“O ano mais violento”: thriller ambientado numa agressiva Nova York oitentista tem Jessica Chastain emoldurada por Armani


Filme discute o círculo vicioso da violência através da odisséia solitária dos que se arriscam a rompê-lo, trazendo a Big Apple corrupta dos early eighties e o carisma de Oscar Isaac, astro dos próximos “Star Wars” e “X-Men”

*Por Flávio Di Cola

No panorama cinematográfico norte-americano é muito raro encontrar thrillers que realizem a proeza de manter o público agarrado à poltrona do cinema enquanto retratam com inteligência as relações complexas e subterrâneas entre o crime organizado, a sociedade em que ele prospera e a história de uma metrópole, amarrando tudo isso através de uma discussão séria sobre as zonas cinzentas da ética e as sutis metamorfoses assumidas pela corrupção.

Pois bem, estréia nesta quinta-feira (2/4) nos cinemas uma obra que prova – mais uma vez –ser possível vencer esse desafio. Trata-se de “O ano mais violento” (A most violent year, 2014, distribuição A24) do jovem roteirista e diretor J. C. Chandor, em seus terceiro longa-metragem, depois de Margin call – O dia antes do fim (Margin call, 2011), com Kevin Spacey, sobre tramoias financeiras de Wall Street durante a pré-crise de 2008, e “Até o fim” (All is lost, 2013), drama de um homem perdido sozinho no oceano e que ofereceu uma grande oportunidade interpretativa para Robert Redford. Dois vigorosos roteiros de Chandor em que ele demonstra a sua comprovada maestria artesanal em casar ação com conteúdo.

"O ano mais violento" (Foto: Divulgação)

“O ano mais violento” (Foto: Divulgação)

As primeiras imagens de “O ano mais violento” são eloquentes: num terminal de óleo abandonado do East River, o jovem e batalhador empresário Abel Morales (Oscar Isaac que substituiu Javier Bardem no papel) salda o adiantamento em dinheiro vivo para a compra desse decadente labirinto de tanques, mas que lhe trará um controle estratégico sobre a lucrativa cadeia de armazenamento e distribuição de combustível de boa parte da megalópole, além de significar um passo arriscadíssimo: com esse golpe, ele inevitavelmente vai ultrapassar e subjugar todos os concorrentes do ramo, organizados numa verdadeira máfia. Estamos no emblemático ano de 1981: a escalada de decadência e violência urbana em Nova York atingiu o pico com 1826 homicídios/ano (hoje, muito mais populosa, NYC convive com 328 homicídios/ano), enquanto as Torres Gêmeas – símbolos do declinante poderio financeiro da Big Apple – recortam o horizonte, ainda inconscientes da desgraça que as aguardaria 20 anos depois, em 11 de setembro de 2001.

Trailer oficial (Divulgação)

“NYC, 1981”: documentário criado para apoiar o lançamento de “O ano mais violento” e que ajuda a entender a decadência através daqueles que a viveram

A partir dessas poderosas premissas dramáticas e simbólicas, o público é arrastado para dentro de um calvário de traições, atentados e golpes de origem desconhecida desferidos contra Morales com o objetivo de forçá-lo a desistir do negócio e, assim, desembarcar do “Grande Sonho Americano” representado pelos seus ternos bem cortados e uma mansão pós-moderna no subúrbio. Para elevar a temperatura da trama, há ainda Anna Morales, a pragmática mulher de Abel, filha de um gangster da velha geração de feudos do crime nova-iorquino e que acredita na lei do “olho por olho, dente por dente”, disposta a tudo para proteger as filhas e a saúde dos negócios nebulosos do casal. Jessica Chastain confere a esse personagem um magnífico tom de ferocidade contida que justificou plenamente as várias indicações que recebeu nos últimos meses como ‘Melhor Atriz Coadjuvante’, incluindo o Globo de Ouro e o Oscar 2015 da Academia.

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Quanto mais vemos o cerco de represálias se apertando em torno de Abel Morales, mais o empresário se debate para não reagir e assim manter-se dentro de limites razoáveis de decência, até por que ele ainda tem no seu encalço um promotor (David Oyelowo, o pastor Martin Luther King Jr. em Selma – Uma luta pela ingualdade), decidido a turbinar sua carreira pública através de um processo bem recheado contra Morales. Assim descrito, até parece que “O ano violento” é conduzido num ritmo frenético, como seria o clichê exigido pelo gênero em que se enquadra. Pelo contrário, roteiro e direção de J. C. Chandor primam por uma esperta e pausada distribuição de tensões que nunca se resolvem e que vão se acumulando de tal forma que – para o público – parecerá inevitável a derrota da cruzada pela não-violência empreendida por Abel.

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O crítico Scott Foundas do Variety ressaltou essa qualidade da película e quase inexistente na maioria dos filmes de ação de hoje, ou seja, a sua capacidade de sustentar a atenção da platéia por mais de duas horas não enfatizando apenas o movimento, mas também instaurando uma atmosfera peculiar, como esta do hermético mundo do crime nova-iorquino: um labirinto sufocante e opaco de códigos e fronteiras duvidosas em que o próprio Abel Morales parece tatear e se perder.

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Mesmo assim, Chandor não deixou de incluir uma sensacional sequência de perseguição que se desenrola numa zona industrial fantasma com direito às indispensáveis cenas no interior do decadentérrimo metrô da Nova York da época, numa clara homenagem aos filmes clássicos dos diretores Sidney Lumet e William Friedkin feitos nos anos 1970-80.

A turbulenta e decadente Nova York dos anos 1970/80 virou um prato cheio para o cinema. Confira alguns filmes de sucesso feitos durante essa época complicada e que pegaram pesado no “climão”:

Trailer de do clássico sci-fi “Fuga de Nova York” (1981), de John Carpenter, que evocava a atmosfera decadente e sombria da Big Apple (Reprodução)

Ao descrever uma Nova York em que sexo e violência se misturavam nos parques públicos, “Parceiros da noite” (Cruising, 1980, de William Friedkin) chocou o público e foi exaustivamente boicotado pelos movimentos GLS (Reprodução)

Filme-símbolo da Nova York corrompida, “Taxi driver” (Idem, 1976, de Martin Scorsese) acaba num banho de sangue coreografado como uma saga de samurais (Reprodução)

Aliás, como é de praxe na indústria de cinema norte-americana, a reconstituição de época é nada menos do que primorosa. E aqui vemos um orçamento de 20 milhões de dólares – baixo para os padrões locais e que quase categoriza “O ano mais violento” como indie – milagrosamente transformarem-se numa produção de época com aparência e substância de alto padrão. A fotografia esmaecida de Bradford Young não só valoriza a estação invernal em que se passa o drama como também potencializa o clima geral de angústia e incertezas. Para se manter nessa chave, o filme ainda conta com um desenho de som que parece cercar os personagens de perigos permanentes e invisíveis, além da elogiada trilha musical de Alex Ebert (colaborador habitual de Chandor) que buscou inspiração nos inconfundíveis arranjos eletrônicos dos filmes do período e na voz emblemática de Marvin Gaye para a abertura.

Mas para os fashionistas, “O ano mais violento” oferece um atrativo a mais além do preciso e impecável figurino de Kasia Walicka-Mamone, a mesma de Moonrise Kingdom (Idem, 2012, de Wes Anderson): todos os modelos exibidos no filme por Jessica Chastain foram criados exclusivamente pelo seu amigo de longa data, Giorgio Armani, o qual aceitou sem pestanejar o convite feito pela estrela ruiva. Aliás, essa colaboração do designer italiano se justifica plenamente aos olhos da história da moda. Afinal, os anos 1980 inauguram a ascensão vertiginosa da sua marca até a posição indisputável de que desfruta hoje, e foi ele – mais do que qualquer outro criador – que definiu o look minimalista e alinhado que fez a alegria dos yuppies que estavam em agressiva trajetória de ascensão profissional. O próprio Armani declarou: “Criei para a personagem Anna Morales, vivida por Jessica Chastain, casacos que mais parecem armaduras e que traduzem sua permanente luta pelo poder”. Só essas roupas valem uma viagem de volta a 1981.

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*Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e ex-coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria