*Por Brunna Condini
A pandemia do coronavírus escancarou as desigualdades e mazelas do país. Muitos apostam que é um ‘agora ou nunca’ para a humanidade: em termos de empatia, de valorizar o respeito e o olhar para o outro. E há muita gente apostando e trabalhando para isso, como a cineasta Susanna Lira, que estreou este mês o seu documentário “Prazer em Conhecer”, na mostra Vozes do Brasil Real, da 28ª Edição do Festival Mix Brasil de Cultura e Diversidade. “É o mais importante festival da área LGBTQ, internacional, tem uma curadoria excelente e está há muitos anos no mercado. Para nós significa muito estrear nele, porque queríamos muito trazer para esse público este conteúdo. Além disso, celebramos também o festival acontecer mesmo na pandemia”, vibra a diretora.
No filme, Susanna lança um olhar para a sexualidade LGBTQ contemporânea através de registros íntimos. Sem julgamento moral, ela mergulhou no cotidiano dos usuários de novos medicamentos de prevenção ao HIV, a PrEP(Profilaxia Pré Exposição), trazendo à tona reflexões sobre desejo, sexo, cuidado e liberdade. “Temos políticas públicas que funcionaram durante muito tempo e que hoje estão ameaçadas pelo preconceito. Queremos dizer com o filme, que não existe grupo de risco. Existe comportamento de risco e ele é não usar todos os métodos de prevenção que temos acesso. O maior grupo de risco é aquele que é ignorante, moraliza o tratamento. Então, acho que escolhemos falar do ponto de vista de homens gays que usam a PrEP. Como forma de prevenção, mas acho que estamos falando para toda a sociedade que na verdade, a política pública não deve fazer juízo do comportamento de ninguém. Deve dar ao cidadão que paga imposto, acesso à saúde de forma plena”, detalha Susanna.
Existe prazer em São Paulo
O documentário se passa principalmente em São Paulo, região brasileira na qual 25% da população de homens gays vive com HIV, e que é pioneira na expansão do uso da PrEP no país. É neste contexto que vivem, no centro da cidade, Nicole e Léo. Ela, travesti e usuária de PrEP e ele, homem gay soropositivo. É em um apartamento do Largo do Arouche, que os dois dividem a vida, os sonhos, os desejos e também as experiências sexuais. “Esse filme tem muito a ver com meu primeiro filme , o ‘Positivas’ (2010)- sobre mulheres com HIV – porque foi um projeto que também tive muito cuidado para escolher os personagens. Acho que em “Prazer em conhecer’ priorizei o nível de acesso e intimidade que teria com os personagens, porque é um filme observacional, sem entrevistas. Mergulhamos no cotidiano das pessoas para contar essas histórias. Então posso dizer que o acesso era fundamental. Além da representatividade, claro. Queríamos gente que tomasse mesmo PrEP e também convivesse com pessoas com HIV”.
A produção também estreia no canal GNT em 1º de dezembro, Dia Mundial de Combate à AIDS. Que transformações fundamentais identificou neste universo na construção? “O filme retrata um momento onde há uma consciência desses jovens homens, de que existe um tratamento que pode dar a eles mais liberdade e mais proteção. O que percebi é uma grande transformação neste público, no sentido de ter uma consciência sobre a responsabilidade em relação à sua própria sexualidade e os cuidados com o seu corpo e com sua saúde. E para quem imagina que quem tem relações frequentes, não monogâmicas, pode estar mais apto a passar o vírus, o que posso dizer, é que em relação ao grupo que documentei, eles estão muitos mais responsáveis com seus próprios corpos e a saúde do que o restante da sociedade. E o amor acaba ficando mais livre quando se tem consciência, com responsabilidade”.
Alguns profissionais são reticentes à normatização do uso da PrEP, mesmo ela tendo sua eficácia comprovada. Sobre as críticas, existe uma apreensão de aumento na incidência de outras infecções sexualmente transmissíveis (IST), pois os usuários deixariam de usar preservativos. As pessoas que você ouviu falaram sobre isso? “Quando comecei a fazer o filme eu mesma tinha muitas dúvidas. Como em relação ao fato, de por exemplo, no caso da pessoa estar usando PrEP, não usar outros métodos de prevenção, como preservativo. Mas percebi que isso é uma grande falácia. A PrEP é mais um método de prevenção e está salvando vidas no mundo em relação a um vírus que ainda não tem cura. As pesquisam mostram isso”, esclarece a cineasta. “No documentário salientamos a necessidade da utilização sempre associada ao uso do preservativo. O uso da Profilaxia Pré Exposição é para prevenir HIV, outras DSTs, devem ser prevenidas de outra forma”.
E que momento na construção do documentário mais te tocou? “Sempre sou atravessada por essas histórias, especialmente em relação aos personagens deste filme. Me espanta que exista um grupo de pessoas que vivem constantemente num front de luta. E percebo como é cansativo viver assim, essas pessoas lutam contra a homofobia, para terem suas identidades respeitadas e preservadas, e ainda lutam para terem direito a um tratamento, de não serem julgados por isso. Me emociono porque são vidas em luta o tempo todo. Acho que quem não é deste universo, se puder fazer coro nessa luta, pode aliviar de alguma forma, o fardo dessa batalha constante contra o preconceito e essa sociedade conservadora, que no Brasil, só se agrava. Se esse filme ou algo que eu faça, puder amenizar um pouco ou dar alguma leveza para a vida dessas pessoas, mostrar que respeitamos e não julgamos, para mim já é alguma coisa”.
Em nome da liberdade e dos direitos humanos
Desde 2004 Susanna vem realizando, e entre suas principais produções, estão a direção e criação da série ‘Rotas do ódio’ (2018) para a Universal/ NBC, e os documentários, ‘Clara Estrela’(2017); ‘IntolerÂncia.doc’ (2016); ‘Mataram nosso filhos’(2016) e ‘Damas do Samba’ (2015). Mais recentemente, a diretora foi premiada por sua performance em ‘Torre das Donzelas’(2019), em que levou para tela relatos inéditos da ex-presidente Dilma Rousseff e de suas ex-companheiras de cela do Presídio Tiradentes, em São Paulo, e remontou na memória delas os dias no cárcere. E no ano anterior, lançou a trajetória de Mussum em “Um filme do cacildis”.
Pensando no caminho até aqui, a criadora analisa: “É um papel de provocação, de trazer reflexão. Acho que nós cineastas, temos que além de contar as histórias que desejamos contar, realizar também as histórias que precisam ser contadas. Vivemos em um período retrógrado nesse pais, de conservadorismo, moralismo, precisamos colocar diante das pessoas a realidade do Brasil. E não comprar uma ideologia de esquerda ou direita”, opina. “Vou estar sempre a favor da liberdade, dos Direitos Humanos e do respeito às pessoas. Sempre estarei neste front. Minha história como realizadora é de uma pessoa que está sempre querendo falar aquilo que talvez as pessoas não queiram muito ouvir, mas que seja importante para a construção de cidadania, respeito. Tenho feito filmes com bastante teor de gênero, político, de Direitos Humanos. Estou entrando na ficção também, pensando muito nas histórias que quero contar e acho que elas também se relacionam com esses temas. Acho que é uma trajetória de alguém que quer trazer reflexão para a sociedade e questionar um pouco o estado das coisas. Me sinto privilegiada de falar do que falo e da maneira que consigo falar”.
Ela ainda adianta o que vem pela frente. “Passei parte do isolamento montando ‘Prazer em conhecer’ e dirigindo uma série grande sobre a pandemia, que deve estrear em breve na Globoplay, mas ainda não posso falar muito, pelo menos até liberarem a data de lançamento. Mas foi uma experiência incrível me desafiar como diretora, coordenando uma equipe à distância e falando desse tema. Acho que conseguimos construir um relato sensível, tocante e contundente sobre esse momento crítico que a sociedade vive. E tem também projetos que se realizam em 2021, gestados durante a pandemia, mas que não tem nada a ver com ela. São histórias de inspiração, mas também mais leves. E tem o documentário sobre a Fernanda Young (será inspirado no livro dela ‘Tudo que você não soube’ , revelando suas facetas pouco conhecidas) e outro sobre o ex-jogador Casagrande”.
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