Patricia Pinho, de ‘Além da Ilusão’, fala sobre humor inclusivo: ‘Quero contar histórias dos que ficaram à margem’


Atriz de humor transgressor -“eu quero ridicularizar o ganancioso, o hipócrita, o falso moralista, o explorador” -, Patrícia Pinho viveu uma deficiente visual no teatro e nesta irreverente proposta discutia a libido tanto da mulher idosa quanto da deficiente visual, além de marcar a presença de um corpo “fora do padrão estético estabelecido”. Estreando nas novelas em seu primeiro personagem fixo no folhetim das 18h, ela conta-nos que a obra dialoga muito com a história de sua família, já que seu avô foi um preso político na Era Vargas. Patrícia comenta, também, sobre os desafios em se fazer uma obra de época depois de alguns trabalhos contemporâneos, como “Malhação – Casa Cheia”. na pandemia, ela se dedicou ao tarô e ajudou tantos atores em dificuldades financeiras

*Por Vítor Antunes

Numa época em que as mulheres eram instruídas a servirem aos seus maridos e dependerem economicamente deles, a personagem Fátima, vivida pela atriz Patricia Pinho em “Além da Ilusão“, sua primeira incursão em novela, é dona de um comércio e preza a autonomia para sustentar a filha, embora tenha valores arraigados a algum tradicionalismo, o que dialoga com a sua contemporaneidade. Além da empreitada quanto à cronologia da narrativa, a atriz, aos 47 anos e 37 deles dedicados ao teatro e aos programas de humor, também vê, na intensa produção de teledramaturgia um espaço para o aprimoramento de sua arte: “Eu estava há seis anos no humor (entre os programas na Globo integrou o elenco de Zorra), muito adaptada ao ritmo das gravações. Novela é um processo mais intenso, no qual ainda estou me habituando”, conta.

Dosando o bom humor e o respeito à diferença, a atriz aponta um alvo certeiro para construção de suas piadas: “Eu quero ridicularizar o ganancioso, o hipócrita, o falso moralista, o explorador… Bom humor é liberdade. Acredito que o mundo tem várias caras, a diversidade é uma realidade e isso só tende a crescer. Queremos cada vez mais ver, ouvir e contar histórias de todas e todos que ficaram à margem da história. O humor mudou. É importante a gente se perguntar: A gente ri de quem? O que é ridículo hoje?”.

Patricia alinhava um livro em homenagem ao grande mestre Amir Haddad. Durante a pandemia, todos viram-se forçados à reinvenção e não foi diferente com a artista, que investiu na verve mística, através do tarô: “Eu queria apoiar as amigas que estavam sem trabalho e surgiu essa oportunidade de jogar tarô online. Atendi mais de 200 pessoas de diferentes locais, países e culturas. Com isso eu ganhei um panorama muito amplo do que estava acontecendo dentro da vida daquelas pessoas. E as experiências pessoais são o meu material de trabalho. Então foi e tem sido muito enriquecedor. Mesmo com a novela, eu procuro encontrar um tempo para manter essa troca viva”.

A múltipla artista Patricia Pinho: 37 anos de uma carreira no teatro, humor e, agora, na teledramaturgia (Foto: Ricardo Penna)

A ESTREIA EM NOVELA

“Fátima é uma mulher com valores antigos. Ela acredita muito nas instituições: igreja, casamento, polícia. É uma mulher tradicional, mas ao mesmo tempo avançada já que ela tem seu próprio negócio. Ela trabalha numa mercearia, está em contato com o mundo. É uma comerciante. Precisa estar informada, fazer trocas e parcerias. Ainda tem esse amor pela filha, que ela apoia, que encoraja a transgredir e que também faz com que ela reveja seus valores”, observa Patricia.

Ainda sobre a personagem do folhetim das 18h a artista enumera os desafios de se fazer uma novela de época: “Em novelas deste gênero a gente não pode improvisar muito – houve uma ocasião em que eu improvisei um “joinha” com o dedo polegar. É um mico! Ainda bem que foi durante o processo!”, entrega, acrescentando que, como vem do teatro, ela sente a necessidade do aprofundamento do estudo de experimentar nuances à frente das câmeras. Nas cenas de maior emoção, contei com Isabela Garcia como coach pessoal para esse exercício”.

Patrícia Pinho e Letícia Pedro vivem mãe e filha em “Além da Ilusão” (Foto: Paulo Belote/Divulgação TV Globo)

A relação entre ambas, que são grandes amigas, foi iniciada ainda na época em que trabalharam em “Malhação – Casa Cheia”. A coxia generosa, além da própria amizade com Isabela, são os pontos que a atriz destaca na gravação da extinta soap-opera: “’Malhação‘ tinha um elenco maravilhoso e me deu de presente a Isabela Garcia. Trabalhar com ela é flagrar-se diante da alma da televisão brasileira. Profissional, ética, amorosa e atriz excelente com domínio total da nossa profissão”, pontua.

Ainda no que tange à fase cronológica retratada no folhetim, os anos da Era Vargas, Patricia revela a interseção existente entre a história de sua vida e o período em que a novela se passa. Durante o governo de Vargas, seu avô fora preso por ser partidário do comunismo: “Meu avô não foi expulso do Exército em 1937 por distribuir panfletos comunistas em uma parada militar. Ele quase foi morto por isso. Por acreditar que o mundo pode ser melhor para a classe operária e mais igualitário. Ele tornou-se gráfico e a vida toda sonhou o fim da miséria humana e da exploração do homem pelo homem. Tanto Olívia (Débora Ozório), filha de minha personagem, como Tenório, o padre interpretado por Jayme Matarazzo, têm esse sentimento. Imagine ter um avô que foi preso por comunismo! De certa forma a sua alma continua viva e eu me orgulho muito de sua História”, revela.

O HUMOR COMO ALERTA EM PROL DA SOCIEDADE

Assunto contemporâneo ainda pouco discutido, a sexualidade das pessoas com deficiência ainda encontra entraves em razão de um preconceito estrutural. Em um tempo no qual se questiona os limites do humor e a mudança no perfil da mulher humorista. Patrícia relata que em uma de suas montagens, onde vivia a personagem Kátia, que era cega, porém com grande libido, a encenação dialogava com a proposta cênica presente no Teatro de Revista, estilo teatral muito em voga na primeira metade do Século XX: “Kátia fazia um striptease nada convencional. A caracterização era um ponto chave para fazer a piada funcionar. Era composta por uma peruca que me dava um ar de senhorinha travessa de Copacabana, além de uma calcinha imensa que só aumentava a minha idade. O curioso do fato é: Meu corpo não está inserido no padrão estabelecido, que é o magro, então era uma senhora com calcinha de vovó querendo ter seu corpo livre e sensualizar no palco. Foi quando eu entendi ‘qual era a piada’: Era sobre a liberdade de corpos. Algumas pessoas não acreditavam que eu estava tirando a roupa ali. Eu, como atriz, gosto de surpreender e transgredir. O teatro é maravilhoso! Eu amo a minha profissão e a construção da personagem é uma coisa artesanal, é uma carpintaria. É transformar uma personagem de papel numa alma”, analisa. Nesta época, a atriz vivia também Madame Clessy, de “Vestido de Noiva”, obra escrita por Nelson Rodrigues (1912-1980), apresentava-se no Buraco da Lacraia, na Lapa, e ainda gravava “Malhação”.

A graça é traduzida a partir de um olhar. Esse olhar transforma-se numa respiração que vira uma piada e esta desenvolve um sorriso. Talvez por esta razão, fazer humor é tão difícil. É matemática: É o cálculo exato do pragmático Matheus. É a fé de Fátima somada à sensualidade insólita de Kátia. Talvez esta aritmética incomum proposta por Patrícia Pinho seja o segredo possível para subtrair do Brasil o sentimento de ser um “pote até aqui de mágoa”.

“Eu, como atriz, gosto de surpreender e transgredir” (Foto: Ricardo Penna)

Outra personagem que compõe o repertório de Patrícia é Silvinha Silva, que recentemente viralizou na internet por seu inglês macarrônico e pela pouca polidez: “Silvinha é livre, desbocada e sem papas na língua. Eu comecei gravando vídeos para a Dea Martins, que é minha amiga e ela espalhou pela internet. Foi um sucesso absurdo. Perdi o controle da personagem. Certa vez estava em Portugal e era reconhecida nas ruas pelo vídeo. Algumas atrizes acreditaram que se tratava de uma pessoa – o que é uma honra para mim. Às vezes Silvinha ainda “baixa” nos camarins”, comenta.

MULHER INDEPENDENTE E MÚLTIPLA

Tal como boa parte das mulheres brasileiras, coube à atriz dividir-se em mil tarefas. No caso de trilhar uma carreira artística, os desafios são ainda maiores quando se é mãe. No caso da atriz, a batalha começou cedo, pois que fora mãe aos 20 anos, ao nascimento de Matheus, filho dela com o advogado trabalhista e ex-ator Henrique Farias – o Ringo Starr na novela “Top Model”, de 1989: “Sou mãe desde os 20 anos e para mim é a melhor experiência da minha vida. Cada mulher tem o direito de ser o que quiser. Inclusive o direito de não ser mãe. Aprendi a matar barata por ele. Por ele fiz e faço coisas que provavelmente não faria só por mim. A maternidade me deu força para sobreviver. Foi difícil? Foi. Mas valia e vale a pena”.

Diante de tantas atividades, ainda houve o espaço para o Mestrado em teatro. E a atriz abriu e divulgou em suas redes sociais um campo de discussão sobre a peça “Gota D’Água”, de Chico Buarque, que, nos anos 1970 teve como protagonista a atriz Bibi Ferreira. A tragédia atemporal resultou no questionamento à atriz diante do próprio título: Qual a sua Gota d’Água? O que a faz transbordar? Diante da pergunta, a artista foi incisiva: “Minha gota d’água é saber que muitas mortes poderiam ter sido evitadas se a vacina não tivesse sido desconsiderada pelo atual governo. Se as medidas sanitárias tivessem sido mais eficazes desde o início, muitas amigas, muitos amigos, muitos parentes poderiam estar vivos. Eu transbordo de tristeza vendo a miséria voltar nas ruas”, analisa, com pesar.