*Por Felipe Rebouças
Doutorando em teledramaturgia pela PUC-Rio, o especialista em telenovelas Valmir Moratelli escreveu um artigo com exclusividade para o site Heloisa Tolipan sobre interrupção inédita das novelas da Rede Globo por conta da pandemia de Coronavírus. Em nota que afirma que “não há novelas sem abraços, apertos de mãos, beijos, festas, cenas de briga, cenas de amor, cenas de carinho, tudo aquilo que reflete a vida real”, a maior emissora da América Latina anunciou terça-feira a suspensão das gravações de suas novelas, a antecipação do final de outras e a ampliação das reprises ao longo da grade.
Paralelamente, a emissora realiza alterações em sua programação. As medidas preveem ampliação da coberta jornalística sobre as atualizações do impacto da Covid-19 no país e no mundo, além da liberação da plataforma de streaming Globoplay e de canais de televisão fechada vinculados à Globosat, como SporTV, Multishow, Telecine e outros. Tendo em vista a adoção de quarentena pela maioria da população e subsequente aumento da demanda por conteúdos de entretenimento nos lares brasileiros.
Com a palavra, Valmir Moratelli:
“Em decisão inédita na história da teledramaturgia brasileira, a TV Globo decidiu nesta segunda-feira (16) suspender, por tempo indeterminado, a gravação de todas as telenovelas em andamento e as que já estavam em fase de produção em seus estúdios, na Zona Oeste do Rio. A medida é uma forma de prevenir a pandemia do Coronavírus. Mas o que significa esta paralisação para o país que tem nas novelas sua principal fonte de entretenimento gratuito? Como a população vai se manter em casa, em quarentena pelas próximas semanas, se abstendo das tramas que vinha acompanhando como “Malhação”, “Salve-se Quem Puder” e “Amor de Mãe”? Apenas “Éramos Seis“, já nos últimos capítulos, terá um desfecho. Sua substituta, “Nos Tempos do Imperador”, precisará esperar o desenrolar do drama real que a população enfrenta no combate ao Covid-19.
Interromper uma novela não é tão comum no Brasil. Por outros motivos, a TV Globo já teve que embargar produções em andamento. “Roque Santeiro”, de 1975, tinha 10 capítulos editados e quase 30 gravados quando, na noite de estreia, foi proibida de ir ao ar. No ano seguinte, o mesmo aconteceu com “Despedida de Casado”, que vinha sendo escrita para as 22 horas. Em ambos os casos, o bloqueio foi imposição da censura do Governo Militar.
Há também exemplos de produções que foram encurtadas drasticamente por rejeição do público e consequente queda da audiência. Os telespectadores largaram de lado “Cuca Legal”, de 1975, e a novela de Marcos Rey foi encurtada para 118 capítulos. Em 2001, “Bang Bang”, de Mario Prata, perdia público a cada exibição, o que fez a direção da emissora diminuir a duração dos capítulos que, dos habituais 55 minutos, passaram para 45. “As Filhas da Mãe”, de 2001, teve a audiência abaixo do esperado. Resultado: A trama de Silvio de Abreu, terminou com 125 capítulos. A título de comparação, o sucesso retumbante de “Avenida Brasil”, de 2012, teve 179 capítulos –dois meses a mais no ar.
O que acontece agora em nada se compara com os exemplos do período da ditadura, quando produções foram interrompidas por ordem do governo, ou com tramas encurtadas por questão de audiência, imprimindo a implacável força do mercado. O público fica, já na próxima semana, sem os capítulos inéditos por decisão estratégica da emissora, visando a não colocar em risco de contágio ao Covid-19 os quase 300 funcionários – entre elenco, equipe técnica e de produção – que trabalham em cada obra.
“O mundo se transforma”
No comunicado enviado à imprensa, a TV Globo informou que tomou a decisão por coerência com os aspectos característicos da sua teledramaturgia, visto que “não há novelas sem abraços, apertos de mãos, beijos, festas, cenas de briga, cenas de amor, cenas de carinho, tudo aquilo que reflete a vida real, mas que, hoje, não pode ser encenado em segurança”. No livro “O que as telenovelas exibem enquanto o mundo se transforma” (2019, ed. Autografia), resultado de uma pesquisa de mestrado, detalhei duas décadas recentes de produções da emissora, entre 1998 e 2018, diante das transformações políticas de quatro presidentes (Fernando Henrique Cardoso, Luis Inácio Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer).
As telenovelas brasileiras são reflexo dos nossos tempos, servindo de registro histórico às mudanças sociais. Estabilidade econômica, diversidade sexual, a questão das cotas, ascensão da chamada classe C, maior participação das mulheres no mercado de trabalho. Nada passou incólume pelas ficções da TV. E agora que o mundo se vê obrigado a parar as atividades afim de frear a pandemia, não seria diferente com a ficção. O silenciar das novelas acompanha o desenrolar de um assunto grave, da ordem de saúde pública.
Em um país onde 99% dos lares brasileiros têm televisão, forjando gerações diante dos amores e dissabores de protagonistas e vilões, fica difícil imaginar um cenário em que nossas rotinas, momentaneamente, serão sem novas novelas. É verdade que a audiência geral da TV aberta vem caindo em relação a última década, principalmente, pela maior oferta de streaming, catapultando o telespectador a ser programador de sua TV. O momento é propício ao crescimento dessas novas plataformas– a própria GloboPlay vem lançando séries e documentários inéditos. Mas nem todos os órfãos de novelas vão migrar para a GloboPlay ou Netflix.
Dados do IBGE mostram que mais de um terço dos domicílios brasileiros ainda não têm acesso à internet. Interromper suas novelas é um recado que a TV Globo dá à sociedade e às autoridades. O cancelamento de uma “instituição nacional”, como é o caso da novela das 21h, transmite a ideia da seriedade coletiva que o país precisa ter pelas próximas semanas.
No lugar das produções interrompidas nos últimos dias, a TV Globo vai reexibir tramas bem aceitas pelo público (“Totalmente Demais” e “Fina Estampa”, por exemplo), além de aumentar o tempo de transmissão dos telejornais no canal aberto e reforçar o conteúdo da GloboNews. O que também vem em boa hora para a emissora, visto que a CNN Brasil estreou no final de semana trazendo possibilidades de concorrência à altura de seus programas. Oferecer escolhas internas ao público, cada vez mais exposto a outras opções, é uma estratégia certeira. Enquanto a população fica sem os afagos de “Amor de Mãe” ou aguarda pelas aventuras de “Nos Tempos do Imperador”, resta-nos entender que quarentena não é drama e nem histeria. É o mundo real chacoalhando nossas rotinas a tal ponto que interrompeu até a ficção. A telenovela há de resistir. Até porque esperamos todos por um “happy end”.
* Jornalista e doutorando em teledramaturgia pela PUC-Rio
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