*por Vítor Antunes
“Salve Jorge, na Lua!” – Já dizia o tema de abertura da novela de Gloria Perez. Exibida entre 2012 e 2013, com uma audiência mediana, ainda que fosse líder no horário, “Salve Jorge” é um fenômeno na Globoplay e com a audiência no céu! Trata-se da única novela a estar, pelo menos desde a pandemia, solidificada entre os 10 produtos mais vistos do player da Globo. Na data da consulta ao app global, a novela protagonizada por Nanda Costa estava em oitavo lugar. À frente de “Fuzuê”, novela inédita e que sequer pontua entre os 10 produtos mais vistos. A atual trama das 19h, inclusive, está com a audiência decrescente no Ibope. Nunca reexibida nem no Viva nem no “Vale e Pena Ver de Novo“, e fruto da mente criativa de sua autora, “Salve Jorge” conseguiu a incrível façanha de consolidar sua posição mesmo diante de sucessos incontestáveis de audiência na Globoplay como a série “Os Outros” e o documentário biográfico de Xuxa Meneghel.
Em entrevista ao Site Heloisa Tolipan, Nanda Costa celebrou os bons resultados da trama sobre tráfico humano e de sua estreia como protagonista. “A Morena é parte fundamental na minha história. Foi meu maior desafio profissional, minha personagem de maior projeção. Minha primeira protagonista em novelas. Eu tinha acabado de gravar “Cordel Encantado”, das 18h, onde eu vivi a Lilica, personagem pela qual eu tenho o maior carinho, mas que tinha pouco tempo de tela e um volume de trabalho cinco vezes menor do que tive em “Salve Jorge”. Dar conta de estudar, decorar e gravar já foi um grande desafio”.
Conversamos com Gloria Perez, que também ressaltou que o sucesso da novela se deve, em muito à ousadia de trazer “uma protagonista favelada, traficada e prostituída. Há dez anos atrás, quando estreou a novela, o tráfico humano soou para muita gente como lenda urbana. É um dos crimes de maior rentabilidade ao lado do tráfico de drogas e do tráfico de armas. “Salve Jorge” deu voz a essas vítimas, e ao mostrar como se faz o aliciamento, evitou que muitas pessoas caíssem na cilada”.
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A GUERREIRA
Cercada de polêmicas quando de sua exibição original, não apenas pela ousadia temática, “Salve Jorge” não teve uma média de audiência das melhores quando foi levada ao ar em 2012/2013. Inclusive, por haver substituído “Avenida Brasil“, a cobrança por sobre a novela de Glória Perez era grande, e a autora ressaltou: “É ótimo estrear depois de uma novela de tanto sucesso, você não precisa batalhar para levantar o horário”. Estreou com 35 pontos, oscilou nos índices, mas terminou sua passagem pela TV com 34,3 de média. Fora isso, recebeu críticas por situações tidas como inverossímeis, como o assassinato de várias personagens através de uma seringa letal que vivia sob a posse de Lívia Marini (Claudia Raia) – ainda que tal história tenha acontecido na vida real. Pouca coisa escapou da crítica, impiedosa à trama. Nem mesmo o cabelo de Morena (Nanda Costa) foi perdoado. O penteado da protagonista mudava muito entre um capítulo e outro, de modo que era chamado de “cabelo bipolar“. Sucessora de Carminha na vilania da faixa, Cláudia Raia foi cobrada em ter o mesmo apelo popular que a megera de “Avenida Brasil“. “Lívia é sofisticada, rica, tem um lado sombrio, são personagens distintos, com tramas muito distintas, mas dou todos os meus aplausos à Adriana [Esteves]. Ela fez um trabalho espetacular”, elogiou na ocasião.
Abordando tráfico humano, a cultura da Turquia e a devoção a São Jorge, santo católico de grande afeição, especialmente dos cariocas, a novela também foi alvo de intolerância religiosa. Grupos cristãos protestantes lideraram boicote à trama por conta da referência a São Jorge no título. Inclusive, um site evangélico publicou na época, matéria que dizia que “‘São Jorge’ é um símbolo muito presente na cultura religiosa sincrética brasileira, que também o cultua na umbanda. No segmento [afro] religioso, o santo recebe o nome da entidade espiritual ogum [sic]”. O veículo colocou o nome do santo católico entre aspas e o do orixá em minúscula, coisificando-os. Por ser uma referência muito brasileira, a expressão “Salve Jorge” não fazia sentido para o mercado internacional. Inclusive, houve telespectadores que não entenderam o título da novela ser esse já que não havia nenhum Jorge na trama. Para dirimir quaisquer dúvidas, no estrangeiro a novela foi rebatizada e chamou-se “A Guerreira“, referência direta à valentia de Morena.
“Salve Jorge” sinalizava o retorno de Lisandra Souto às novelas da Globo, das quais estava afastada desde 1994 quando fez “Quatro por Quatro“, bem como a estreia de Nanda Costa como protagonista e o processo de pacificação do Complexo do Alemão, no Rio. Desta tríade, apenas Nanda Costa e a novela seguiram um caminho de ascendente. Lisandra fez sua última novela em 2017, “Apocalipse”, na Record, e o Alemão voltou a viver dias turbulentos. Mesmo o teleférico, símbolo da retomada do Estado àquele território, está inativo desde 2016 e sem previsão de retorno. A pacificação daquela comunidade favelizada era um importante pano de fundo, sob a perspectiva da autora. Para ela, tratava-se de algo que traria ” esperança de integração à cidade, e à cidadania, que foi gerada naquele momento e que, infelizmente, não se sustentou. Mas “Salve Jorge” registra esse momento bonito e emocionante, em que seus moradores puderam mostrar sua comunidade como celeiro de talentos, e não apenas como local de crime”.
Salve Jorge ousou e ousou muito: é a primeira novela que tem uma protagonista favelada, traficada e prostituída. Nanda Costa fez bonito! – Gloria Perez
Anos depois de sua primeira transmissão, e especialmente durante a pandemia, “Salve Jorge” foi redescoberta. A novela é a única trama estável entre os 10 produtos mais vistos da Globoplay pelo menos desde 2020, a despeito das críticas, e parece ter caído nas graças do público. Na data em que consultamos o rankeamento do Globoplay, “Salve Jorge“, ocupava o oitavo lugar entre os produtos mais consumidos da plataforma. Todas as obras melhor posicionadas são de novelas que ou estão em exibição, ou em reexibição – como “Terra e Paixão” (1º), “Amor Perfeito (2º lugar, e em reta final de transmissão na TV aberta), “Todas as Flores” (3º), “Mulheres de Areia” (4º) e “Mulheres Apaixonadas” (7º).
Nanda Costa afirma ficar “super feliz em saber que meu maior desafio profissional está entre os mais vistos no Globoplay. Tantas novelas maravilhosas disponíveis na plataforma, novelas que acompanhei durante toda minha vida, protagonizadas por grandes ídolos… Estar entre as mais vistas por dois anos consecutivos é motivo de orgulho e alegria. Eu recebi e recebo até hoje muito carinho por ter vivido a Morena. A novela foi ao ar há mais de 10 anos. Eu fico impressionada com a quantidade de gente que me para na rua pra dizer que está revendo a novela, muita gente termina e volta a assistir pela 3ª, 4ª vez. Eu confesso que não revi ainda. Foi tudo muito intenso na época. Mas sou super grata à Glória Perez por confiar em mim e me presentear com sua Morena”.
Além disso, para Nanda, prevalece antes de tudo, o papel social da trama: “Salvar vidas é sempre urgente. Eu lembro de um caso de desmonte de um esquema de tráfico de mulheres na Espanha. A mãe de uma das traficadas estranhou o comportamento da filha. Ela, que estava acompanhando a novela, percebeu que o comportamento da filha estava muito parecido com o da Morena. Acionou a polícia federal e salvaram seis brasileiras que haviam sido traficadas para exploração sexual. Esse foi só um caso, são muitos. É fundamental falarmos sobre isso”.
Para Gloria, a questão do tráfico humano foi o ponto central da trama, afinal, diz a escritora, que este é um dos “crimes de maior rentabilidade, ao lado do tráfico de drogas e do de armas. E, apesar disso, parecia invisível. Fiz uma pesquisa intensa e detalhada, entrevistando vítimas: mulheres resgatadas da escravidão sexual, brasileiros traficados quando bebês que buscavam conhecer sua origem. E de igual maneira localizei e conversei longamente com Arlete Hilu, conhecida como a maior traficante de crianças do Brasil. Tudo o que aparece em “Salve Jorge” sobre tráfico de pessoas, por mais surpreendente que pareça, é absolutamente real e me foi contado em detalhes por quem viveu”.
Importante ressaltar que o tráfico de mulheres e de crianças foi abordado em uma reportagem de 04/09/1985, por Heloísa Tolipan, no Jornal do Brasil, que denunciou que três espanhóis aliciavam mulheres brasileiras para trabalhar em uma boate em Palma de Mallorca, na Espanha. Dinâmica que, de alguma forma, continuava a ser praticada pelas personagens de Cláudia Raia e Totia Meirelles (Wanda) na novela de Glória Perez. Segundo reportagem da época, 20 mulheres já haviam sido relacionadas e estavam com passagem comprada para a Espanha. Dois anos depois, Heloisa Tolipan e o repórter J. Paulo da Silva trouxeram em matéria no Jornal do Brasil o caso do menino Iaron, que foi “comprado” por 7 mil dólares por um casal de israelenses no Brasil. O menino seria levado para o país asiático ainda naquele ano. Entre as negociadoras desta tratativa estava Arlete Hilu, citada por Glória Perez anteriormente nesta reportagem. Hilu era “especializada em traficar bebês brancos para Israel”, segundo reportagem publicada no JB em 04/04/1986. De volta à família, Iaron ganhou o nome de Gustavo. De volta aos braços do povo, a novela está vestida “com as roupas e armas de Jorge”, da Capadócia para o coração do Brasil.
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