*Por Simone Gondim
Na segunda temporada de “Coisa mais linda”, Maria Luiza mostra que amadureceu e, aos poucos, reconquista sua autonomia, apoiada por uma rede de afeto da qual também fazem parte Adélia (Pathy Dejesus), Thereza (Mel Lisboa) e Ivone (Larissa Nunes). Fora da ficção, Maria Casadevall segue fiel às suas convicções, sempre alerta aos recortes de classe e de raça que geram diferentes pautas de luta, por conta das vivências individuais. “O mundo sairá da pandemia ainda mais desigual e com todas as nossas velhas chagas sociais expostas, e o que eu vejo é que as resistências históricas e populares estão ainda mais alinhadas e organizadas para fazer frente a tantas injustiças”, diz a atriz.
Ainda em relação à Covid-19, Maria tem consciência de seus privilégios e faz questão de manter a postura crítica que lhe é característica. “Não represento a realidade da classe artística de forma geral, pois ultimamente tenho feito trabalhos que me trouxeram visibilidade, enquanto muitos projetos culturais estão ameaçados e vários artistas se encontram em situação de vulnerabilidade”, reconhece. “Ficar em casa para se proteger da contaminação por coronavírus também é um privilégio, pois a realidade para a maioria dos brasileiros é a de não ter acesso a essa escolha”, lamenta.
O abismo entre o feminismo branco e o negro é outra preocupação da atriz. Na segunda temporada de “Coisa mais linda”, essa questão se desenvolve sob a perspectiva da relação entre Malu e Ivone, deixando ainda mais explícitas as questões de raça que atravessam as diferentes vivências dessas duas mulheres. “Na série, enquanto a mulher branca luta pelo direito ao trabalho, a mulher negra batalha pelo direito à escolha (de não trabalhar, por exemplo)”, conta Maria. “Por isso é tão importante que falemos em feminismos no plural, pois os recortes de classe e de raça definem diferentes vivências e geram diferentes pautas de luta”, acrescenta.
Maria observa que ela e Malu têm em comum a forma de lidar com a intuição – ambas contam com essa voz interior na hora de fazer escolhas e tomar grandes decisões. “Acredito que nossas diferenças venham mais da visão limitada que Maria Luiza tem sobre as várias realidades sociais à sua volta, do que sobre características de personalidade”, explica.
Nos dias de hoje, as diferenças entre homens e mulheres continuam chamando tanto a atenção quanto na época em que é passada a série, que engloba o fim dos anos 1950 e a década de 1960. Perguntamos a Maria: será que um dia teremos a tão sonhada igualdade? “Por meio de lutas e movimentos importantes como os feminismos e seus levantes em diferentes momentos da História, grandes conquistas já foram feitas e é preciso que elas sejam reconhecidas”, afirma a atriz. “Acredito que não estamos lutando por um dia que vá chegar lá na frente, mas por cada dia e cada conquista que, aos poucos, vai construindo um amanhã diferente. Assim, a luta por equidade de gênero vai ganhando batalhas e perdendo outras. É como diz Angela Davis: a liberdade é uma luta constante”, completa.
Mesmo na ficção, o machismo é capaz de incomodar. “Toda a sequência de assédio que Malu passa com o vereador Hugo Lins, personagem vivido por Ângelo Paes Leme, foi bem difícil de fazer. Revisitar esse lugar, que todas nós mulheres já experimentamos de alguma forma, ou que carregamos feridas ancestrais dessa vivência em nossos corpos, é muito desconfortável”, confessa a atriz.
O feminicídio é mais um ponto sensível de “Coisa mais linda”. Maria enfatiza que esse tipo de crime não começa com um assassinato brutal, mas tem sua origem na normatização social do comportamento machista que produz aceitação de pequenas ofensas – como, por exemplo, certas piadas feitas entre homens – e vai construindo um imaginário coletivo que aceita violências, tanto no âmbito privado como no institucional. “Uma das formas de combater essa realidade é condenando socialmente manifestações aparentemente inofensivas que naturalizam esse tipo de comportamento”, observa. “Também é importante que se reconheça a estrutura machista, racista e misógina das nossas instituições, como o Parlamento, o Judiciário e a Igreja, e que se apoie a luta legítima de mulheres dispostas a ocupar esses espaços”, argumenta.
Definida por muitas pessoas como uma mulher empoderada, a atriz não rejeita o termo, mas considera que ele vem sendo transformado em produto. “Assim como tantos termos importantes nas diferentes lutas sociais, a palavra empoderada e sua potente força coletiva de empoderamento das massas, ou seja, de determinados grupos sociais que se encontram à margem, ganhando poder para fins de transformação social, passou por um processo de apropriação feita pelo sistema capitalista”, resume.
“Isso esvazia uma ferramenta importante de luta para justamente interferir nesse processo de emancipação. Criando falsas imagens, como se bastasse um batom vermelho para se tornar uma mulher empoderada, ou falsas ideias, como a de que uma mulher empoderada é a que ocupa altos cargos em empresas privadas, e se espera dela que reproduza os comportamentos machistas produzidos por homens que ocupam esse mesmo lugar no mercado de trabalho”, conclui.
Antes de encerrar a entrevista, a atriz revela qual conselho Maria Luiza daria para as mulheres de hoje: “Olhe para as mulheres que vieram antes de você, elas te indicarão o caminho”.
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