*Por Flávio Di Cola
A chuva que caiu sobre Los Angeles no final da tarde de ontem quase comprometeu o desfile de estrelas sobre um red carpet encharcado em frente ao Teatro Dolby, no coração de Hollywood. Mas os Deuses da Tela interferiram e, milagrosamente, o aguaceiro acabou um pouco antes do início da 86ª cerimônia de entrega dos prêmios da Academia. O Dior vermelho de Jennifer Lawrence e o discreto Givenchy de Julia Roberts chegaram secos e impecáveis ao gigantesco auditório para 3.400 assistentes. Entre o red carpet e o interior do teatro, fustigados pela bateria de entrevistas-relâmpago, todos os astros e estrelas dos mais diversos naipes repetiam o mesmo mantra de exaltação à amizade, à união, à humildade e aos valores familiares que caracterizam a colônia cinematográfica hollywoodiana. Já a escolha para mestre de cerimônia na figura da apresentadora e humorista Ellen DeGeneres – ativista lésbica de movimentos LGBT – deu o toque progressista almejado pela indústria nestes tempos de controvérsias relacionadas às questões homoafetivas no mundo inteiro. Não se sabe ainda a repercussão deste Oscar em Uganda, onde – há uma semana – o presidente Yoweri Museveni promulgou lei que criminaliza o homossexualismo.
Aliás, as relações da grande festa da mais poderosa “fábrica de ilusões” da história do entretenimento com o mundo real ficaram muito patentes nesta edição do Oscar: estavam presentes na cerimônia não só o verdadeiro Capitão Richard Phillips – cujo sequestro por piratas somalis em 2009 foi freneticamente reproduzido pelo diretor Paul Greengrass sob a pele de Tom Hanks -, como também a verdadeira Philomena Lee, cuja procura pelo filho desaparecido se estendeu por 50 anos, e transformada na hábil adaptação de Stephen Frears, protagonizada por Judi Dench, também indicada – mas não confirmada – para o prêmio de melhor atriz. Hollywood sempre foi exímia prestidigitadora na arte de embaralhar fantasia com realidade como fórmula para turbinar ainda mais o frisson das suas criações: sentados comportadamente no auditório, esses dois heróis da vida – o capitão e a ex-noviça – pareciam muito mais um par de mudos “atestados de autenticidade” dos filmes, do que as vibrantes e emocionantes contrafações proporcionadas pela dupla Hanks-Dench. Na noite de ontem, Hollywood provou – pela enésima vez – o poder transfigurador da sua arte.
Ainda no campo das polêmicas de sexualidade e gênero, a imprensa especializada norte-americana parece não ter gostado muito da língua ferina de DeGeneres quando chamou a atenção para a presença de Liza Minelli na plateia como se a confundisse com uma cover travesti. É verdade que Liza virou uma caricatura de si mesma há muito tempo, mas a apresentadora resolveu esquecer a razão distinta para a presença dela e de seus dois irmãos na cerimônia – uma homenagem aos 75 anos do lançamento de “O mágico de Oz”, obra-prima eternizada por Judy Garland, mãe de Liza, Lorna e Joey Luft – para não perder a piada. Se não bastasse isso, ainda puxaram o tapete de Liza na hora em que DeGenere resolveu satirizar a onda dos selfies – os infames autorretratos por celular. Ela não conseguiu correr a tempo para aparecer diante do click acionado por Bradley Cooper com os nomes mais quentes da Hollywood de hoje e que acabou por se transformar no post mais compartilhado da história do Twitter enquanto a festa transcorria.
E por falar em homenagens, a Academia parece querer estender cada vez mais as honrarias devidas aos membros da comunidade cinematográfica que partem desta vida para a memória da história da 7ª Arte. O grupo de falecidos pranteados foi bem numeroso este ano e envolveu as mais diversificadas áreas, evidentemente com o intuito de mostrar pedagogicamente ao público mundial que o que se vê nas telas e telinhas não é só fruto da beleza ou do carisma de astros e estrelas. Essa preocupação em evidenciar cada pequena atividade do ofício cinematográfico parece estar tão em alta em Hollywood que durante a cerimônia foi anunciado pela primeira presidente afro-americana da Academia a inauguração de um monumental Museu do Cinema no final do ano de 2017.
Mas, na realidade, o grande público mundial que acompanhou o espetáculo desta premiação se emocionou mesmo com o desaparecimento, em 2013, daqueles que brilharam nas telas, como as duas maiores (e rivais) estrelas juvenis da Hollywood dos anos 1930 – Deanna Durbin, e Shirley Temple – homenagem mais do que obrigatória, já que ambas salvaram da bancarrota os seus respectivos estúdios, Universal e Fox, no auge da Depressão. Mas como será possível esquecer os insubstituíveis Peter O’Toole, Joan Fontaine, Eleanor Parker, Esther Williams e, lamentavelmente, um dos mais queridos atores da nova geração – Philip Seymour Hoffman -, ainda por cima rememorados tendo como fundo musical o tema de “Um lugar no passado”?
Apesar dessas passagens tristes e solenes, a cerimônia teve os seus momentos da mais pura chanchada. Para aplacar a larica que sempre aparece no meio de uma longa noite de insônia, Ellen DeGeneres encomendou três pizzas gigantes, cujas fatias foram disputadas apenas pelas estrelas do primeiro escalão que estavam sentadas na parte da frente do auditório – Meryl Streep, Brad Pitt, Julia Roberts, Leonardo DiCaprio, Harrison Ford, Anne Hathaway, Sandra Bullock, Kevin Spacey, Martin Scorsese, Bradley Cooper, Amy Adams, Whoopi Goldberg, Christopher Waltz, Bill Murray, Jennifer Lawrence, entre outros gulosos ilustres. Duro foi disfarçar as mastigadas e a massa presa nos dentes perante as câmeras, ou encontrar alguns dólares nos smokings quando Ellen passou o chapéu para pagar as pizzas ao entregador. Aqui, Hollywood teve o seu momento de Atlântida.
Confira os laureados da 86ª cerimônia de entrega do Oscar da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood:
Com 7 estatuetas, “Gravidade”: Efeitos Visuais, Edição de Som, Mixagem de Som, Fotografia, Montagem, Trilha Sonora e Diretor (Alfonso Cuarón).
Com 3 estatuetas, “Clube de Compras Dallas”: Ator (Matthew McConaughey), Ator Coadjuvante (Jared Leto), Maquiagem e Cabelo.
Com 3 estatuetas, “12 Anos de Escravidão”: Atriz Coadjuvante (Lupita Nyong’o), Filme e Roteiro Adaptado.
Com 2 estatuetas, “Frozen”: Animação e Canção Original.
Com 2 estatuetas, “O Grande Gatsby”: Figurino e Direção de Arte.
Com 1 estatueta: “Blue Jasmine”: Atriz (Cate Blanchett); “Ela”: Roteiro Original; “A Grande Beleza”: Filme Estrangeiro; “Mr. Hublot” (Animação em Curta-Metragem); “Helium” (Curta-Metragem); “The Lady in Number 6: Music Saved My Life” (Documentário em Curta-Metragem); e “A um Passo do Estrelato” (Documentário em Longa-Metragem).
* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Amante judiado e teimoso da Sétima Arte, suporta todos os constrangimentos na sua fidelidade às salas de cinema
Artigos relacionados