Patricia Pillar é homenageada com nome em sala de cinema histórico: ‘Gesto de rebeldia e amor’


Peça fundamental na revitalização do Cine Bijou, histórico cinema de rua que resistiu aos tempos da ditadura, Patricia Pillar foi homenageada por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, novos administradores do espaço e fundadores do coletivo teatral Satyros, com uma sala batizada em seu nome. Em conversa exclusiva, a atriz comentou a parceria com a dupla e a importância e significado da reabertura desse espaço na retomada cultural. “Nós temos muito trabalho pela frente. Temos que reconstruir muita coisa destruída, muitas pontes e caminhos que já havíamos trilhado e, infelizmente, com esse desmando do Governo Federal, houve um poder de destruição gigantesco’’, declara

*Por Thaissa Barzellai

Patricia Pillar e a sétima arte têm um relacionamento de longa data. Dos filmes realizados desde 1984 aos vistos no decorrer da vida em endereços cariocas como Cinema Rian, Roxy e Odeon, a paixão da atriz, diretora e produtora pelo cinema segue mais viva do que nunca e foi coroada com um momento digno de registro cinematográfico. Fechado há 26 anos, o Cine Bijou, na Praça Roosevelt, em São Paulo, um expoente da resistência cultural durante o período da ditadura, reabriu as portas com uma sala dedicada à atriz – uma homenagem surpresa orquestrada pelos novos administradores Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, fundadores da companhia teatral Os Satyros. “Eu fiquei totalmente surpresa. Eu acho que foi o presente mais bonito que eu já recebi na minha vida’’, comenta a atriz.

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Fomos até São Paulo e vimos Patricia, com os pés descalços (”me deu vontade de sentir o chão, porque isso aqui é muito sagrado”), em toda a glória de seu momento, celebrar a trajetória de mais de 20 anos da dupla e a importância da revitalização do lugar. ”Me sinto honrada de estar ao lado desses dois gigantes, da galera dos Parlapatões, e de todos que lutam e sonham. Meu coração transborda de amor, porque eu estou junto desses dois guerreiros, sou fã absoluta do trabalho deles, que dedicam à vida à inclusão, à igualdade, e esses são valores que norteiam a minha vida! É para isso que eu vivo. Para de alguma maneira, eu colaborar com um pouquinho que eu puder para esse mundo ser menos desigual e mais acolhedor”, disse a atriz que fez questão de agradecer toda a dedicação de Seu Francisco, nome por trás da história do Cine Bijou durante todos os anos de funcionamento. ”Esse cinema, que nasceu com a vida do Seu Francisco, vai continuar. A gente vai pegar esse bastão e levar longe!”

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O gesto foi a forma que a dupla encontrou de eternizar todo o esforço da atriz nesse processo de restauração do cinema, que corria o risco de ser transformado em mais uma igreja ou bar na região da Praça Roosevelt – efeito desse cenário onde muitas salas fora do eixo comercial estão fechando as portas por falta de incentivo. ‘’A Patrícia é meio Satyros há alguns anos. Somos amigos, ela acompanha o nosso trabalho e sempre foi muito entusiasta com a ideia do Bijou. Alugamos o prédio há três anos e ela chegou a pagar o aluguel do espaço algumas vezes, nos ajudou a criar um financiamento coletivo. Patricia é dona desse cinema”, conta Ivam.

Apesar da surpresa da atriz com a homenagem, Ivam e Rodolfo não tiveram quaisquer dúvidas na hora de decidir qual nome e sobrenome imprimir no metal que estampa a nova marquise: seus predicados mais do que justificam a escolha. ‘’Eu brinco que quando eu crescer eu quero ser Patricia Pillar. Além de ela ser uma atriz e diretora de cinema incrível, também é uma cidadã extraordinária”, pontua Ivam. 

‘’Além de Patricia ser uma atriz e diretora de cinema incrível, ela também é uma cidadã extraordinária”, diz Ivam sobre escolha do nome para a nova Sala (Foto: Instagram Patricia Pillar)

Para além da afinidade pessoal e profissional entre os amigos, o âmago do envolvimento da atriz no projeto é o ímpeto pela transformação e fomento da arte brasileira em toda a sua potência sociopolítica e intelectual. A reabertura do Bijou é extremamente significativa para a retomada cultural e o seu nome na placa só reiterou isso para ela. “Nós temos que reconstruir muitas pontes e caminhos que já havíamos trilhado e, infelizmente, com esse desmando do Governo Federal, houve um poder de destruição gigantesco’’, ressalta.

Em uma ode aos tempos áureos que viveu entre 1962 e 1996, nesse novo ciclo do Cine Bijou, que outrora foi refúgio de títulos proeminentes, alguns até censurados, do cinema de autor e de arte, e de muitos encontros de movimentos de resistência à ditadura, a programação promete seguir engajada. A preços populares, debates, mostras, apresentações musicais e teatrais, além de exibições de longas e curtas-metragens que não integram o circuito comercial, estarão abertos para o público. ”Essa sala foi uma referência, um ícone e formou uma geração de cinéfilos. A programação sempre vai abrir as portas para cinema de autor e independente, aqueles filmes que, de repente, vão como um foguete e passam rapidíssimo pelas salas comerciais, para as questões LGBTQIA+, enfim, esse é o nosso norte”, afirma Pillar. 

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Com ingressos gratuitos até dia 3 de fevereiro, a primeira semana do Cine Bijou é totalmente dedicada ao cinema nacional e foi inaugurada com a exibição de ‘Zuzu Angel’ (2006), longa que dialoga diretamente com a sua epopeia de sobrevivente na nefasta época ditatorial, cujos resquícios ainda se fazem presentes nos dias de hoje. Dirigido por Sérgio Rezende, o filme, escolhido pela própria atriz para a noite, retrata o sofrimento da estilista que tenta provar o assassinato de Stuart Angel Jones nas mãos dos militares, também responsáveis pelo seu assassinato como uma tentativa de lhe silenciar. ‘’Zuzu Angel foi imbuída de uma coragem do tamanho do mundo, isso é muito forte’’, reflete Patricia que leva consigo até hoje os ensinamentos da bravura de Angel. ‘’A vida continua nos pedindo coragem, que é a ação que vem do coração. Quando o seu coração manda, sai da frente!”

Uma mesa, uma cadeira e um sonho de resistência 

A reabertura do centro cultural, chamado carinhosamente de ‘bunker’ por Ivam e Rodolfo, é mais uma vitória dos Satyros no processo de revitalização da Praça Roosevelt, considerada por muito tempo uma das regiões mais perigosas de São Paulo. A caravana dos Satyros chegou ao local nos anos 2000, apenas quatro anos após o fim das atividades do Cine Bijou, com uma mesa e uma cadeira. O sonho de promover uma arte engajada e preocupada, que fugia de qualquer amarra estética e intelectual, não cabia somente naquela mesa e, juntos, os dois construíram um legado que vai ficar marcado na história de São Paulo e até mesmo do mundo.

Hoje, Cabral e Vázquez, que já representaram o Brasil em países como Berlin, Espanha e Portugal, seguem promovendo uma agenda artística de intercâmbio cultural e estão à frente do festival de teatro Satyrianas, o maior da capital, da maratona cultural Satyrianas, que ocupa a Praça Roosevelt com inúmeras atividades teatrais ao ar livre, e do Satyros Cinema, produtora cinematográfica que já lançou três longas e realizou digitalmente, em 2021, o festival Satyricine Bijou, uma iniciativa de promoção do cinema independente. 

Patricia, que em 2019 participou do Satyrianas com uma leitura dramática da peça ‘Anna, Você Pode Ficar’ ao lado da atriz portuguesa Luísa Pinto, acredita que a filosofia do grupo reflete os principais valores do Cine Bijou e do que ela julga que toda arte deveria ser: subversiva, inclusiva e plural. ‘’Os Satyros lidam com pessoas de diversos lugares do mundo pela própria atividade teatral deles. Isso é uma vocação que tem a ver com o cinema Bijou, que tem a ver com isso de você receber, de ter essa interlocução, essa conversa com pessoas de todo mundo. Teremos uma programação aberta, brasileira, mas também estaremos abertos para o mundo. O Cine Bijou não poderia estar em melhores mãos do que nas de Ivam Cabral e Rodolfo. Essa é a minha maior alegria”, declara. 

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Na contramão da cultura de blockbusters das grandes salas e da ascensão dos streamings, o cinema de rua se apresenta como um oásis cultural que valoriza, democraticamente, a experiência cinematográfica como ferramenta essencial na formação do cidadão pensante a partir da troca e da reflexão com outrém sobre os temas, quase sempre socialmente transgressores e reivindicativos, ali vistos. ‘’O cinema de rua é um cinema de porta aberta, muito mais acessível por si só, mais perto das pessoas. Ele não é igual a um cinema de shopping que está incluído dentro de um consumo, ele abraça o bairro. Ele não é um produto, é um lugar de encontro. Eu vejo a abertura desse cinema como um gesto de rebeldia, de amor ao cinema, à arte, à cultura, aos encontros, ao acolhimento. Um forte gesto em contrapartida à maneira como a cultura está sendo tratada nesse governo’’, declara. 

Patricia e cinema: duas artes em movimento 

Aos olhos de Patricia, o cinema é “uma imagem em movimento, é indefinível, cabe tudo lá dentro. É uma caixinha preta onde cabem todos os sonhos. A definição pode ser interpretada como mais do que uma mera alusão à magia criada pela linguagem cinematográfica; poderia, facilmente, ser uma definição da própria atriz e diretora. Sem pressa pelo futuro, Pillar, com mais de 40 anos de carreira, busca, seja na direção ou atuação, trabalhos que a arrebatam, a deslocam enquanto artista e ser humano, e tenham algo diferente a dizer, já que o corriqueiro nunca lhe interessou e seus desejos, alguns ainda desconhecidos, são camaleões. 

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Na sua trajetória pelo cinema, Patricia pode marcar alguns sonhos já realizados. Atriz de títulos como ‘A Maldição de Sanpaku’ (1991), ‘O Quatrilho’ (1995) e ‘Amor e Cia’,  Pillar deu vida a um leque diverso de personagens e, em 2009, teve a oportunidade de dirigir o seu primeiro longa-metragem, o documentário ‘Waldick: Sempre no meu Coração’ em homenagem ao cantor romântico Waldick Soriano. Na época lançado junto a um DVD e CD de um show inédito produzido e dirigido pela atriz, o filme relembra, a partir da passagem da turnê de Soriano pelo sua cidade-natal, Caetité, a árdua trajetória do artista rumo ao estrelato e nasceu da vontade de Pillar, fã do cantor, de se aprofundar em questões da vivência do músico que a interessavam. Velhice, fama, declínio, solidão, foram temas que a tocaram profundamente.

Filha do teatro, Patricia Pillar aprendeu tudo o que sabe nos palcos e foi exatamente essa experiência coletiva, de ”botar a mão na massa”, misturada com o desejo de ter a própria voz, que a fez explorar as suas possibilidades para além do papel de atriz. Com poucos recursos, o seu coletivo teatral precisava da ajuda de todos os integrantes e Pillar não pestanejava na hora de se envolver com cenografia, figurino, luz, divulgação e bilheteria. Essa ética de trabalho foi passada para a TV e cinema e, aos poucos, a bagagem adquirida com outros profissionais de diferentes setores foi construindo o caminho das pedras rumo à direção. ‘’Sempre gostei de ver o trabalho como um todo e de conversar com outros setores, não só me preocupando com a atuação. Então, minha maneira de trabalhar, mesmo que seja no cinema, televisão ou teatro, não importa aonde, é como se eu estivesse fazendo uma peça. Era natural que algum dia eu quisesse contar uma história do meu próprio jeito, quisesse fazer o meu, onde eu fosse responsável por mostrar uma ideia, pela qual a equipe também iria se apaixonar aos poucos”, diz. 

Agora, Patricia Pillar não tem novos planos para a direção, mas a incerteza do futuro não a assusta, tudo tem a sua hora para acontecer. ‘’Eu tenho a minha profissão, sou atriz, então, de vez em quando eu paquero essa ideia de dirigir. Futuramente, quero dirigir uma ficção, mas sem pressa. Ainda não está nos meus planos, só quando eu me apaixonar por uma história, aí eu vou em frente. O tempo dirá’’, reflete. Por ora, Pillar segue firme no ofício da atuação e está prestes a finalizar o longa-metragem “Revolta dos Malês”, de Antonio Pitanga. O longa, que levou mais de 10 anos para adquirir investimento necessário para ser realizado, retrata a revolta de escravizados muçulmanos que aconteceu em 1835, na Bahia, e traz Pillar no papel de Mamãe A., uma escravocrata, personificação da visão branca. 

Patricia Pillar vive Mamãe A em ‘Revolta dos Malês’, dirigido por Antônio Pitanga. (Foto: Instagram Doce Pillar)

Para a atriz, que acompanhou a saga de realização desde o início, é uma honra fazer parte deste projeto e resgatar uma narrativa que ainda é preterida na história do Brasil. ‘’Ele me fala há anos desse projeto, então quando foi a hora de acontecer. É lindo ver o Pitanga nesse lugar de liderar esse feito. Eu admiro muitíssimo a valentia dele de estar colocando adiante esse projeto, que é ousado e está ficando muito bonito”, compartilha. Nunca no mesmo lugar, Patricia Pillar conduz sua vida e carreira de peito aberto e a única certeza que tem do futuro é a de que o cinema brasileiro, a força dos artistas por trás da indústria, vai seguir firme e forte. ‘’Espero que o cinema brasileiro tenha o lugar que ele merece. Um pouco antes de começar esse governo, nós estávamos em um momento maravilhoso, de grande presença nos festivais internacionais, conquistando um espaço merecido pelo nosso cinema e fomos brutalmente interrompidos. Mas acredito na nossa força, na força dos nossos artistas, diretores’’, declara Patricia com o realismo otimista de quem está sempre pronta para o sonho que der e vier.