*Por Flávio Di Cola, diretamente de Cannes, e Alexandre Schnabl, do Rio
Fórmula para o Festival de Cannes 2015: presença maciça de estrelas hollywoodianas no red carpet e no juri eclipsando expoentes do cinema-arte europeu; abertura com um longa dirigido por uma mulher badalada na democrática França (“La tête haute”, de Emmanuelle Bercot) numa época em que as fêmeas bradam por valorização profissional até mesmo na festa do Oscar; um lançamento mundial de blockbuster apocalíptico (“Mad Max – estrada da fúria”) fora da competição, mas apresentado com estardalhaço e elogiado pela crítica; uma comédia que mistura amargura com humor negro (“Irrational Man”) dirigida por um diretor excêntrico (Woody Allen), mas avesso ao espetáculo; um delirante conto de fadas europeu que concilia a tradição narrativa de Pier Paolo Pasolini em sua trilogia da vida com efeitos especiais de ponta dirigido por um cineasta conhecido por filmes realistas (“Il racconto dei racconti”, de Matteo Garrone) e estrelado por uma atriz mexicana casada com o CEO de uma das maiores corporações de luxo dom planeta (Salma Hayek Pinault, excelente); um queridinho de outras edições do evento vaiado até dizer chega (Gus Van Sant por seu “The Sea of Trees”); e até a expectativa pela nova empreitada (“Youth”) de um italiano que papou o Oscar de ‘Melhor Filme Estrangeiro’ (Paolo Sorrentino) por um filme (“A Grande Beleza”) comparado à obra máxima de Federico Fellini.
Esse espetacular caldeirão de sucesso não estaria completo se faltasse uma realização que lidasse com o amor entre iguais numa época em que esse assunto pulula generalizadamente na mídia, a partir de uma sofisticada trama de época com acabamento digno do rigor estilístico da Era de Ouro do cinema.
Eis, portanto, que surge na metade do festival a receitinha adequada do melodrama de luxo perfeito: 1) imagine uma história de paixão proibida, vítima de sórdidas chantagens e condenação moral; 2) certifique-se de que os amantes sejam diferentes em termos de classe social, idade e estado civil; 3) coloque os dois numa montanha russa cheia de altos e baixos, mesclando prazer com medo; 4) transporte o enredo para um período moralmente repressivo, mas retrô e bem chic; 5) contrate a melhor figurinista do mercado; 6) abandone o digital, filmando tudo em película com o look dos filmes da Hollywood-1950. Mas, para que o projeto dê mesmo certo, antes de começar a misturar todos esses ingredientes, tenha certeza absoluta só de uma coisa: que você vai ter Cate Blanchett encabeçando o elenco!
Começamos com essa brincadeira só para dizer que apenas um diretor como Todd Haynes poderia entregar ao público de hoje um genuíno e delicioso woman picture como “Carol” décadas depois deste gênero de filme ter atingido o seu apogeu em qualidade e popularidade entre os anos 1930-1950, e com uma excepcionalidade: trata-se de uma história de amor lésbico entre uma elegante socialite (Cate Blanchett) e uma balconista aspirante a fotógrafa (Rooney Mara que, felizmente, substituiu Mia Wasikowska – a qual, enquanto atriz que aspira ver seu reflexo no maravilhoso espelho do talento, não passa de mera Alice no País das Maravilhas dos Rostos Bonitinhos), ambientada na passagem dos anos 1952-1953, em pleno início da conservadora Era Eisenhower (1953-1960).
Esta é a única adaptação para o cinema do segundo romance da grande escritora norte-americana Patricia Highsmith (1921-1995) intitulado “The price of salt”,mas que a autora preferiu publicar sob o pseudônimo de Claire Morgan em razão da temática abertamente gay e por ter reservando ao seu par de amantes um final feliz, inaceitável para os padrões puritanos da época. Todavia, a reação não tardou a se manifestar: o livro foi seriamente ameaçado de ser censurado, despertou a curiosidade do público e vendeu um milhão de cópias.
Se a irascível Patricia Highsmith estivesse viva não poderia reclamar das adaptações para o cinema das suas principais obras, pois elas sempre atraíram o interesse de diretores e intérpretes talentosos, principalmente a sua série de cinco romances com o personagem Tom Ripley. Recorde suas melhores transposições para a tela:
Assista ao curta “Carol – Behind the Scenes Look”, que situa o longa-metragem dentro do sofisticado ambiente metropolitano e norte-americano pós-Segunda Guerra Mundial, quando se passa a história (Reprodução)
Quase 65 anos depois do seu lançamento em livro, “Carol” marca um tento na reabilitação das grandes personagens femininas que um dia tiveram Bette Davis, Joan Crawford, Barbara Stanwick, Susan Hayward, Jane Wyman ou Ingrid Bergman (homenageada nesta edição do Festival de Cannes) para defendê-las. Esse super time de atrizes-estrelas era tão popular e respeitado na Hollywood clássica que os roteiros para elas destinados eram escritos com o objetivo quase único de valorizar seus dotes interpretativos excepcionais, dramatizando para o público da época os desafios, as angústias e as esperanças que afligiam as mulheres num momento que o cinema assumia, de certa forma, o papel que é hoje dos livros de auto-ajuda.
Esses filmes – na esmagadora maioria melodramas descarados –, tinham tanta personalidade que acabaram merecendo uma categorização própria: os famosos woman pictures. Esse momento da história da Sétima Arte passou e nas décadas seguintes os filmes de lutas marciais, ação, aventura, guerra, catástrofe, espionagem ou heróis de HQ – entre tantos outros gêneros dirigidos aos “machos” – praticamente tornaram os papéis femininos de peso tão raros como o boto cor-de-rosa.
Mas de uns tempos para cá, atrizes, estrelas, diretoras, roteiristas e produtoras de todas as partes do mundo estão se manifestando de forma cada vez mais contundente contra a supremacia das temáticas ditas “masculinas” no cinema. Algumas arregaçaram as mangas e procuraram desenvolver projetos com personagens femininos densos, como a própria Cate Blanchett que vinha acalentando o projeto de “Carol” há vários anos a partir de um roteiro de Phyllis Nagy escrito há precisamente 13 anos atrás.
Assista abaixo à conferência de imprensa de “Carol” realizada no Festival de Cannes neste último domingo (17/5), antes da sessão de gala (Divulgação):
A entrada de Todd Haynes no esquema, embora não planejada, acabou revelando-se natural: o diretor foi um dos precursores do novo cinema gay americano dos anos 1990, já tinha no currículo outro trabalho bem-sucedido com Cate Blanchett – “Eu não estou aqui” (I’am not here, 2007), em que ela faz uma das personificações de Bob Dylan; além disso, com “Carol” Haynes poderia voltar à época do cinema que retratou o apogeu do american way of life que ele ama e conhece tão bem, como provam os excelentes “Longe do paraíso” (Far from heaven, 2002), refilmagem com Julianne Moore no lugar de Jane Wyman do melodrama de Douglas Sirk “Tudo o que o céu permite” (All heaven allows, 1955), e a minissérie para HBO “Mildred Pierce” (Idem, 2011), com Jessica Lange no papel da mãe sofredora que já havia garantido o Oscar de 1945 para Joan Crawford no dramalhão de Michael Curtiz “Almas em suplício” (Mildred Pierce).
Por todas essas razões, assistir a “Carol” em 2015 vai permitir às novas gerações uma experiência cinematográfica nova – mas paradoxalmente retrô – de aproximação a um tipo de filme que não se curva ao ritmo frenético do cinema fast food. Seu andamento é lento sem ser monótono, pois o diretor tece cada imagem como se fosse um precioso bordado, cujos encadeamentos seguem a estruturação de uma delicada sonata como no clássico absoluto daquele período “Um lugar ao sol” (A place in the sun, 1951) de George Stevens, que Todd Haynes assistiu inúmeras vezes ao lado do cinegrafista Ed Lachman, conforme admitiu em entrevista ao The Hollywood Reporter. Tanto que Carol e Therese só vão para a cama no meio do filme. Mas vale a pena esperar tanto e apreciar como se faz amor no estilo lesbian chic.
Muito antes da ótima recepção que “Carol” está tendo no Festival de Cannes (além da concorrida sessão nesse domingo, outra extra nesta segunda-feira (18/5) só para atender à demanda) , a poderosa distribuidora mundial The Weinstein Company já sabia muito bem a jóia que possuía. Por isso vai guardá-la e tirá-la do estojo só na semana do pré-Natal (aliás, o momento em que se inicia o romance entre Carol e Therese), época propícia aos lançamentos das produções que pretendem entrar com vontade na raia pelas estatuetas da Academia. E “Carol” – com trote elegante, mas raçudo – é, sem dúvida uma das corredoras favoritas do páreo.
Confira um trecho da nova produção de Todd Haynes (Divulgação)
No mais, vale lembrar que lesbian chic é um conceito que se popularizou em meados dos anos 1990 através da alta moda que procurava novas formas de se comunicar com consumidores GLS ricos e sofisticados. Mas, antes, o cinema já havia codificado as relações lésbicas chics através do casal formado por uma “tutora” experiente e requintada e uma jovem “aspirante”. Confira:
*Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e ex-coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria
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