartou a sobrinha numa lixeira sem conhecimento da mãe do bebê, Paloma (Paolla Oliveira), mas o talento de Mateus Solano acabou por fazê-lo protagonista da trama, que se redimiu a partir da exposição pública de sua homossexualidade, o que também foi algo muito questionado dentro da comunidade LGBT.

No caso de “O Outro Lado do Paraíso” e “A Dona do Pedaço“, dois papéis masculinos eram agressores de mulheres e/ou matadores de aluguel, mas apesar disso, acabam com a mocinha romântica a partir de uma redenção.  Chiclete (Sérgio Guizé), de “A Dona do Pedaço”, havia sido contratado para matar Vivi Guedes (Paolla Oliveira), inclusive. Em “Outro Lado“, o mesmo Guizé, viveu um homem perturbado que agredia a mulher e chegou a quebrar-lhe uma cadeira sobre o corpo com ela estando grávida. Ele termina a trama com outra mulher, que também era agredida pelo marido.

Historicamente nas suas novelas, Walcyr apresenta alguns temas que não são devidamente discutidos ou problematizados. O que pode reforçar estereótipos ou violências. O amor foi capaz de mudar Gael, que de um homem violento virou devotado e apaixonado. O arrependimento foi, também, o motivador da mudança de comportamento de Chiclete. Mas apenas isso basta?

 

Chiclete e Vivi Guedes. O público torceu para a personagem de Paolla Oliveira ficar com o de Sérgio Guizé (Foto: Reprodução/TV Globo)

#KELMIRO E FÉLIX

No “Fantástico” da primeira semana de setembro, o sucesso do casal #kemiro deu origem a uma reportagem especial assinada por Alexandre Henderson, sobre os personagens de maior destaque de “Terra e Paixão“. Casal que ainda não se apresenta como casal, diga-se, já que nada houve entre eles além de um selinho emulando o desenho animado “A Dama e o Vagabundo” (1955). A energia homoerótica entre eles é fortemente presente, assim como as “brincadeiras” entre ambos. Ramiro, porém, não se considera gay. E o fato de ser guarda-costas de Antônio La Selva implica numa necessidade de posicionamento heteronormativo. Ainda que este seja um válido recurso dramatúrgico no que tange ao personagem, acaba sendo problemático quando por conta de ele haver caído nas graças do público, releve-se tanto os crimes cometidos por Ramiro, como o assassinato de Isabel (Yasmin Gomlewski), como a homofobia recreativa do personagem – tanto no trato com seu parceiro como na encenação. Tanto o é que o bordão do personagem é “Eu sou macho“. Ramiro tentou matar a própria protagonista da trama, Aline (Bárbara Reis).

O psicólogo Felipe Medeiro CRP-DF 01/21378, um dos coordenadores do Instituto Pride foi perguntado sobre a razão que leva o público telespectador a relevar os crimes e se deixar seduzir pelo carisma dos personagens. “Temos ali uma trama na qual acabam recorrendo à comédia, e esse humor libera estímulos cerebrais que trazem prazer. Eu mesmo os vejo como casal. As pessoas, ao verem este recorte, não têm a memória anterior dos personagens, especialmente quando os veem nas redes sociais. Essa história prévia deles não vêm à tona”. Ainda que se leve em consideração o clamor popular – e também da comunidade LGBT – por personagens que não apenas sofram por conta da homofobia, mas que sejam reais, ou seja, possam ser heróis, bons, maus e vilões, pesa em desfavor de Carrasco a recorrência de uma redenção não punitivista de seus personagens e a inclusão dos mesmos nos núcleos cômicos. Neste caso, um personagem afeminado sendo usado como alívio cômico junto a um outro heteronormativo, além da reiteração do estigma do amor bandido e clandestino que acerca, historicamente, os gays nas novelas.

Kelvin e Ramiro em clima de romance na novela das 21h (foto: Divulgação/TV Globo)

E este não é um problema restrito à novela atualmente no ar. Em “Amor à Vida“. Walcyr Carrasco atendeu aos pedidos do público, que caiu de amores por Félix, inicialmente o vilão da trama. Dentre os graves crimes cometidos por ele, um já acontece no primeiro capítulo. Ao abandonar Paulinha (Klara Castanho) numa caçamba de lixo, o vilão cometeu crime de omissão de socorro e tentativa de homicídio qualificado por motivo torpe, uma vez que assumiu o risco de que a criança morresse  (art. 135 do Código Penal) e art. 121, §2º, inciso I c/c art. 14, ambos do Código Penal). Também houve ali uma tentativa de “homicídio triplamente qualificado –  nos termos do art. 121, §2º, inciso I (paga promessa); inciso II (motivo fútil) e inciso III (resultar perigo comum) c/c art. 14, ambos do Código Penal – sujeito a pena  de 12 a 30 anos de reclusão”, segundo informaram os causídicos da Bergher & Mattos Advogados Associados, em entrevista à Patrícia Kogut na época da novela, 2012/2013.  A despeito da bela cena de enceramento do personagem, em que ele se redime de suas maldades e termina com o seu companheiro Niko (Thiago Fragoso) e seu pai César (Antonio Fagundes), que o rejeitou por toda a vida, Félix não foi punido. Na vida real, poderia pegar cerca de 76 anos de detenção.

No caso de “O Outro Lado do Paraíso“, havia, também um núcleo cômico LGBT, vivido por Ellen Rocche (Suzy), Eriberto Leão (Samuel) e Rafael Zulu (Cido). Nesta, Samuel casava-se com Suzy para disfarçar seu relacionamento com Cido e frases como “meu tigrão virou tigrete”  eram recorrentes. Essa abordagem sobre a homossexualidade é válida e inclusiva? Para o psicólogo Felipe Medeiro, não. “O publico reconhece como homossexualidade esta esterotipação. A representatividade ali presente é um recorte geral e representa a opinião do publico brasileiro médio e não necessariamente representam o meio LGBT”. Ele finaliza: “As pessoas gostam de ver transformações e as novelas trazem isso. As transformações comovem as pessoas e esse lugar romantizado que acaba fisgando o telespectador”.

É triste não ter dentro da mídia, gays sendo protagonistas. Qual a dificuldade de começar a novela com gay gerenciando uma família sendo juiz, médico ou diplomata? Há de se representar o que está presente na sociedade brasileira –  Felipe Medeiro

Mateus Solano era o Félix em “Amor à Vida” (Foto: Divulgação/Globo)

AGRESSÕES ÀS MULHERES

Esse assunto também é recorrente nas novelas de Walcyr Carrasco e esteve pelo menos em três das suas quatro últimas novelas. Na atual das 21h há uma discussão mais aprofundada do assunto, a contrário das outras duas tramas, “O Outro Lado do Paraíso” e “A Dona do Pedaço“. Na primeira, Gael (Sérgio Guizé) agredia com muita violência sua esposa, Clara (Bianca Bin). Entre idas e vindas do casal, o rapaz acabou a trama com Taís (Vanessa Giácomo), personagem que entrou na reta final da trama e que também era agredida pelo marido. Mas havia grande torcida popular pelo fim romântico entre Gael e Clara. Ela acabou a novela com Patrick (Thiago Fragoso).

Perdi quem amava, porque bati nela. Deixa eu cuidar de você. Nunca mais vou bater. Eu preciso de você e você precisa de mim. Quero uma nova chance” – Gael, personagem de “O Outro Lado do Paraíso

No Google, dos quatro resultados de vídeos sobre o casal Gael e Clara, três são sobre as agressões que ela sofreu (Foto: Reprodução)

Na novela seguinte, “A Dona do Pedaço“, um matador de aluguel é contratado para assassinar a influencer Vivi Guedes (Paolla Oliveira), mas apaixona-se por ela. Ainda que houvessem telespectadores que, no perfil do Instagram da personagem, alertassem do perigo dizendo “corre que ele vai te matar”, havia quem torcesse por eles, como uma telespectadora chamada Eva Lúcia. “Pelo amor de Deus, [Walcyr], deixe nosso casal preferido ter um final, e feliz!”. Outra, Fabiana, disse “Eu, Vivi, queria um Chiclete desse na minha vida”. Houve um capítulo em que, sem aceitar o término do relacionamento, Chiclete ameaça matar sua parceira, Vivi, além de haver assassinado outro personagem, Cosme (Oswaldo Mill) na sua frente. Por qual motivo as pessoas de apiedam desses personagens?

Para o psicólogo Felipe Medeiro, “O ser humano projeta no outro o que ele quer. Mesmo um abusador acha que vai transformar o outro. Mas as relações sao cíclicas. Quem se relaciona com um abusador acaba percebendo que não consegue mudar o comportamento do outro. O relacionamento abusivo ele começa aos poucos. E as novelas não trazem isso de maneira muito clara”. Ainda que seja importante trazer esses assuntos à tona, falta ao autor, debruçar-se com aprofundamento nas discussões que propõe.

Trilha Sonora de “O Outro Lado do Paraíso” traz o casal Clara e Gael na capa (Foto: Reprodução)