“Os Dias Com Ele”: no filme, a filha-diretora revela o desejo de conhecer seu pai através de sua história


Auto-análise! Ao tentar revelar o valor histórico da luta do pai Carlos Henrique Escobar na ditadura, a cineasta Maria Clara Escobar acaba descobrindo mais sobre si mesma

*Por João Ker

Estreia hoje (24/04) o documentário “Os Dias Com Ele”, dirigido por Maria Clara Escobar e vencedor do Prêmio de Crítica e Júri Jovem da 16ª Mostra de Cinema de Tiradentes. No longa, Maria Clara decide filmar uma série de conversas e interações com seu próprio pai, o intelectual e ex-militante Carlos Henrique Escobar. Em diálogos que deixam o público desconfortável pelo nível de franqueza com que os dois se tratam, muitas vezes de forma fria e rancorosa, a película narra tanto a relação dele com a ditadura quanto a sua relação com a filha que pouco viu crescer, em uma espécie de lavagem de roupa suja sutil, com tintas intelectuais.

O personagem principal do documentário se prepara para a primeira de uma série de entrevistas (Foto: Divulgação)

Cara de cão: o personagem principal do documentário se prepara para a primeira de uma série de entrevistas (Foto: Divulgação)

Desde o início, o espectador é convidado a entender que, como todo idoso, Carlos é cheio das manias e praticamente não gosta de falar com as câmeras ou com desconhecidos; tem “aversão a outros seres humanos, que não a filha”, como ele mesmo diz em uma carta. Mas isso é só no começo, porque à medida em que o documentário vai se desenvolvendo, é possível perceber traços geniais desse senhor que, se parecia rabugento, agora se mostra perspicaz, com um senso de humor aguçado e uma sanidade intelectual superior a de muitos jovens, surpreendendo a plateia.

Carlos Henrique Escobar  momentos antes de se cansar da câmera e mandar "desligar esse troço" (Foto: Divulgação)

Carlos Henrique Escobar momentos antes de se cansar da câmera e mandar “desligar esse troço” (Foto: Divulgação)

A tarefa de Maria Clara não é fácil. Por mais que tente impor o tal “caráter histórico” ao projeto, tentando mostrar a dura realidade da ditadura no Brasil através da trajetória do pai, ela por várias vezes é pega desprevenida pela implacável metralhadora de comentários, com Carlos fazendo duras críticas ao seu trabalho, dando pitacos e sugerindo alternativas durante todo o processo.  Nessa brincadeira de alternância de papeis, filha e diretora se mesclam com pai e personagem histórico-intelectual, em uma mélange que é bem curiosa e que, no fundo, acaba sendo tão importante no resultado final quanto a proposta de documentar a ditadura através de Carlos. E, afinal, quase nunca fica claro qual dos personagens está falando em cada hora: se o pai ou o militante, se a filha ou a diretora, com alternância de sobreposições de papel. Com isso, o próprio documentário se transforma em um segundo filme, que se propõe a registrar essa dura relação entre pai e filha, talvez quase tão implacável quanto o período em que o protagonista vivenciou e que é objeto do interesse da cineasta. Um primor.

Pai e filha em uma das várias conversas que tiveram ao longo das filmagens

Pai e filha travam várias conversas ao longo das filmagens, que acabam tendo um sabor todo especial e podem se tornar a alegria dos psicanalistas (Foto: Divulgação)

Como toda a história da ditadura em curso, surge em cena outro conflito, traduzido pelo o “abandono” de Maria Clara, a filha, em duas versões: a dela e a do pai. E, enquanto ambos discutem várias vezes sobre os diferentes pontos de vista, Carlos Henrique solta um “quem não me conhece é você” que, se a diretora quisesse, poderia ser usado como slogan para divulgação do filme, já que tão bem resume suas intenções, mesmo que não de forma consciente. No fundo, temos uma deliciosa lavagem de roupa suja entre os dois, com a diretora se tornando também personagem de seu próprio filme. Entre o amor pelos gatos e a vida reclusa que o tal senhor leva nos dias de hoje, o que transparece na tela é a vontade que ele tem de se reconectar, mesmo que minimamente, com ela e vice-versa. Para isso, ele explica a infância sofrida que viveu, a relação com a mãe de Maria Clara e o que ele acha sobre a filha. No fim das contas, os dois acabam trocando carinhos, conselhos, piadas internas e outras particularidades que só uma relação pai-e-filha permite. Missão cumprida.

A carência de firulas estéticas do documentário é compensada por esse momentos de extrema franqueza, e aí está a beleza da obra. Não importa se se trata de um ex-militante, de uma diretora fazendo o seu trabalho. No microscópio, todos são, de fato, seres humanos e viver é tão duro quanto períodos de perseguição política. Essa crueza fica explícita principalmente nos momentos em que Carlos não sabe que está sendo filmado e começa a ter discussões filosóficas com Maria Clara a respeito do trabalho e do sentido da vida (“A vida é uma armadilha e, através do acaso e do destino, ela faz da gente o que quiser”). Por ser o primeiro longa-metragem de sua carreira, Maria Clara Escobar deve estar se sentindo exultante com o resultado obtido, tanto no âmbito profissional quanto pessoal. É possível até que a intenção original tenha descambado para um outro produto, não menos interessante, talvez até mais do que o escopo inicial. E aí está o mérito do filme. Apesar de não ter precisado sair de “casa”, se teve algo que a diretora explorou foi um espaço muito além da sua zona de conforto. Enriquecedor, portanto.