“Pequeno Dicionário Amoroso 2”: Luiza e Gabriel continuam a teimar no amor em um Rio de Janeiro repleto de tentações

*Por Flávio Di Cola

As primeiras tomadas são sintomáticas do que nos espera neste “Pequeno dicionário amoroso 2” (2015, Cineluz-Telecine-Paramount-Globo Filmes), edição atualizada dos encontros e desencontros da película inaugural de 1997: após uma sucessão de imagens embaçadas e indistinguíveis, aparece o primeiro verbete do vocabulário amoroso: “Alucinação”. A cena, então, revela-se: estamos em um cemitério, no momento da dispersão de familiares e amigos após um sepultamento. O velho recurso do enterro para introduzir um grupo de personagens que precisa necessariamente se (re)encontrar – como Luiza e Daniel, após décadas de separação – para que dali comece uma nova história, não explica sozinho a escolha dos temas do delírio e da morte para ilustrar a primeira página deste dicionário sobre o amor. É como se os roteiristas Paulo Halm e Rita Toledo, e os diretores Sandra Werneck e Mauro Farias sussurrassem maliciosamente para o público: “Atenção, vocês que vão começar a folhear este dicionário. Abandonem desde já toda a esperança de um final feliz convencional, pois a vida é assim: depois do ímpeto inicial movido pelas ilusões vem o abandono e a necessária extinção e transformação de tudo”.

Falando deste jeito, até parece que a continuação do “Pequeno dicionário amoroso” carrega na melancolia. Não, pelo contrário: o projeto de investigar o que aconteceu com as vidas do casal Luiza (Andrea Beltrão) e Gabriel (Daniel Dantas), depois da separação em 1997, continua fiel à leveza, à simplicidade e ao didatismo da primeira parte – qualidades que encantaram o público naqueles anos derradeiros do último milênio quando o filme iniciante ficou 28 semanas ininterruptas em cartaz no Rio de Janeiro, ressuscitando com sucesso o gênero “comédia romântica” no auge do que se convencionou chamar “retomada do cinema nacional”, ocorrida entre 1994 e 1998. Aliás, o próprio ânimo da diretora Sandra Werneck mudou completamente de uma realização à outra, conforme ela mesma revelou no depoimento concedido a Lúcia Nagib na obra “O cinema da retomada”: “Pequeno dicionário amoroso foi a virada da minha vida. (…) Eu estava me separando e achei que minha história era universal. Também estava lendo Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, e então tive a ideia de fazer Dicionário, com um espírito ainda de documentarista, tanto que o filme tem um quê de documental quando os atores se viram e falam com a câmera”.

O casal Luiza (Andrea Beltrão) e Gabriel (Daniel Dantas) há 20 anos (Foto: Reprodução)

Hoje, feliz e bem casada há dois anos, Sandra preferiu sacrificar aquele olhar direto, irônico – debochado mesmo – sobre essa “alucinação” chamada “amor” que se apoderou do casal Luiza-Gabriel em 1997, através das intervenções dos personagens interpretados por Tony Ramos e Mônica Torres, para contar o reencontro da mesma dupla através de uma narrativa muito mais fluida, romântica, linear e – admitamos – convencional. Tanto que os verbetes do “dicionário amoroso” ao invés de convidar a uma reflexão mais conceitual sobre esse fenômeno psíquico, como em 1997, converteram-se agora – vinte anos depois – em redundantes etiquetas explicativas de situações dramáticas já bem evidentes.

Luiza e Gabriel hoje: novas palavras do dicionário entram no jogo amoroso (Foto: Divulgação)

Mesmo assim, “Pequeno dicionário amoroso 2” satisfará a todos aqueles que se divertiram com os altos e baixos da montanha-russa sentimental de Luiza e Gabriel jovens, principalmente as almas mais impressionáveis que levaram a sério o chistoso slogan da película original e que é mantido até hoje: “Não se case nem se separe sem ver este filme”. De fato, quem viveu de perto as discussões públicas e as conversas íntimas provocadas pela película há 20 anos, percebeu que – de certa forma – aquele primeiro “Pequeno dicionário amoroso” tinha explicitado de um jeito simples e sem afetações, a sensação de que as relações amorosas não tinham mais aquela consistência sólida e unidimensional de antes, e que elas haviam se transformado numa amalgama de impulsos difusos, contraditórios, incompreensíveis e – certamente – mais egoístas.

Guto (Eduardo Moscovis), o fotógrafo-tentação que vira a cabeça de Luiza (Beltrão) e complica a trama (Foto: Divulgação)

De lá para cá, as relações mediadas pela internet e pelas famigeradas “redes sociais” aprofundaram ainda mais a sensação de instabilidade e inconsistência. Elas estão desenhando um “novo dicionário amoroso” cujos verbetes – até então, inéditos – foram agora corporificados em personagens recém-chegados à parte 2, representados pela geração dos filhos de Luiza e de Gabriel, frutos de casamentos posteriores e mal- sucedidos com outros cônjuges depois da tentativa – também fracassada – do relacionamento de 1997. Os jovens Alice (Fernanda Vasconcellos) e Pedro (Miguel Arraes), assim como seus pais, também passam da euforia à depressão, do céu ao inferno, do sublime ao ridículo na sua procura pelo “amor”. Serão eternos e desastrados aprendizes, como seus genitores Daniel e Luiza. Ou solitários predadores-mirins que – como vampiros – caçam e descartam seu quinhão de amor e sexo nas noites de embalo (como Alice) ou nos labirintos da internet (como Pedro). Aliás, a destacada citação ao clássico “Nosferatu”, obra-prima do expressionismo cinematográfico alemão, filmada em 1922 por Friedrich W. Murnau, não foi inserida à toa no filme.

Bel (Glória Pires), a “ex” de Gabriel e mãe de Alice (Fernanda Vasconcellos) é agora uma esotérica trambiqueira (Foto: Divulgação)

Mas o “Pequeno dicionário amoroso 2”, assim como seu predecessor, nunca se rende ao pessimismo. O olhar de irônico desencanto sobre o amor vem sempre filtrado por um clima de humor ligeiro retirado da tradição burlesca carioca, onde são possíveis personagens como Bel (Glória Pires), a divertida consultora sentimental tão esotérica quanto velhaca, ex-mulher de Gabriel e mãe de Alice, que com seu jeito zombeteiro parece elucidar o “enigma” do amor: não passa de uma ilusão agridoce, alimentada obstinadamente por uma esperança desvairada entre duas pessoas que ainda não se conhecem bem.