*por Vítor Antunes
“O caminho da magia – como em geral é o caminho da vida – é e sempre será o caminho do mistério“. Esta é uma das primeiras frases de “Brida“, livro de Paulo Coelho que oito anos depois de seu lançamento virou uma novela marcada pelo insucesso. A trama passou por diversas mãos na autoria foi encerrada às pressas e sem final, face a falência de sua emissora: a TV Manchete. Carolina Kasting recebeu, recentemente, um valor residual sobre o montante pago há 10 anos pela Rede TV!, compreendida como sucessora da dívida da Manchete, além da concessão. “Alguém de má fé levantou essa história de que recebi agora o montante total para ter clique”. Falando pela primeira vez sobre o assunto, Carolina nega incômodos em tratar sobre esta novela e sua complexa passagem pela Manchete. “É algo que não fede nem cheira falar da extinta emissora”. Inclusive, a atriz diz não saber, à época, da condição de precariedade estrutural e financeira daquela televisão. “A Manchete para mim foi uma experiência ótima. A penúria da TV não me surpreendeu tanto, pois eu estava em início de carreira e não tinha uma relação de entendimento de que ela estava mal das pernas”.
Dentre os mistérios da vida, menos de um ano depois da malfadada trama, Carolina Kasting estava em “Terra Nostra“. Clássico da teledramaturgia que alavancou sua carreira e levou-a para mais uma novela e desta para “Mulheres Apaixonadas“, atualmente em reprise na Globo e dona da melhor audiência do horário. Na segunda feira, dia 19, a trama assinalou 18 pontos de Ibope, um pouco mais que o dobro da segunda colocada, a Record. Sobre a trama global, a intérprete de Laura diz haver seguido à risca a máxima que Manoel Carlos, o autor, lançou mão para defini-la: “Ela faz tudo por amor”. Apaixonada por um homem mulherengo, César (José Mayer), Carolina diz que, se pudesse, aconselharia sua personagem a “sair dessa”.
Além de “Mulheres Apaixonadas“, Kasting pode ser vista na exibição de “Valor da Vida“, novela portuguesa exibida pela Band, às 22h. A trama foi gravada em 2018 e só agora está em exibição no Brasil. Quando conversou com o site Heloisa Tolipan, Carolina tinha acabado de chegar de Portugal, onde esteve fazendo uma residência artística, pois que também trabalha com artes plásticas e lá permaneceu por um mês tocando o projeto “Genealogia do sacrifício”. Nesta entrevista, ela debate questões femininas, além do próprio feminismo.
BRIDA
“Talvez um dia você seja igual a ela: Diferente“. Foi com esse mote que “Brida” foi vendida. Substituindo “Mandacaru” , uma novela que, ainda que não fizesse tanto sucesso como “Xica da Silva” e “Tocaia Grande” suas antecessoras, também não fez feio no Ibope. Brida tinha uma missão árdua: subir a audiência do horário e conseguir anunciantes para continuar existindo, já que a parceria feita entre a TV e os apoiadores era na base do tudo ou nada. Contudo, não deu em nada. A audiência só fazia abaixar e exauriu os recursos da já depauperada emissora. Originalmente, Kasting não seria a protagonista, mas Christine Fernandes, que saiu antes – ou a tempo – da empreitada. Inicialmente, Carolina daria vida à Inês, personagem que ficou com Manuela Dias, hoje famosa autora de “Justiça” e “Amor de Mãe“.
Ao falir, a frequência anteriormente ocupada pela Manchete foi substituída pela da Rede TV!. E nesta fresta jurídica sobre se a emissora nova era também responsável pelos passivos de sua antecessora, entram os imbróglios jurídicos que se arrastam até hoje. Em síntese, o processo de Kasting é datado de 1998, quando a Manchete ainda existia, bem como a Bloch Som e Imagem, produtora ligada à Bloch e que produzia as novelas.
Em 1999, imediatamente após o deferimento da falência do grupo, a TV Ômega (Razão Social da Rede TV!) foi nomeada sucessora também da dívida. Algo mantido pelo TJ-RJ em 2003, que determinou o pagamento de dívidas trabalhistas da extinta televisão. Ainda naquele ano, a 9ª Câmara Cível do TJ-RJ decidiu que a Rede TV! (TV Ômega) não deveria suportar as dívidas deixadas pela Manchete. Em 2006, cria-se que a TV Ômega era a sucessora. Em 2009, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça definiu que a TV Ômega foi isenta de pagar pelas dívidas da extinta televisão. Segundo apurado pelo site Notícias da TV, a dívida da Manchete é impagável e beira R$ 1 bilhão.
“Fui fazer Brida”, diz Carolina, “Não por ser protagonista, já que estava em início de careira, mas pela oportunidade de ser dirigida por Walter Avancini (1935-2001). Por conta do destino acabei sendo a principal personagem da novela e vi a Manchete fechando no meio da produção. São coisas que não dominamos. Eu não tinha uma relação de entendimento de que a Manchete estava mal das pernas. Eu não sabia. Por ser muito determinada e disciplinada, pensei no trabalho com o Avancini. Eu não sabia do lado business da coisa”, pondera.
O pesar da atriz não é sobre a trama de fim trágico, mas a atmosfera criada em sua volta. “O que se fala na imprensa, sobre o recebimento da indenização é um equívoco. Devo tê-lo recebido há cerca de 10 anos, não foi agora. Em setembro, o escritório de advogados me procurou para dizer que havia um valor residual, mas o montante dos meus salários, da indenização, da rescisão, da falência e do transtorno, especialmente por eu ser protagonista, eu já havia recebido há muito tempo. E não fui procurada por ninguém para falar sobre isso, vi na Internet”.
Isso é algo que não me moveu e é algo que não fede nem cheira falar da Manchete para mim. Foi uma experiência ótima, cresci muito como atriz. Não fiquei chorando na sarjeta da emissora e por sua falência, até por que ela faliu por conta de outras pessoas, por algo que não tinha nada a ver comigo – Carolina Kasting
E Carolina prossegue: “Para falar de “Brida” a imprensa usa um tom de desprezo, para caçar clique, ou publica coisas sem conteúdo, feitas por gente que não tem o que dizer. Afora o fato de tratarem de forma negativa eu querer receber o dinheiro pelo meu trabalho, como se fosse uma coisa ruim, quando na verdade é algo justo. O que recebi foi uma bolada, sim, mas foi de meu direito e, com isso, fui fazer projetos positivos para a minha vida. Julgam pejorativamente, como se fosse algo errado eu receber por algo que é meu. Eu não me incomodo tanto com essa falação sobre a novela, porque ela não me atinge em nem um milímetro, não fico sequer chateada. Foi uma das maiores experiências da minha vida estar com o Avancini e ser dirigida por ele. Foi uma oportunidade que tive, agi de maneira muito lúcida, recebi o que me era de direito e vida que segue”.
Além de Brida, Carolina fez “Anjo de Mim“, “Escrito nas Estrelas“, “O Profeta“, “Amor Eterno Amor” e “Além do Tempo“, todas novelas com temática espiritual. Para a atriz, a espiritualidade é “uma camada a mais para o público e traz uma espiritualidade sem dogmatizar, sem dizer o que é o certo. E dá a ele uma visão do conceito do “eterno retorno do Nietsche, a ideia de que aquilo que se faz existe um retorno e vai existir sempre isso. Acho interessante essa ausência de fundamentalismo. É algo bom, gostei muito de fazer esses personagens espiritualizadas”.
MULHERES APAIXONADAS
É voz geral que o texto de Manoel Carlos tem diferenças e robustez. O autor faz cenas longas, grandes citações, tem um olhar poético para com a vida. Como não haveria de ser diferente, Carolina sinaliza justamente esta qualidade na dramaturgia do aposentado autor: “É um texto peculiar, específico. Falamos algo consistente, profundo. É um mergulho na personagem, uma novela verticalizada para os atores, consistente. Lembro que logo no início da trama encontrei com ele, que me disse que Laura fazia tudo na vida por amor. Eu fiquei muito disciplinada nisso, e defendi-a com unhas, dentes, coração e vísceras. Quando eu era a Laura, não via ninguém na minha frente. Eu passava como um trator, por conta da personalidade dela, e muito se deve à frase do Maneco. Há uma cena inclusive que ela tenta matar o personagem do Leonardo Miggiorin (Rodrigo), com um furador de gelo”, relembra.
Muito questionou-se à época da primeira exibição a mudança do comportamento de Laura, que abrandou sua vilania e conclui a trama com Téo (Tony Ramos) outro personagem que também tinha um comportamento errático. “Há uma virada na trama e Téo é apresentado com sensibilidade, apesar de vacilante. Téo também faz um processo de redenção e ambos se juntam para transformar-se numa família normal, digna”. Carolina lamenta, contudo, o fato de eles não terem gravado a última cena do casal na novela, que, segundo ela, sinalizaria essa esperança, esse recomeço: “Era lindo. A novela acabaria com a Laura e ele caminhando com a menininha Salete (Bruna Marquezine) sugerindo que todos estariam reconstruindo a vida dentro dos moldes que se entendiam como corretos. Uma pena não ter havido tempo para gravarmos esta cena”.
Havia uma questão submissa e dependente da mulher em relação a um homem tóxico que era o César (José Mayer), uma pessoa heteronormativa, machista, que ficava com todas. Isso não era questionado, colocava-se e as pessoas tiravam as suas conclusões. Laura estava num relacionamento tóxico, mesmo sendo uma mulher bonita, bem sucedida, incrível. Se eu encontrasse ela na rua eu a aconselharia a sair dessa – Carolina Kasting
Na opinião da Carolina, a postura de Laura está justificada por si. Foi uma decisão do autor e por isso deve ser respeitada. “Não há personagens que não façam sentido. Nós, enquanto humanos não fazemos: Odiamos, amamos, temos compaixão, lutamos contra as nossas sombras. Eu adoro isso pois torna um texto dramático bom, afinal, traz os conflitos e as dificuldades. Diferentes de um texto raso que não nos traz nada ou quando entrega-se tudo mastigado para o telespectador. O personagem torna-se previsível, sendo a mesma coisa do início ao fim. Isso não tem graça. Laura foi uma personagem muito importante para mim”, destaca.
Se dermos produtos de qualidade para o público ele reage bem. As pessoas sabem quem foi Laura, sabem dessa virada dela, torceram por ela e falam dela ate hoje – Carolina Kasting
MULHER
Além de “Mulheres Apaixonadas“, Carolina pode ser vista em “Valor da Vida“, na Band, na qual interpreta Camila, uma mulher que “transita entre o protagonismo e a vilania. Ela inicia a novela como heroína, mas, de repente, as coisas começam a dar errado e ela entra num caminho de submundo, de tráfico de órgãos, que é a proposta da autora, Maria João Costa“. A diferença entre Brasil e Portugal, segundo a atriz é mais técnica. “Os estúdios de Portugal quando comparados aos aos nossos são como a Hollywood para nós. Eles não tem dinheiro, ainda que a proposta financeira a mim fosse muito boa. A ponto de eu e meu marido conversarmos e optarmos por levar a família toda para Portugal”. Kasting dizia que a produção de capítulos em terras lusas era intensa e chegava a ser com 42 cenas por dia.
A artista conta-nos que “os personagens nos escolhem e não o contrário. É um movimento de vida, uma trajetória, um trabalho desencadeia outro. Há alguns ‘nãos’ que fazem muito sentido e fazem nossa carreira mais que os ‘sins'”. E ela, então, desabafa: “Eu disse muito ‘não’ ao cinema na época de “Terra Nostra” quando fui convidada. Eu avaliava muito em relação à qualidade da personagens e elas, infelizmente, ainda eram muito rasas e a principal cena delas era de nudez e sexo. Não era uma personagem que se pudesse construir para interpretar aquilo, não me interessava. Acho que fui radical demais. Olhando para trás eu podia ter feito algumas concessões para entrar no nicho do cinema. Porém, fiz uma trajetória consistente especialmente na Globo, o que é uma coisa rara e isso foi determinante”.
Além do seu trabalho como atriz, Carolina dedica-se a atividades que dialogam com a sua luta pelo feminismo. “Acho que essa pauta é ideologicamente possível, em contraponto ao patriarcado, que está destruindo o mundo atual, o planeta e as coisas erradas e ruins. Eu acho que o feminismo é um novo mundo possível para continuar com a vida”. E a artista se alinha a alguns coletivos feministas como o Ecofeminismo – que luta em prol da ecologia – e o das Latinoamericanas Feministas. O trabalho plástico de Kasting, segundo ela própria, “passa por esse viés feminista e esse trabalho, o da Genealogia do Sacrifício, é muito grande e importante para mim. Quero trazer para o Brasil este projeto, elaborado sob a perspectiva decolonial. Fiz objetos artísticos aqui no Brasil e levei-os para lá para Portugal, fazendo esse caminho inverso ao dos colonizadores”.
A cultura portuguesa é ainda mais machista que a nossa. A minha filha ajudava as meninas na escola questionando o machismo dos rapazes em Portugal, apontando o que era “assedio ou crime” – Carolina Kasting
Quando encerrava esta conversa, Carolina falou, baseada num texto de Márcia Tiburi, que a mulher forte é, também, uma pessoa solitária. “A mulher sujeito da própria vida é sempre rechaçada”. Iniciamos esta matéria falando de Paulo Coelho e de “Brida”. No livro, best seller do autor, a palavra caminho é repetida 107 vezes. Reiterada, reafirmada. Só se evolui quando se enfrenta. Quando não há caminho possível, inventemos um com a mão. Carolina reescreveu a história interrompida, escreveu outras novas e não parece inoportuno dizer que deu a luz a novas possibilidades. Caminho é vocação. E se viver é verbo, vida é um substantivo feminino. “Vida” é mulher.
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