Odilon Wagner: De volta aos palcos, ator fala sobre o etarismo e revisita personagem bissexual em novela


Desde 2018 fora dos folhetins de televisão, o artista retoma, no teatro, a montagem de “A Última Sessão de Freud”, na qual interpreta o famoso criador da psicanálise. Nesta entrevista, Odilon Wagner dá declarações contundentes sobre o preconceito na TV: “Acho que a nossa sociedade despreza muito o valor da experiência. No meio artístico acontece o mesmo. Depois que um ator chega numa certa idade não há mais papéis para ele na televisão. No teatro, ao contrário, existe. (…) Casais maduros na casa dos 40, 50 anos, quando são retratados nas telas tem suas relações infantilizadas, numa dramaturgia quase infanto-juvenil. Temos que trabalhar. Se a gente for depender exclusivamente de televisão, de convite, estamos fritos”. Ele lembra também que, em 1997, viveu na novela global “Por Amor” um homem que experienciava a bissexualidade e que outros atores rejeitaram fazê-lo por conta da orientação sexual do personagem

*por Vítor Antunes

Freud é o pai da psicanálise”. Esse epíteto costuma resumir o criador à sua obra. Em “A Última Sessão de Freud”, o ator Odilon Wagner interpreta o psicanalista e faz dupla com Claudio Fontana, que vive C.S. Lewis (1898-1963). A peça margeia a discussão ideológica entre o judeu-ateu da psicanálise e o cristão convicto, autor de “As Crônicas de Nárnia,” e traz à baila temas como a própria fé e o entendimento do homem enquanto um ser integral. A montagem é, segundo Odilon, uma das mais bem sucedidas em termos de público e, após após temporada em São Paulo fará turnê nacional. Em entrevista exclusiva, Odilon Wagner também fala sobre quando produziu uma outra peça repleta de atores maduros que não encontravam espaço na televisão, o que atribui ao etarismo. E ainda relembra personagem da novela “Por Amor”, que ousou tratar, em 1990, a bissexualidade. Rejeitado por vários atores, numa época em que personagens LGBTQIAPN+ ainda não eram retratados fora da estereotipação, Odilon diz que este “talvez seja um dos meus trabalhos mais celebrados na televisão e ainda hoje, 26 anos depois, há quem pergunte e fale sobre ele, por ter um caso semelhante na família”, mas ressalta que o tema “talvez pudesse ser melhor explorado e se pudesse botar luz sobre esse tema, mas em 1997 era difícil, não houve como”.

Acho que a nossa sociedade despreza muito o valor da experiência, do conhecimento das pessoas mais velhas. No meio artístico acontece a mesma coisa. Depois que um ator chega numa certa idade não há mais papéis para ele na TV. Nas novelas, a idade dos personagens fica num padrão quase como uma “Malhação para o horário das 19h”, e têm suas relações infantilizadas, numa dramaturgia quase infanto-juvenil – Odilon Wagner

Desde 2018 fora das novelas, Odilon Wagner reestreia peça de sucesso (Foto: Divulgação/TV Globo)

FREUD EXPLICA…

Encenada um pouco antes da pandemia e retomada depois do abrandamento desta, “A Última Sessão de Freud”, vem encontrado uma boa repercussão junto ao público: Sessões esgotadas para um mês à frente, turnê agendada para o ano inteiro e também um grande acolhimento junto à crítica. Odilon relata que a peça é bem diferente do que vem sido praticado atualmente, em especial no que tange ao minimalismo cenográfico. “Uma uma montagem com muitos objetos cênicos, o que encanta o público”. Ele prossegue dizendo que “esta peça é um momento especial da minha carreira. Eu estava há quase um ano tentando fazê-la e não conseguíamos. Até que ela foi encenada e tornou-se um sucesso estrondoso. Estamos voltando ao cartaz e estaremos pelo ano todo viajando. Em nenhum momento na minha carreira, de 53 anos, tive uma experiência como esta”.

Freud era judeu, ainda que ateu. Wagner, assim como seu personagem, é judeu embora espírita. Dentro do judaísmo não é pequena a parcela de pessoas que trata a questão judaica mais como a uma identidade étnica que a uma religião e Odilon é uma dessas. O ator diz que “a interreligiosidade permite um entendimento de vida muito maior. Temos ambos, eu e Freud, uma origem austríaca e judaica, assim como o interesse, a busca pela fé. E é coisa minha. Eu estudo as religiões também e passei a entender melhor o judaísmo por ser espírita. Procuro essa complementação, essa interreligiosidade como uma possibilidade de entendimento da vida”, diz

Ninguém tem todas as verdades. Todos interpretam de uma forma e levam para um lugar – Odilon Wagner

Odilon Wagner vive Freud no teatro (Foto: João Caldas Filho)

Sob esta premissa, que também é uma daquelas trazidas à tona na montagem, o intérprete do psicanalista diz que “Freud é um personagem importante e quase mitológico. Eu não sabia o que ele significava para além de um universo psi. Passei a estudá-lo e suas teorias e atravessamentos são interessantes, porque sou espírita kardecista praticante, ainda que judeu, e uma coisa não anula a outra, a contrário, só complementa. Considero o judaísmo como a um lado racial e adequação religiosa como outra opção. Freud, ainda que ateu, era um profundo estudioso das religiões, conhecia profundamente a cabala, assim como o Novo Testamento, o Velho Testamento, o ocultismo. A religiosidade é um tema muito presente pra ele”.

Odilon afirma que, para si, é importante dar corpo a esta personalidade por “tratar-se de um grande personagem que existiu, tal como o Lewis, que são pensadores que influenciaram os pensamentos filosóficos do século 20. Ter isso nas mãos é deslumbrante. O Freud é sarcástico. A peça tem um humor e ele e Lewis se ironizam a todo tempo. Me arrisco em dizer que esta talvez seja a minha melhor experiência na carreira teatral”, diz o ator, que sinaliza estar sem patrocínio em razão de os projetos não serem aprovados na gestão cultural passada. A intenção dos produtores é conseguir recursos para montar a peça na capital fluminense.

Odilon Wagner e Claudio Fontana vivem Freud e Lewis no teatro (Foto: João Caldas Filho)

Ainda sobre a complexidade de compor um papel dessa densidade, Odilon apresenta que quando entra “num projeto dessa dimensão eu me jogo de tal forma que não tem possibilidade de eu não explorá-lo até que ele se esgote, não só por sua potência mas também pela forma com a qual eu me dedico e produzo teatro. Minhas peças não ficam em cartaz por menos de dois anos. Por isso escolho montagens que tenham um perfil comercial e outras mais conceituais”. Uma das peças produzidas por Odilon é “Como ter sexo a vida inteira com a mesma pessoa”, estrelada por Tânia Bondenzan, que está em cartaz há 12 anos.

Perguntado sobre a possibilidade de retornar à televisão ou às séries, Wagner diz ter seu ano “inteiro tomado com a peça, e não houve nada que me tenha chamado a atenção”. E continua dizendo que “o mercado do audiovisual está muito bom. Eu fiz televisão seguidamente por muitos anos. Na TV, as pessoas acabam vendo as mesmas caras toda vez. Sempre que volto ao ar há uma repercussão, mas há situações em que até mesmo eu canso. Tem de haver renovação, gente nova. Eu optei por dar um tempinho maior e, quando voltar, sentir uma saudade”.

Temos que trabalhar. Se a gente for depender exclusivamente de televisão, de convite, estamos fritos – Odilon Wagner

Odilon conta-nos que para chegar no registro de um personagem como Freud, “um realista, intensidade e o vigor intelectual de um homem aos 83 anos, e ainda assim, interessantíssimo, controverso”, optou por “manter seu vigor, a despeito de sua maturidade”. Afinal, o ator é alguns anos mais jovem que seu papel. Em seus primeiros trabalhos de ator, em “A Capital Federal”, aos 17 anos interpretava um homem muito mais velho “com barba, maquiagem. Fiz vários outros personagens mais velhos que foram muito marcantes na carreira. Um dos que mais gosto é o de “O Tempo e o Vento” (1985).  Outro foi um que encarnei na peça “Lilith” (1986), do José Possi Neto, na qual eu era o único ator – os demais eram bailarinos. Com o Freud é igual, ainda que eu não esteja, etariamente muito longe dele. Sempre, no processo de composição de personagens inspiramo-nos na nossa vivência, no passado, na memória emotiva e isso, Freud me permitiu”, disse.

A interreligiosidade de Odilon e o ateísmo judeu de Freud os uniram nessa montagem (Foto: João Caldas Filho)

A MATURIDADE SILENCIADA

Wagner diz que depois de determinada idade os convites para televisão escasseiam, diferente do que ocorre no teatro. Segundo ele, os trabalhos nos quais interpretou homens mais velhos sempre se revelaram um sucesso e a fase provecta da vida é algo que lhe é muito cara: “Este é um tema que, para mim, é importantíssimo e eu trabalho com isso há muito tempo, que é essa coisa do desprezo do ser humano pela idade que têm, especialmente na minha profissão. Acredito na coisa da vivência, da experiência e isso tem um valor gigante. Tanto que fiz uma peça com Miriam Mehler, Etty Fraser (1931-2018), Laura Cardoso, e grande elenco, que estiveram em “A Última sessão”. Todo o elenco era composto por pessoas entre 70 e 80 anos e nos propúnhamos a discutir a vida, o etarismo, e eu sempre quis fazer uma peça com atores que foram referência”. O que aprendi nos meus primeiros anos de teatro profissional, com grandes atores, equivaleu a uma universidade. Eu tinha papéis pequenos, mas o Flávio Rangel (1934-1988) me inspirou muito, até no trabalho de diretor, fora o contato com grandes atores como Walmor Chagas (1930-2013), Paulo Autran (1922-2007) Bibi Ferreira (1922-2019) e Grande Otelo (1915-1993).

 Ele lança luz sobre o cenário atual na TV: “Vão se infantilizando as relações e os temas… Há quanto tempo não se vê na TV uma história de amor forte, intensa, verdadeira entre pessoas mais maduras nas novelas? As pessoas nessa idade estão muito ativas. E eu batalho muito no meio artístico para que se valorize os artistas maduros. E isso não é algo restrito ao Brasil, acontece nos Estados Unidos também”.

Nathalia Timberg e Ary Fontoura em “Amor à Vida” (2013). Caso raro de amor na terceira idade nas novelas (Foto: Divulgação/TV Globo)

Com efeito, a fala de Odilon apoia-se na historiografia da televisão. Nos últimos anos, foram poucos os casais românticos compostos por idosos na TV, onde ao menos houvesse uma tensão sexual entre eles. Um exemplo é o do casal lésbico composto por Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, em “Babilônia” (2015). O beijo selado entre elas no primeiro capítulo causou furor em uma parcela dos telespectadores. Anos mais tarde, a própria Fernanda faria par com Lima Duarte em “O Outro Lado do Paraíso”, e encerravam a novela com uma elegante cena de sexo. Além deste caso seria possível destacar o casal Bernarda (Nathalia Timberg) e Lutero (Ary Fontoura), em Amor à Vida (2013). E, no cinema americano, tornou-se famoso um anúncio de Bette Davis (1908-1989) onde, supostamente, pedia emprego nos Classificados da revista Variety. Ainda que verdadeiro o anúncio, Davis não estava desempregada, mas isso serviu para chamar a atenção acerca do envelhecimento em Hollywood. E, como ela própria viria a dizer mais tarde: “Envelhecer não é para mocinhas!“. 

Ainda expondo seu ponto de vista, Wagner salienta que “os atores que são 50+ estão começando o seu processo de amadurecimento. Hoje mesmo, próximo dos 70 anos, enxergo estar começando agora a entrar na madureza. Há mulheres de 60 anos vigorosas, bonitas, casando-se, entrando na faculdade, e no entanto, a visão que as pessoas têm é de que elas estão pessoas acabadas. Tanto o é a representação da vaga que é destinada aos idosos é a de um velhinho curvado segurando uma cadeira. Uma pessoa neste estado não está nem dirigindo mais”.

“Eu mesmo fico pasmo por que o grande público que assiste televisão não é o jovem. Eles não veem televisão há muito tempo. Acompanham-na pelo tablet e no horário que querem. Já perguntei uma vez, e nunca obtive resposta, à seguinte questão: Se o público alvo é mais velho, por que produzir novelas cujo elenco é quase “infanto-juvenil”? Nunca obtive uma resposta adequada – Odilon Wagner

Casado desde 1975, perguntamos ao ator qual o segredo para uma relação tão duradoura. “Qualquer relação passa por construção. Ninguém nasce amando e ama o tempo todo espontaneamente. Depois que a paixão acaba, se não houver trabalho, se não cultivar, acaba. Acho que um casamento longevo  é um trabalho de aprendizagem. A gente aprende a conviver, respeitar a liberdade, a vivência do outro, e os casamentos só se firmam quando se estabelece essa relação mais madura e a manutenção da identidade. Quando os dois têm vidas em comum e se separam as individualidades. É um processo, é vivência. É nisso que acredito, não creio haver um segredo”, diz.

Anúncio de Betty Davis na Variety, de 1962: “Trinta anos como atriz, procura emprego na Broadway” (Foto: Reprodução)

BISSEXUALIDADE NAS NOVELAS

Em 1987, Wagner atuou em “Carmem”, novela de Gloria Perez, que ousou trazer temas como o HIV ainda nos Anos 1980 – época em que a doença era muito marginalizada – bem como falou de bissexualidade. Naquela trama, o pai do personagem vivido pelo ator era interpretado por Maurice Vaneau (1926-2007) e durante o andamento da novela era descoberto que ele mantinha casos homossexuais, pelo qual passou a ser chantageado. E sentindo-se culpado por isto acabou praticando o suicídio. Dez anos depois, na novela “Por Amor”, o próprio Wagner interpretava Rafael, um homem “acima de qualquer suspeita”, que embora casado com Virginia (Ângela Vieira) e com dois, filhos Rodrigo (Ângelo Paes Leme) e Juliana (Larissa Queiroz), mantinha um caso extra conjugal com um rapaz, Alex (Beto Nasci) e é junto a ele que termina a trama.

A abordagem da bissexualidade de forma natural em plenos Anos 1990, curiosamente não chocou o público – ainda que não tenha havido nenhuma manifestação pública de afeto entre os personagens. Aparentemente, o preconceito adveio dos próprios atores. Odilon conta-nos que “Paulo Ubiratan (1947-1998), o diretor, quando me convidou à trama disse que vários outros atores haviam sido sondados e recusaram fazê-lo e que eu também não seria obrigado a interpretar o Rafael, por mais que na época houvesse um regramento na Globo de que os atores não poderiam recusar trabalhos. Foi então que ele e Manoel Carlos me apresentaram o personagem em sua vida dupla (…). A minha única exigência era de que não fizesse caricatura de gay. Ou faríamos um personagem de verdade ou não faríamos. O Maneco, autor, explicou que Rafael era uma pessoa casada com filhos e que se apaixonava por um outro cara. E, nas palavras do Maneco, na época, o questionamento era: “Um homem pode ser apaixonar por um outro homem?” – Naturalmente, a pergunta base que motivou a criação do personagem referenciava-se ao fato de ser um homem casado com uma mulher, num relacionamento heterossexual estabelecido, se poderia ele apaixonar-se por um homem e estabelecer uma nova maneira de relacionar-se.

Odilon diz que “foi de forma muito respeitosa e bacana embora pudesse, talvez, ser melhor explorada e se pudesse botar luz sobre esse tema, mas em 1997 era difícil, não houve como. Talvez seja um dos meus trabalhos mais celebrados na televisão e ainda hoje há quem pergunte e fale sobre Rafael, ou relate haver se identificado com aquela história por ter um caso semelhante na família”

Odilon Wagner e Beto Nasci em “Por Amor”: Bissexualidade no horário nobre (Foto: Divulgação/TV Globo)

Daí, a importância da vanguarda em se falar sobre estas questões em plena novela das oito: “A homossexualidade inserida na trama, assim como a sexualidade, são temas dos quais as pessoas não falam sobre. Sexo, as pessoas fazem mas não falam a respeito, mesmo os casais. Quando você abre um tema desse e trata da homossexualidade, de que é possível um homem apaixonar-se por um outro homem e coloca isso na televisão as pessoas começam a raciocinar pensar sobre isso e julgar o que é o principal”.

Para Freud, enquanto humanos, temos a inata habilidade da atração sexual, independentemente de qualquer vetor – quer etário, de gênero ou identidade. Ainda que haja tentativas de silenciamento das pessoas maduras, ou apagamento das “outras formas de amar”, o que interessa, mesmo, num mundo incansavelmente repressor, é a beleza de ser plural e de ser o que é. Como diziam os Novos Baianos, “mostrando o que sou e sendo como posso”.