*por Vítor Antunes
Orlando Caldeira compõe o elenco de “Vai na Fé“, novela das 19h que tem tido excelente repercussão nas redes sociais, junto à crítica especializada, e com a audiência, cujos índices tem, comparativamente, se aproximado aos da novela das 21h, “Travessia” . Um dos nomes que têm encontrado grande receptividade é o de Orlando Caldeira, o Anthony Verão, que é um jornalista de celebridades e esconde uma relação mal resolvida com Vitinho (Luís Lobianco). O ator acredita que Anthony, ainda que tenha um humor ácido, possui a seu favor o fato de sua homossexualidade não ser tratada como alívio cômico, além de ser um personagem que possui vida própria, carreira, conflitos existenciais. Algo que não é vezeiro na representação dos homossexuais das novelas. Outra questão incomum se dá diante do fato de a trama revelar a história dos personagens de Caldeira e Lobianco. Um casal que foge à standartização dos corpos gays na teledramaturgia: Um homem preto e um outro gordo.
Além da grande repercussão da trama noturna, Orlando celebra o fato de viver numa época em que pode falar abertamente de sua homossexualidade, a contrário do que era imposto aos atores, que tinham que silenciá-la por medo de alguém revés. O artista também comenta sobre seus novos projetos no audiovisual. Dentre os quais, “Pelada”, que trata sobre a disputa de espaço entre homens héteros que querem jogar futebol numa quadra que será desativada e homens homossexuais que querem jogar gaymado no mesmo lugar e no mesmo horário. “Gaymado”, trata-se de uma adaptação de nomenclatura do tradicional esporte coletivo “Queimada” , quando jogado exclusivamente por homens gays. Tal variação é muito presente nos subúrbios cariocas e na Baixada Fluminense, e costuma ser o único esporte praticado por jovens homossexuais, especialmente nas aulas de Educação Física. Caldeira também fala sobre a importância da representatividade étnica na TV.
MALDADE, NÃO. VERDADE
Em “Vai na Fé“, Orlando Caldeira vive Anthony Verão um jornalista de entretenimento, famoso por seus comentários mordazes. Para o ator este trata-se de um trabalho que está “sendo incrível. Não esperava um sucesso tão grande. O meu termômetro tem sido as ruas e eu percebo que o público está encantado com a novela. Tanto que me abordam rua chamando-me de fofoqueiro, como se eu, Orlando, o fosse e não o Anthony. As pessoas estão de peito aberto recebendo a novela generosamente, o que é algo muito interessante”.
O fato de ser um “personagem de si mesmo”, segundo definição da própria autora, era um risco. Especialmente por que gays mais afetados eram utilizados como alívio cômico nas tramas de televisão. O primeiro desafio era não recorrer ao expediente da “estereotipação vazia”, como fala-nos o ator. “Comecei a pesquisar blogueiros, os jornalistas de fofoca e nesse universo, me dei conta que aqueles que chamamos de fofoqueiros não são exatamente os que contam a fofoca, mas os que a recebem. Que conseguem fazer com que as histórias sejam contadas. Eu passei a seguir essas pessoas e a perceber coisas que se repetiam, como a de dar uma notícia ruim de uma forma doce e se fazer de amigo para conseguir uma notícia. Há todo um modus operandi. Além disto, há o mérito da Rosane [Svartman, autora], na escrita dela. Trata-se de um personagem complexo, humano. Depois que eu comecei a acompanhá-lo de perto nem o considero tão fofoqueiro assim, mais. Ele é gente como a gente, está correndo atrás, fazendo o que pode”, considera.
O bordão do personagem de Caldeira é “Maldade, não. Verdade”. Para o ator, é uma importante afirmação esta, especialmente numa época como a atual, plena em fake news, e influenciadores identificando-se como repórteres. “[Trata-se de] um jornalista que deixa isso claro, num momento de tantas notícias falsas ou não checadas. Eu acho fundamental haver uma figura que se ponha ao lado da verdade e que frases como estas saiam da boca de um jornalista, ao afirmar que escreve apenas informações verdadeiras. Creio ser algo como tratar com respeito a profissão que, ao longo dos anos foi desrespeitada, deslegitimada. E Anthony é, de fato um profissional da notícia”. Segundo o artista, o seu personagem era repórter policial antes de tornar-se um “fofoqueiro”. Nesta fase da vida, o rapaz tinha um namoro com Vitinho (Luis Lobianco). Inclusive, veicula-se que o relacionamento de ambos tornará a acontecer.É preciso falar do amor de dois corpos marginalizados na sociedade de uma forma bonita – Orlando Caldeira
Um dos desafios dos quais passa o ator para a composição de sua personagem é o fato de ele, tal como seu intérprete, serem homens gays. No caso de Anthony, trata-se de um gay afeminado. Como criar essa personagem sem beirar a caricatura? “Meu personagem não serve à comicidade. Para mim, ele é um elemento de libertação. Eu sou um homem gay nascido nos anos 1980 e tive que, por anos, fingir uma heteronormatividade. Creio que o mundo não acredite mais nisso”, fala sobre ter de fingir uma atitude macho.
Em 2023, eu fazer um personagem afetado é algo como poder dar as pintas que não dei durante a vida por conta de tratar-se de uma história que nos foi apagada à força, a fim de que pudéssemos caber nos lugares e responder a um padrão que, na verdade não nos representa. Há quem me diga que o Anthony é um exagero do Orlando na questão do trejeito. E é muito louco pensar que eu cresci achando que para fazer TV eu não podia dar pinta. Isso é algo libertador para mim – Orlando Caldeira
O fato de poder falar abertamente de sua sexualidade, bem como a de seu personagem, para Orlando é a algo importante. Assim como fazer um personagem humanizado. “Trata-se de algo novo. Nos anos 1980, assumir-se gay era algo impensável, demissional, até . Por isso acho importante reformar esse lugar político. Em “Vai na Fé” falamos sobre assuntos profundos de forma leve, amorosa. Meu personagem, a bicha preta que tentaram silenciar, está ali, trabalhando, um jornalista correndo atrás. Ele não é apenas o gay afeminado, mas um cara que possui várias camadas de complexidade”.
TRANSFORMAÇÃO POR IMPLOSÃO
O grupo de teatro do qual Orlando faz parte e é um dos líderes é o “Coletivo Preto“. A premissa dele é “pensar no protagonismo preto e inserir essas pessoas no audiovisual, nas artes e em repertórios novos, além da verve sociocultural do projeto”. Comenta ele que irá estrear um espetáculo novo chamado “Pelada”, que compõe uma filosofia estética do grupo, a trilogia do subúrbio, e tem como premissa dar protagonismo à periferia carioca. “Eu nasci em Olaria (bairro do Rio). Crescemos em meio a muitas historias, mas que são tidas como ordinárias, quando, na verdade, são extraordinárias. É fundamental dar protagonismo às nossas realidades e à nossa arte”, observa. “Pelada” conta sobre um campo de futebol de Olaria, que será demolido e passa a ser um espaço de disputa entre rapazes que querem disputar um jogo de futebol e homossexuais que querem jogar gaymado, uma versão suburbana e queer do tradicional esporte coletivo, a Queimada.
Eu como bicha preta nascida em Olaria e sem referenciais pretos e gays, vejo nessa geração do gaymado uma forma de ser, de organizar-se. Há um espaço onde a galera joga, se encontra, treina e potencializa o seu discurso – Orlando Caldeira
A fala, e o direcionamento do ator para o tema do gaymado é importante. Nas aulas de Educação Física nas escolas suburbanas, especialmente nas públicas, as atividades recreativas costumam ser setorizadas: Meninos jogam futebol, e meninas jogam queimada. Os meninos cis-heteros que não gostam de futebol, ou os jovens LGBT que também não praticam o esporte, acabam sendo destinados a jogar com as moças. Fato que colaborou com esta nova vertente do esporte. Ou seja, é o primeiro conflito identitário dos LGBT, que está presente já na escola. Para exemplificar esse pluralismo, Caldeira fez questão de revelar todas as cores e possibilidades. “Fiz questão que metade do elenco fosse composta por gays, negros, bichas bichérrimas… É importante ter esse posicionamento e conceber o corpo gay afeminado em cena, sendo explorado enquanto potência, e compreendido como um corpo possível”.
Além de “Pelada”, que estreia em abril, Orlando dirigirá o musical “Hora do Blec“, que também tem como mote a questão afro e é protagonizado pelo ator Davi Junior. “O bacana desse musical é que vamos fazer umas oficinas de dança e voltaremos a atenção para artistas iniciantes, sobretudo pretos, suburbanos e da Baixada. Sabemos que a arte deve voltar para a comunidade e é necessário dar voz a ela. Naquela região há um celeiro de potências e cujas oportunidades chegam atravessadas e nem sempre de forma direta. É preciso voltar os olhos para os nossos lugares de origem”.Para o fim do ano, o ator estará no filme do Luccas Neto “Os Aventureiros – A origem”, vivendo um cientista maluco. Para o artista, há um valor especial nisto, pois que era um tipo de conteúdo que ele consumia quando criança, os filmes infantojuvenis, e não costumava ver rapazes como ele representados na tela. “Isso é muito novo. É um espaço que nunca coube-nos. E agora estou nesse lugar”.
Aliás, outro tema pouco explorado historicamente é o dos gays pretos. Razão pela qual Orlando, junto ao ator Anderson Paz e ao diretor Fabrício Boliveira, montarão o espetáculo “Angu”, que objetiva dar importância a ícones pretos e gays, como Jorge Lafond (1952-2003). Segundo argumenta, a ideia de fazer este espetáculo nasceu depois que foi cogitada a possível homossexualidade de Zumbi dos Palmares (1655 – 1695). “Quando falava-se de uma possível leitura de que Zumbi era gay, gerou uma comoção em torno de sua personalidade, como se isso pudesse desmerecer sua História. Isso nos fez pensar sobre quem seriam os nossos heróis pretos e quantos deixamos passar”. Para tal, relembra Lafond, a primeira – e única – Rainha da Bateria do Carnaval, tanto paulistano como carioca. Importante ressaltar que Reis da Bateria existem, ainda que poucos. Mas homens, assumidamente Rainhas da Bateria, não. Lafond, literalmente, subverteu o gênero, em 2002, pela Unidos de São Lucas, agremiação paulistana que, em 2002, desfilou no Grupo Especial daquela cidade. Hoje a São Lucas ocupa a terceira divisão do carnaval de São Paulo.
Ele foi o primeiro Rainha da Bateria do carnaval. Não houve nenhum/a depois dele, que foi revolucionário dentro do que era possível – Orlando Caldeira
Caldeira prossegue dizendo. “Cada vez mais é importante que existam ações afirmativas, e no sentido de uma arte afirmativa e denunciativa, é necessário que façamos de forma a trazer o público para dentro da discussão sem, para isso, ser panfletário. É transformar por implosão e não por explosão. Cada vez mais a gente tenta trazer essas pautas de uma forma sofisticada. Trata-se de algo que é fascinante”.
A ROUPA CÓDIGO E A “NUDEZ” SEMÂNTICA
Orlando sempre posta fotos suas nas redes sociais. Isso pressuporia o óbvio, já que todos os que têm Instagram o fazem. Porém, o conteúdo que libera em suas redes não é apenas uma postagem, mas um recado: As roupas transgridem o tradicional, e o corpo preto seminu também revela-se pleno de significados. Tanto que um dos seus seguidores comentou, num tom lamentoso, sobre qual a razão que motivava o ator a postar “fotos com tão pouca roupa”. Caldeira responde-nos dizendo: “Que corpo é esse do qual estamos falando? Posto coisas assim por que é importante para mim colocar o meu corpo livre e isso diz muito sobre esse auto-amor, sobre o auto reverenciar-se. Além de tudo, o algoritmo coloca a nossa pele como um elemento para difundir mais engajamento. E ele propaga muito menos conteúdo de pessoas pretas. A gente precisa dominar isso, lançando mão das armas que temos. De fato é algo estratégico”.
Quanto às roupas, não é incomum vê-lo vestindo saias, macacões, ou trench coats, no Instagram. Ele veste-se assim na vida real também. Inclusive, é sócio de uma label que produz saias e também é co-proprietário de uma loja de roupas com temática afro, no Madureira Shopping, no Rio. “(Eu era) um corpo estranhíssimo circulando aqui nas ruas suburbanas, mas eu sempre fui isso. Sempre fui um gay afeminado. E quando eu uso saia acontecem coisas incríveis. Houve um cara que achou o traje lindo, mas não queria reconhecer tratar-se de uma saia. Há também outros rapazes, cujas namoradas compraram-lhe saias e eles se recusaram a usá-las. E existem aqueles que compram o item justamente para provocar as famílias repressoras”.Diante de um mundo que ainda não descobriu, ou optou por não reconhecer a importância de pessoas pretas na historiografia da arte, o ator conta-nos sobre como vê o fato de servir como referência para outros meninos negros, outras bichas pretas, e outros suburbanos. “Para mim isso ainda é estranho por ser surpreendente. A minha cabeça está sempre lá na frente. Não tem referências pretas, eu faço? Não tem referencial? Eu invento. Há em mim a urgência do fazer, do comunicar. Isso indica que estou no caminho. Quando alguém diz que se inspira em mim, eu fico feliz por que isso se deve ao meu olhar através . Eu acreditei em mim, na minha cabeça e fui atrás disso”, teoriza. Exu é comunicação. E é, sobretudo, caminho. Orlando mostra, através de sua arte, a potência da energia exusíaca.
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