“Ainda há um lampejo de civilização no açougue bárbaro que se tornou a humanidade”. Essa máxima, proferida pelo Monsieur Gustave (Ralph Fiennes) algumas vezes ao longo da projeção, revela exatamente o que existe por trás da comédia “O Grande Hotel Budapeste” (The Grand Hotel Budapeste, Fox Searchlight Pictures, 2014), vencedor do Urso de Prata no último Festival de Berim e que entra hoje em cartaz nos cinemas. O diretor Wes Anderson (Os Excêntricos Tenenbaum, A Vida Marinha de Steve Zissou, Viagem a Darjeeling), um dos nomes mais criativos e incensados da Hollywood atual, tece uma deliciosa comédia na qual o personagem principal é um concierge de um hotel de luxo na fictícia Zubrowka, na Europa do Leste, antes desta passar pelas agruras da revolução e mudar para sempre com a guerra.
De fato, a história policial que conta como o protagonista foi incriminado pela família de uma hóspede bilionária com quem mantinha um caso serve como fio condutor para o pano de fundo, esse sim, o objetivo do cineasta, cuja maior preocupação é mostrar como o universo da sofisticação aristocrática, dos galanteios e do glamour do passado foi sepultado após a Belle Époque com o advento de duas guerras mundiais em sequência, da moderna sociedade de hábitos metropolitanos, do fast fashion, da produção em massa de quinquilharias chinesas e da nova economia de mercado do Século 20.
Esse mundo de lisuras, comendas, almirantado, títulos nobiliárquicos e refinamento exarcebado – tão embolorado quanto um maracujá de gaveta – ruiu com o empobrecimento da então classe dominante, a vida frenética das cidades, o sportswear e a praticidade do mundo contemporâneo, acentuado pela passagem do dinheiro para as mãos de uma nova categoria de pessoas bem menos interessante, sem esse verniz (nem saco!) que o supremo luxo proporcionava.
Naturalmente, palavras mágicas como Grande Hotel, Ritz, Majestic ou Plaza, todas complementos de nomes de estabelecimentos premium, encerram uma aura de sofisticação que ainda hoje permeia o sabor desse passado glamoroso, usufruído apenas pelos bem-nascidos, mas que se tornou familiar a todos com o avanço do cinema, televisão e publicidade ao longo dos últimos 100 anos, quando o acesso a esse cosmos se tornou possível às massas através das mídias audiovisuais. E é com isso que Anderson brinca ao longo do filme, evocando a saudosa atmosfera dos salões, promenades, salas de banho e lobbies nababescos, onde uma safra já desaparecida de personagens espetaculares convive com um staff de serviçais com uniformes impecáveis, tão sedutor quanto as fardas prussianas de oficiais de outrora.
Neste mundo rococó de reverências e cumprimentos, destacam-se as maçanetas reluzentes das portas, os pés-direitos enormes, os portais, as paredes decoradas com jacquards, sancas, colunatas, volutas, rodapés, os cortinados, tons pasteis, a prataria polida, a louça delicada, obras de arte, cabines de trem, o vocabulário em francês, a pâtisserie e, sobretudo, o vestuário de apresentação social. Tudo aquilo que acabou sendo posto a nocaute por Coco Chanel e aquela turma que se encarregou de fazer o século passado começar após a Primeira Guerra Mundial, com quase duas décadas de atraso.
Naturalmente, a aura dessa passado magnífico persiste hoje em dia – não na vida real, exceto para muito poucos, mas no suporte à sociedade de consumo, seja nas campanhas publicitárias, na revistas de moda, nas passarelas, vitrines, e, claro, no cinema e tevê, em produções consagradas como “Downton Abbey”.
Fotos: Divulgação
Wes Anderson se inspira em relatos do escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942), autor da mais contundente biografia já escrita sobre Maria Antonieta, para montar com precisão esse grand monde na tela, com locações na Alemanha, sobretudo na Saxônia, onde aproveitou até átrio de antiga loja de departamentos para recriar o lobby do hotel. E, como pretende trazer à tona essa ambiência que hoje sobrevive quase que exclusivamente na fantasia publicitária, não economiza em maquetes e outros recursos estilizados para conceber as tomadas externas, tão artificiais quanto um anúncio de perfume da Nina Ricci. Afinal, se o cinemão atual é pródigo em elaborar mundinhos fake, sendo cada vez mais dependentes da computação gráfica, é nesse viés que o cineasta deita e rola, como se fosse preciso assumir a mentira visual para apresentar à plateia esse irresistível ambiente old-fashioned, não se furtando a usar elementos típicos do cinema mudo e cartoons.
Por isso mesmo, sobressai o figurino da bamba Milena Canonero, não por acaso a costume designer que trabalhou com Sofia Coppola em “Maria Antonieta” (Marie-Antoinette, Columbia Pictures, 2006), longa pelo qual amealhou seu terceiro Oscar, em um conjunto de premiações garimpadas em produções de época. À sua impecável concepção visual acrescentam-se peças da Fendi criadas para os personagens de Edward Norton e Tilda Swinton, assim como à Miuccia Prada coube conjunto de 21 malas e baús, além do sobretudo de couro usado por Willem Dafoe. É bem provável, portanto, que este filme venha a concorrer à estatueta de ‘Melhor Figurino’, assim como à de ‘Direção de Arte’.
Colaborador do diretor em outras realizações (O Fantástico Senhor Raposo, Moonrise Kingdom), Alexandre Desplat é responsável pela trilha sonora, que conta com a participação da Orquestra de Balalaicas Saint-Georges e a Orquestra Folk Osipov. O uso de canções folclóricas russas junto com composições originais é outro trunfo do longa-metragem, colaborando com esse inspirador clima de passado perdido proposto.
No mais, é inegável o esforço do britânico Ralph Fiennes em conceber um personagem que transita do humor pastelão à ternura, em composição que poderia ser comparada às de mestres nesse tipo de atuação, como Charles Chaplin, Buster Keaton e Peter Sellers. Ele conduz a narrativa com primazia, ancorado pelo elenco estelar – típico não somente das produções do diretor, mas de toda aquela cinematografia que resgata o prestígio dos grandes hoteis do passado. Aos medalhões habituês de Wes Anderson – Bill Murray, Owen Wilson, Jason Schwartzman, Jeff Goldbum, Edward Norton, Tilda Swinton e Adrian Brody – soma-se gente graúda, como F. Murray Abraham, Willem Dafoe, Tom Wilkinson, Jude Law, Mathieu Amalric, Harvey Keitel, Bob Balaban, Léa Seydoux e Saiorse Ronan, mas seria delito grave não mencionar o esplêndido lobby boy interpretado por Tony Revolori. Uma descoberta!
Trailer Oficial (Divulgação)
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