“O Homem Duplicado”: filme baseado na obra de José Saramago questiona a estranheza de não ser único


A produção a cargo de Denis Villeneuve deixa questões em aberto, mas se sustenta na ótima atuação de Jake Gyllenhaal

Não é fácil filmar José Saramago. Uma obra do único autor de língua portuguesa a ganhar um Prêmio Nobel de Literatura muitas vezes não acompanha a voracidade do cinema, e o realismo fantástico de sua produção literária não costuma permitir a cadência da cinematografia, resultando em esforços frustrantes, porém bem intencionados, como “Ensaio Sobre a Cegueira” (Blindness, de Fernando Meirelles, Miramax Films, 2008). Além disso, seu passado enquanto militante de esquerda que exercia patrulha ideológica aqui e ali interfere em seu legado, deixando-o por vezes datado. Nesta nova incursão de seu trabalho pela sétima arte, o diretor canadense Denis Villeneuve procura se calcar na estranheza de encontrar um duplo que move a história de “O Homem Duplicado” (The Duplicated Man, Rhombus Media e outros, 2013), agora em cartaz, sobre um professor universitário que descobre um sósia ao assistir a um filme de DVD.

A trama, sobre este personagem que encontra outro igual na função de um ator de terceira categoria, não trata de ficção científica, nem de clonagem ou coisa semelhante, até porque os motivos que levaram à existência de dois homens idênticos não são explicados, nem são objeto de estudo desta narrativa. O que o filme aborda é, na verdade, o desconforto de descobrir que não se é único em uma sociedade que pasteuriza e liquidifica a natureza humana, mas cobra, em contrapartida, o brilhantismo da singularidade.

Na transposição do enredo para Toronto, o cineasta opta por uma fotografia acinzentada com contrastes de claro/escuro, tudo bem opaco, tão sem graça quanto os dois protagonistas interpretados com competência por Jake Gyllenhaal. Na boa direção de arte do filme, desaparece a metrópole frenética do Canadá, iluminada por raios de sol sob céu azul, para dar vez a uma apagada cidade, opressiva e também igual a tantas outras, tão enevoada quanto as rotinas sem vida de ambos os duplos. O próprio Adam Bell, o docente que dá a partida ao roteiro, vive um dia a dia no qual se repete, como se a sua vivência não passasse de um amontoado de experiências insípidas em uma desgastante roda gigante ad eternum.

E é aí que se encontra a ironia da película: é justo a partir do momento em que o personagem se desespera, ao descobrir que não é único, que sua massacrante vidinha ganha contornos mais interessantes neste thriller psicológico que esbarra no mesmo tipo de inquietação de obra-primas de Roman Polanski, como “O Inquilino” (The Tenant, Marianne Productions, 1976) e “Busca Frenética” (Frantic, Warner Bros e outro, 1988), embora não chegue aos pés destas.

 

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Fotos: Divulgação

Afinal, a temática do sósia não é nova nem na literatura, nem nas artes audiovisuais, se configurando em interessante assunto sempre a ser explorado, pelo menos desde “O Homem Com a Máscara de Ferro” (Alexandre Dumas, pai, 1802-1870) ou “O Príncipe e o Mendigo (Mark Twain, 1835-1910). E, seja através da comédia – em realizações como “Cuidado com as Gêmeas” (Big Business, 1988) -, em suspenses – nas produções como “A Inocente Face do Terror” (The Other, de Robert Mulligan, Fox, 1972) – ou em dramas, tipo “A Dupla Vida de Véronique” (La Double Vie de Véronique, de Krysztof Kieslowski, Sidéral Films e outros, 1991) “Espelhos D’Alma” (The Dark Mirror, de Robert Siodmak, Universal, 1946), com brilhante atuação de Olivia DeHavilland einspiração para, décadas mais tarde, o sucesso de Ivani Ribeiro na tevê brasileira, o cinema adora trazer essa questão à tona, geralmente enfatizando a troca de papeis, seja através de arquétipos como o rico e do pobre ou o bom e o mau. E, mesmo desta vez, com o tema se constituindo em alegoria para outras abordagens, torna-se inevitável o desenlace culminando na tal troca.

Nesta adaptação do livro de Saramago, não existem papeis antagônicos, mas apenas dois homens fisicamente idênticos pegos de surpresa na possibilidade de não serem únicos, mas presos no dissabor de não mais conhecerem sua própria individualidade. E, óbvio, em se tratando do autor, isso é prato cheio para se levantar o massacre diário da tal sociedade que tolhe particularidades e que refuga tudo no mesmo Braun Minipimer, na mesma proporção que valoriza a identidade dentro da geleia geral da mesmice. Pura contradição. E, em uma época em que a diluição de personas se torna marcante e tão representativa do globalizante mundo atual, é bem-vinda a chegada desta produção às salas de cinema, mesmo considerando as deficiências de realização e a precariedade da obra original enquanto fonte para se contar uma boa história no cinema.

Diante da importância do questionamento, torna-se até desnecessário tentar compreender tanta coisa deixada em aberto neste filme, como a tal confraria secreta de homens que volta e meia surge no roteiro, assim como a constante menção a aranhas associadas ao universo feminino.

Trailer (Divulgação)