*por Vítor Antunes
Quando Paulo Lessa já vinha se destacando como um dos protagonistas de Cara e Coragem, um veículo de comunicação publicou um título no qual estava escrito que o ator seria um “galã acidental”. O próprio Paulo contesta essa atribuição que recebeu. “Acho um tanto controversa. Até em razão de eu ter feito sucesso na televisão depois dos 40, diferente de outros atores brancos e da minha faixa etária. No meu trabalho, eu procuro mostrar que estou para além do rótulo. Quero revelar mais possibilidades e mais ferramentas que posso ter como ator, como estou agora em Encantados e em Sala Escura, por exemplo” — de fato, são trabalhos muito distintos. No primeiro, Lessa interpreta um personagem que convive com a realidade suburbana de pessoas que alinham a paixão por uma escola de samba à administração de um supermercado. No segundo, um personagem atormentado por um grupo de bate-bolas que aterroriza uma sala de cinema, no longa de Paulo Fontenelle.
Segundo salienta o ator, há uma diferença importante sobre o posto de protagonismo, majoritária e historicamente ocupado por atores brancos. “O nosso tempo de formação e de revelação como ator, enquanto pretos, é outro. Eu estou com 42 anos. Há muitos atores brancos contemporâneos meus que fazem protagonistas de novela desde que têm 20, 25 anos. Quando eles chegam na maturidade, aos 40, já estão com um domínio do set, de uma forma que um ator negro de 40 anos, por não ter sido experimentado assim, acaba enfrentando dificuldades [para se consolidar]”. Para fins comparativos, há 30 anos, em 1994, portanto. Nas três novelas exibidas em novembro daquele ano, Tropicaliente, Quatro por Quatro e Pátria Minha, em nenhuma havia um protagonista preto, ainda que Regina Dourado (1953-2012), parda, fosse uma das personagens principais de Tropicaliente. E Pátria Minha, por sua vez, acabou por trazer uma grande discussão e problemas à Globo, por conta de uma cena de racismo envolvendo os personagens Raul e Kennedy, respectivamente Tarcísio Meira (1935-2021) e Alexandre Morenno.
A VIDA TEM SEMPRE RAZÃO
Em 2009, Paulo Lessa fez sua estreia em uma novela da TV Globo, participando de Viver a Vida, atualmente em reprise no Canal Viva. Na época, Lessa era um ator em início de carreira, vindo de participações pequenas e de formação na Oficina de Atores da Globo. Muitos telespectadores não lembravam dessa participação inicial, e agora, já consolidado na carreira, ele começou a receber mensagens de quem reconheceu sua presença em cena: “É muito legal isso eu comecei a ter um feedback agora. Muita gente mandando mensagem me marcando no Twitter falando sobre esta novela, inclusive. Eu tinha acabado de sair da Oficina na Globo, entre 2008 a 2009. E aí foi havendo algumas participações pequenas até conseguir esse esse ser contratado mesmo para fazer essa novela”.
Em Viver a Vida, exibida originalmente em 2009, a participação de Taís Araújo como protagonista foi um marco, mas ainda restrito a uma situação isolada em uma época em que atores pretos quase não eram vistos como protagonistas de novelas. Para Lessa, havia uma distância prática entre o sonho de atuar e a realidade de ocupar papéis centrais, especialmente para atores negros: “Não era algo presente, possível, na época. Eu queria ser ator e me manter disso e o meu grande objetivo era estar nos elencos e não via há possibilidade de protagonizar. Eu podia sonhar com isso, mas não via de maneira prática a possibilidade de protagonizar naquela estrutura. E aí depois de um tempo eu procurei outras oportunidades e em outros lugares, voltei pra Globo pra fazer um personagem também pequeno em A Lei do Amor e depois fui para a Record”.
A ascensão de Paulo Lessa também foi fruto de persistência e trabalho, apesar das dificuldades enfrentadas por atores negros no acesso a oportunidades. Ele reconhece o esforço de gerações anteriores, mas afirma que o próprio sucesso não foi um “acidente”:
Eu reconheço que poucos atores negros têm oportunidade sim. A gente sempre relembra os chegaram antes que abriram essas portas. É importante isso, mas não é fácil, não foi por acidente e sobretudo não foi acidental a minha chegada aqui. Foi fruto de muito trabalho – Paulo Lessa
Em 2022, aos 40 anos, Paulo Lessa protagonizou pela primeira vez uma novela da Globo, formando com Taís Araújo um dos primeiros casais pretos protagonistas na TV Globo, em Cara e Coragem. Este feito foi relevante na trajetória dele, em um cenário onde relacionamentos entre personagens negros ainda são raros na televisão, já que a representação de casais negros é recente e os dramas inter-raciais ainda são o foco principal em muitas produções: “Foi uma coisa que aconteceu há pouco tempo porque a discussão acabava ficando sempre pela questão da interracialidade, do preconceito porque uma das partes era de outra etnia. Essa coisa do amor preto é toda muito nova era uma visão a respeito da da sempre. É a parte branca vencendo o preconceito e se deixando apaixonar pelo pelo personagem negro, mas e sempre enfrentando preconceito familiar aquelas coisas, que a gente já viu muito”.
Atualmente, as três principais novelas em exibição na Globo têm protagonistas negras, o que representa uma evolução na representatividade. Na novela das 19h, Volta por Cima, Fabrício Boliveira e Jéssica Ellen interpretam um casal preto no centro da trama, algo raro na dramaturgia televisiva brasileira.
À época de ‘Cara e Coragem’ eu achei que se repercutiu muito pouco isso, especialmente dentro da mídia especializada nas negritudes. Muito pouco se falou disso. Parecia que era algo costumeiro haver dois pretos à frente de uma novela, o que é algo incomum, mas creio também, que há pouco levantamento. As pessoas não têm o conhecimento do quanto isso é uma coisa rara – Paulo Lessa
Em Terra e Paixão, Paulo Lessa interpretou um personagem central que teve uma trajetória complexa e rica em conflitos, algo nem sempre oferecido a atores negros na dramaturgia. Seu personagem não era apenas um figurante ou alguém marginal à trama, mas sim um papel profundo e bem-desenvolvido, o que trouxe grande realização para o ator. Ele recebeu elogios de Luiz Henrique Rios e Walcyr Carrasco, que reconheceram o trabalho do ator e expandiram a presença do personagem, especialmente ao explorar a dinâmica familiar, evitando estereótipos comuns nas representações de famílias negras na televisão. Sobre essa construção, ele afirma: “Jonatas não era um personagem superficial ou um personagem que está à margem da trama, mas um personagem rico. Isso me deixou muito feliz e tive muitos bons feedbacks tanto do Luiz Henrique Rios quanto do Walcyr Carrasco a respeito do meu trabalho, tanto que Walcyr passou a escrever mais, a desenvolver a questão familiar do personagem e a gente fazia questão de trazer uma outra perspectiva familiar junto ao personagem que fugisse, novamente, à marginalização do retrato das famílias negras e muito se deve também à direção do Jefferson De”.
A trajetória de Paulo Lessa também foi marcada pela influência de sua mãe, Dai, uma trancista renomada que trabalhou para promover a autoestima de mulheres negras em seu salão, no Rio de Janeiro. Esse ambiente ajudou Lessa a desenvolver um senso de orgulho e identificação com sua identidade negra desde cedo. Ele descreve: “Eu tive eu tive uma honra, um grande privilégio de ser ser filho da Dai. Minha mãe tinha um salão muito famoso no Rio de Janeiro num salão afro muito famoso, que fechou quando ela faleceu. E era era era um lugar muito interessante assim de autoestima mesmo e ensinava às meninas a profissão de trancista. E aí que você via essa transformação todos os dias. As meninas chegavam com aquele cabelo relaxado, com o cabelo amarrado tudo escuro tentando esconder de alguma forma e poucos meses, depois acabava todo mundo com o cabelo trançado fazendo penteado e tirando a química do cabelo. Enfim, tudo um trabalho muito interessante de conscientização que ela fazia e eu faço desde cedo”.
Além disso, Lessa nunca hesitou em usar o cabelo black e enfrentou o preconceito de frente, algo que ele também busca transmitir à sua filha. Para ele, o cabelo nunca foi uma questão complicada, devido ao apoio que recebeu de sua mãe e a referência positiva que ela representava: “Eu sempre fui apresentado a esse tipo de empoderamento, desde sempre tive meu cabelo black, nunca tive problema com isso mesmo quando era zoado no colégio por conta do cabelo. Naquela época não tinha [gente com cabelo black], não era muito comum, a gente tinha muita referência gringa. Eram muitos caras americanos usando trança e tal e eu tive o privilégio de ter uma mulher incrível na minha vida, que me conscientizou assim não só não só na questão estétic, mas à questão social ali desde muito cedo. Então nunca pra mim nunca foi uma questão, nunca passei por nenhuma questão com o cabelo. Hoje eu vejo a gente a gente transmitindo isso pra minha filha de 3 anos que pede para a gente fazer trança nela”.
Em relação ao racismo e à discriminação, Paulo Lessa é realista sobre a necessidade de seguir discutindo essas questões no Brasil atual, onde desafios e desigualdades ainda são evidentes. Ele observa que, apesar de avanços em representatividade, questões estruturais como a disparidade salarial permanecem: “Eu acredito que na nossa geração a gente ainda vai ter que falar bastante, diante de tudo que acontece no Brasil é até da questão política e das direções que o Brasil vai vem vem tomando, e em alguns casos até retrocedendo. Acho que a gente ainda vai ter que falar bastante vai ter que que continuar buscando espaço, lutando contra a desigualdade por mais equiparação salarial, mas acredito que a gente ainda tem uma boa caminhada pela frente”.
SALA ESCURA
O filme Sala Escura, dirigido por Paulo Fontenelle, é um terror brasileiro que estreará em 14 de novembro de 2024. Gravado ainda antes da pandemia, o longa se diferencia ao abordar o gênero de forma séria, fugindo da tradicional comédia ou do estilo trash que frequentemente marca o terror nacional. Paulo conta sobre as circunstâncias únicas em que o filme foi produzido, retornando de gravações no Marrocos no início da pandemia, e como ele e seus colegas de elenco estavam em momentos distintos de suas carreiras. Ele lembra: “Eu estava gravando a novela no Marrocos e tive que voltar num avião fretado com vários brasileiros. E aí já tava instalada a pandemia. Era outro tempo em que eu nem era pai, e todo o elenco vivia também uma outra situação de vida, numa outra perspectiva de carreira”.
Lessa também destacou o diferencial de Sala Escura em relação a outras produções de terror, mencionando que ele não perde em nada para filmes internacionais do gênero. O longa explora elementos clássicos de terror, como suspense e sangue, e inclui o “bate-bola”, uma figura típica do carnaval carioca, que carrega tanto mistério quanto terror, especialmente para quem cresceu convivendo com essa tradição. Sobre isso, afirma: “Não fica devendo nada ao que é produzido fora. É um filme que tem todos os elementos do terror, muito sangue, muitos sustos, muito suspense e acho que vai ser legal, também por usar um personagem típico do Brasil que é o bate-bola. Eu mesmo tinha pavor de bate-bola, ainda que tivesse fascínio. A minha família é dividida entre zona sul e subúrbio eu acompanhava e adorava. É uma figura muito característica da nossa cultura do nosso carnaval. E o Paulo como bom carioca, sabe disso e colocou ali. O elenco é composto por uma galera muito interessante que tá no elenco. Uma turma legal e que tava num outro momento de vida de carreira, já que gravamos o longo há cerca de cinco anos, antes ainda da pandemia. Esse movimento foi muito legal”.
A trajetória de Paulo Lessa é marcada por uma força que transcende os rótulos e revela a profundidade de quem constrói seu caminho com resiliência e identidade. Ele não é um “galã acidental” ou um protagonista ocasional; é a personificação de um movimento histórico que reivindica, aos poucos, espaços de protagonismo para corpos negros na arte e na sociedade. Paulo segue na luta pela representatividade com o orgulho de quem tem raízes firmes, nutridas pela força de sua mãe e pela consciência de que o caminho trilhado não é feito de acaso, mas de propósito. Cada personagem que interpreta é um novo testemunho de sua versatilidade e do potencial imenso que a dramaturgia ainda tem para representar, de forma autêntica, as histórias e vivências da população negra. Como um farol, ele ilumina a cena com coragem e verdade, lembrando-nos de que o palco da vida pede resistência e, acima de tudo, um comprometimento contínuo em manter viva a luta contra as desigualdades que ainda persistem. No sorriso largo e no olhar decidido, Paulo carrega uma mensagem para as próximas gerações: que possam ser protagonistas de suas próprias histórias, sem esperar que as oportunidades cheguem por acaso, mas sim como frutos de uma luta constante, carregada de ancestralidade e amor
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