*Por Brunna Condini
Com a reestreia do sucesso “Laços de Família” no Vale a Pena Ver de Novo, na Globo, alguns personagens marcantes voltaram a fazer parte da rotina de milhões de brasileiros, como a Yvete, vivida pela atriz Soraya Ravenle, a melhor amiga da Helena (Vera Fischer), protagonista inesquecível de Manoel Carlos. Para saber mais da trajetória da atriz nos últimos anos, convidamos Soraya para participar da série ‘O que tenho vivido?’, e em papo exclusivo, ela fala da personagem, seu primeiro papel de destaque na TV há 20 anos. E também sobre arte e cultura, produção durante a pandemia, e divide reflexões a respeito do cenário atual do país.
Na época de “Laços”, a atriz já tinha um vasto e premiado currículo no teatro, com algumas participações na televisão, quando foi convidada para fazer a Yvete, que com sua franqueza e carisma, conquistou o público. O que recorda da relação com Vera Fischer nas gravações? “Lembro de primeiramente ficar muito tímida. Era minha primeira novela, e em um dos primeiros dias de gravação me vi dentro de um carro, esperando uma chuva forte passar para fazermos uma cena, e então congelei! Não conseguia soltar uma palavra. Ela foi muito gentil neste momento, e em todo o decorrer da novela, sempre, puxando conversas, quebrando esse lugar de mito que ela é! Aos poucos fui me soltando”, diverte-se ao lembrar. E comenta sobre os desafios de fazer TV: “O que era mais difícil para mim é a rapidez com que você precisa resolver, marcar uma cena. Não há tempo para se gastar com elaborações, ensaios, tentativa e erro, nada disso. Você precisa encontrar logo uma maneira de se sentir confortável, criar e propor marcações, tudo muito rápido. Tem um lado interessante que você começa a ganhar uma habilidade, você se familiariza com os cenários, técnicos, figurinos, os próprios colegas. Mas as duas linguagens, teatro e TV, são desafiadoras quando você pretende fazer um bom trabalho. Talvez o que faz a gente achar mais fácil ou difícil seja a prática que temos em cada veículo. No meu caso tenho mais tempo de trabalho e exercício no teatro, então a televisão que é esporádica me dá sempre a sensação de recomeço”.
Soraya salienta que a reprise da trama de Manoel Carlos comprova a atemporalidade do autor e também sua característica de observador da vida das pessoas com suas questões internas. Como em “Laços de Família”, que Yvete vive o drama de lidar com a baixa autoestima e impotência do marido Viriato, vivido por Zé Victor Castiel. “Lembro que as pessoas falavam com admiração sobre a persistência deles se manterem juntos apesar da crise que se prolongava durante quase toda a novela. O fato dela amá-lo apesar da depressão que ele apresentava. Essa compreensão e tolerância eram muito comentadas. Esse gesto se opõe à facilidade que os casais têm de se separar. E os personagens foram recebidos como um exemplo de amor profundo e acima de status sociais e sucesso profissional, tão comum até hoje. Hoje penso como Yvete não foi machista com Viriato, já que ela não exigia dele o mesmo sucesso profissional que ela tinha, e aceitava o marido como ele era. Pedia somente alegria de viver e amar! Ela queria que ele encontrasse alegria no serviço que ele fazia, ou no que quer que ele escolhesse fazer, sem colocar também a cobrança de que ele ganhasse mais do que ela. Essa cobrança machista vinha dele”.
Já pensou como seria viver a Yvete no mundo de hoje? “Tenho brincado que ela já teria marcado uma terapia para o Viriato pelo Zoom, do jeito que ela é proativa (risos). Também estaria antenada com a questão das possíveis vacinas para a Covid-19, pesquisando e estudando o assunto. Acho que Yvete estaria bolando com Helena formas online de atender o público da clínica, promovendo workshops, por exemplo. Até porque ela com certeza seria totalmente contra a desobediência das normas restritivas da Organização Mundial de Saúde (OMS). Ela tem caráter, bom senso, e se preocupa com as pessoas, não é um ser egoísta que sairia pelo Leblon lotando as praias. Seria, mais do que nunca, cuidadosa com a família e com sua grande amiga-irmã, Helena”.
Uma vida na arte
A atriz contabiliza 40 anos de vida profissional e relembra que, após “Laços”, fez ainda na emissora mais nove trabalhos entre séries e novelas, como “Malhação” (2007 e 2011), “Beleza Pura” (2008), “I Love Paraisópolis” (2015), e “Sob Pressão”. “No teatro também atuei em muitos musicais. Aliás, são 30 musicais durante a minha carreira. Mas com certeza “Laços de Família” foi um dos momentos mais marcantes, assim como os musicais “Dolores”, “Ópera do Malandro” e, mais recentemente, meu primeiro solo teatral “Instabilidade Perpétua” a partir do livro homônimo do filósofo paulista Juliano Garcia Pessanha, trabalho que pode ser visto na plataforma do Sesc, no sescemcasa , gravação feita agora, em casa durante a pandemia. Uma experiência maravilhosa de transpor para a tela um trabalho concebido no teatro, com a camada muito especial de ser dirigida pela minha filha, Julia Bernat, e Stella Rabello. Apareçam por lá”.
Fora da bolha
Soraya aderiu aos cabelos brancos e curtos, exibindo um visual prateado e potente. Quem é essa mulher que vê hoje no espelho? “Parei de pintar há três anos. Essa mulher que vejo no espelho é uma mulher de 57 anos que trabalha profundamente a aceitação da passagem do tempo, o que isso tem de riqueza e de envelhecimento do corpo. Essa mulher traz a urgência de viver o que é essencial na sua vida, as necessidades mais profundas da alma… ela não quer tentar ser mais jovem do que é, ela quer ter a maior saúde possível, isso sim! Aliás todas as saúdes: mental, física, emocional, espiritual e material. Ela quer encontrar as belezas e charmes de cada idade”.
O que amadurecer te trouxe e você não troca por nada? “Aprendi a amar e aceitar a história que percorri e ter consciência das mudanças que foram possíveis, as que ainda podem ser feitas. Você me encontrará até o fim, estudando, trabalhando para ampliar o meu olhar, esse é um mote da minha vida”.
Desejando viver cada vez mais “fora da bolha”, ela tem usado o recolhimento também para refletir sobre a situação ao redor, e compartilha suas angústias: “Me aflige a desigualdade e o racismo estrutural do nosso Brasil, me aflige saber que tanta gente não tem as mínimas condições de higiene, saúde e educação. Me aflige a Amazônia queimando, os índios morrendo e tanta gente achando isso tudo muito banal! Me aflige que o Bolsonaro (presidente Jair Bolsonaro) ainda não tenha caído! Penso que precisamos criar novos vínculos. Penso que precisamos agir, nem que seja na micropolítica do dia a dia. O que você come? O que você consome? O que você lê? Participa de campanhas? É preciso sair das nossas bolhas, como ouvi outro dia do Emicida: nesse momento, você quer ser muro ou ponte? Eu quero ser ponte!”.
Soraya lamenta a falta de “rumo” que identifica no país: “Como posso planejar algo nesse país à deriva? Reconheço o meu imenso privilégio de estar em casa, me cuidando e trabalhando, e tento realmente honrar esse privilégio, estudando, tentando compreender esse panorama tão complexo da pandemia que de fato deixou claro a guerra que já existia, as desigualdades que já existiam, o racismo que sempre existiu. Está tudo às claras, e isso sim é uma grande alegria nesse momento, a maior talvez… ver uma grande mobilização em torno desses temas fundamentais do Brasil”.
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