*Por Vítor Antunes
“Tantos mistérios pra desvendar nas manhãs que abrem teu coração”. A frase, retirada de um dos maiores sucessos populares de Ronnie Von, “Cachoeira”, poderia defini-lo neste momento. As Manhãs de Ronnie na Rede TV! têm trazido bons resultados à emissora que viu triplicar sua audiência à estreia do apresentador, que volta ao ar depois de três anos. O período matutino, inclusive, é uma novidade para ele. Segundo relata, “hoje, para os patrocinadores e investidores da mídia televisiva, a manhã é “o novo prime time”. “Esses recomeços se estabelecem por conta de uma vontade monumental de apresentar televisão e é isso o que eu mais gosto de fazer. Ao trabalhar com comunicação temos nossas preferências de atividade e eu gosto mais de apresentar programa do que de fazer show. Tanto que não faço mais. Assim como não gravo mais disco. Hoje eu preciso da televisão para me motivar, de certa forma”, frisa.
Diante de uma carreira profícua na televisão como apresentador, perguntamos sobre alguns programas e o espaçamento entre eles – como do triênio entre o “Todo Seu” e o “Manhã com o Ronnie”. Foi aí que o intérprete de “A Praça” revelou haver apresentado 14 programas nas mais variadas televisões brasileiras, inclusive algumas já extintas. Dono de uma memória prodigiosa, enumerou-os um a um.
COMUNICADOR
Trata-se de “um desafio grande, porque nesse horário há de se mudar o seu comportamento. O programa diurno tem um perfil de horário completamente novo pra mim. Como estamos de manhã há um frescor, que, de certa forma, ajuda. Além disto há um público fidelíssimo quando comparado aos outros horários”. Para Von, as mudanças não se restringem à ótica comercial, mas também a outros hábitos: “Se antes eu acordava às oito horas da manhã, agora eu me levanto às cinco e meia”, diz.
Segundo ele, a ausência na TV, entre a saída de uma emissora para outra não foi de sua vontade: “Eu nunca parei por que quisesse parar. Porém, quando mudam as diretorias das emissoras, os diretores têm seus afilhados e o espaço precisa existir para eles. Assim, vão tirando meia hora de um apresentador, uma hora de outro, o que resulta num incômodo e num pedido de saída. Isso acontece com outras emissoras também, ainda que seu programa dê audiência. O artista acaba por sentir-se desprestigiado”.
Como forma de exemplificar este relato, Ronnie conta da vez em que fora contratado pela TV Globo – e por seu braço fonográfico, a Som Livre. “Eu tinha um contrato na Globo e teria um programa que decorria de uma proposta do Augusto César Vanucci (1934-1992). Faria naquela casa um programa lindo. Tenho, inclusive, ainda hoje, o projeto datilografado e com o timbre da Globo.
Fiquei contratado pela Globo por dois anos e o programa não saiu, já que Vanucci transferiu-se para a Bandeirantes e eu fiquei na emissora a ver navios. Na hora que me chamaram para renovar o contrato eu não quis renová-lo – Ronnie Von
Já a saída da Gazeta não foi por esta razão “A TV estava com um problema econômico e eu entendo a argumentação. Tenho o maior carinho pela Gazeta, mas não se pode obrigar a pagar pelo seu trabalho ou pela sua produção quando ela está com problemas sérios para resolver. É business. Há de se respeitar isso.”
Decididamente, a escolha profissional de Ronnie é pela comunicação. O passado como cantor de rock ficou para trás: “Eu não penso em lançar disco nenhum. Eu tenho amigos ligados à produção fonográfica e há coisas que acontecem hoje e que é preciso render-se. Todo mundo sabe, e eu já repeti isso à exaustão, que eu detesto festa, nunca gostei de participar de eventos, porém, por força do ofício ou por amizade sou convidado e quando não vou os amigos ficam chateados. Isso se estende à música. Eu faço 56 anos como cantor e a indústria insiste em dizer que é 55, por ser este um número ‘mais bonito’. Pediram que eu voltasse a fazer shows e eu disse ‘Eu não tenho tempo, por pavor, eu já tenho uma idade, fico muito cansado’. Quando eu já penso nessa questão de check-in, de viagem eu já desisto, porque sempre quero dormir em casa. Além de tudo, o meu programa é diário, tenho muita coisa a resolver”.
“Todo dia de Deus alguém me pede para eu voltar a cantar, e eu acabo cedendo, não digo que a contragosto, mas a algo próximo disso. Meu próximo show vai ser feito num apartamento onde tem um estúdio e pouquíssima gente vai, até por que nem cabe muita gente. Eu não gravo e nem faço mais show profissionalmente. Faço para caridade, como fiz o meu último, o “One night only”. Eu acho que minha carreira musical já deu. – Ronnie Von
Inclusive, vale o destaque, o então músico nunca compôs a turma da Jovem Guarda: “Questiono quando falam ‘O Ronnie da Jovem Guarda’, ou ‘O Príncipe da Jovem Guarda. Passei uma vida inteira dizendo que nunca fui da Jovem Guarda e, até agora, as pessoas dizem que sou desse movimento ou desse programa. Eu ponho o rabo entre as pernas e tento ficar quietinho embora nunca tenha feito ou participado desta fase musical, como a Wanderléa, a Martinha, ou o Erasmo Carlos. Meu programa era outro, era diferente”. Importante contextualizar que ‘Jovem Guarda’ era um programa de televisão na antiga TV Record, que mais tarde passou a ser usado como sinônimo para as músicas que ali eram apresentadas. Ronnie Von também apresentava programas naquela emissora, mas eram de outros contextos e/ou conceitos.
OXÓSSI, CAVALO, CHAPÉU DE BANDA… E ROCK!
“A minha escola musical, se é que tenho uma, sempre foi o rock. Esse meu gosto por música erudita e jazz é algo pessoal e extra profissional, mas quanto a ofício foi sempre o rock. Algo que me envaidece muito, por exemplo, é que um dos meus discos foi considerado um dos melhores do gênero, e conferiram este título a este brasileirinho sul-americano aqui, ainda que tenha sido 40 anos depois de seu lançamento”. O disco ao qual Ronnie se refere leva o seu nome e compõe a trilogia de rock progressivo. Além deste, lançado em 1968, há o “A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre Contra o Império de Nunca Mais (1969) e “Máquina Voadora” (1970).
Ronnie Von relata que seu “mergulho no rock progressivo se deu por conta do meu gosto por artes e eu gosto muito de arte pictórica, simbolismo e surrealismo. Inspirado em um quadro do Hieronymus Bosch (1450 -1516), pensei em fazer uma música que tivesse esse tom de surrealismo, mas que em vez de imagem fosse cantado. Talvez fosse uma estupidez de minha parte mas também era um sonho e um sonho deixa de ser estupido quando a gente acredita nele. O primeiro projeto aconteceu à revelia da gravadora, que teve um prejuízo monumental comigo. Estava havendo uma troca de presidência na época, fase em que a gravadora ficou acéfala, e num hiato de um mês nessa história, um mês sem liderança, eu levei minha tchurma para o estúdio e fizemos um disco psicodélico, que foi um enorme fracasso. Depois esse álbum foi redescoberto e virou cult. Os dois seguintes eu fiz com um “pé atrás” [menos psicodélico], de modo que o primeiro é o meu favorito, por que eu consegui, nele, imprimir a minha ideia de “surrealismo musical”.
A contribuição de Ronnie ao rock não se restringiu a este disco. Foi, também, corresponsável não apenas por batizar, mas por apresentar uma das bandas mais importantes do rock nacional: Os Mutantes. “Eu fiz uma amizade grande com a Ritinha [Rita Lee] e ela me disse que o grupo musical onde ela estava – chamado Os Seis – viraria um trio (…). Eu estava lendo um livro e o nome era “o império dos mutantes” (…) vi o nome e disse que era bom e ela gostou. Na semana seguinte, com muito custo, eu convenci o diretor do programa a levá-los a ‘O Pequeno Mundo de Ronnie Von’” … E o resto é História!
Outro momento definitivo na carreira de Ronnie ainda na época do rock progressivo foi quando gravou “Cavaleiro de Aruanda”. A música, lançada em 1972, surpreendentemente, virou uma cantiga de umbanda, em razão de seu sucesso. “O diretor musical da minha banda na ocasião era um argentino, o Tony Osanah, que se encantou pela cultura afro-brasileira. Um dia, nós estávamos compondo, ele trouxe esta música pra mim, e eu a via como muito forte. Na época, era algo mais folclórico que religioso e decidi gravar. A contrário de mim, ele conhecia umbanda e candomblé e eu não tinha a menor noção, tanto que ele me contou como era e me levou num templo religioso afro para eu ver como as pessoas cantavam. Na época, queríamos que o coro da música fosse gravado por filhas de santo legítimas, mas acabamos optando por cantoras profissionais que lançaram mão de um tom muito agudo, como cantam as mulheres nos ritos afro. Era uma produção do Arnaldo Saccomani (1949-2020), que levou, inclusive, atabaques para o estúdio. O meu olhar da época tratava esta música como folclórica, mas os religiosos ligados as religiões afro gostaram muito, tanto que a canção acabou virando um ponto para o orixá Oxóssi, que é o senhor das matas. A coisa ganhou vulto e transformou-se em algo religioso. Gosto muito dessa música”, revela.
ETERNAMENTE PRÍNCIPE
O título de príncipe, que recebera em razão dos olhos azuis e da incontestável beleza, foi dado por Hebe Camargo (1929-2012). Perguntamos a Ronnie, 78 anos, se ele espera ser entronizado rei, tal como o atual Rei Charles III, da Inglaterra, que só recebeu essa nomeação aos 73.
“Essas ascensões nobiliárquicas não passam pela minha cabeça. Posso ficar para sempre como príncipe, não vou virar rei nunca. Já temos o Rei da Voz, que é o Agnaldo Rayol, temos o Rei da Jovem Guarda, o Roberto Carlos… Quero continuar príncipe – Ronnie Von
Aliás, em se tratando do título da nobreza, Ronnie teve uma oportunidade de vivê-lo, na novela “Cinderela 77”, da Tupi. Ele era o príncipe que não andava de cavalo branco, mas de motocicleta preta, na atualização modernizada do clássico de Charles Perrault (1628-1703). Esta foi sua última experiência como ator protagonista. Antes da malsucedida trama da Tupi, vivera Vinícius em “A Menina do veleiro Azul”, trama encerrada às pressas em decorrência da crise econômica da TV Excelsior.
Diante de tantas histórias belas e cheias de profundidade, o único momento em que o artista mudou o tom foi quando falou do assédio que sofrera aos 10 anos por uma funcionária da casa dos seus pais. “Para mim foi um horror, eu não entendia nada, eu não sabia nada. Há uma dor psicológica que você pode se perder nisso, inclusive. Hoje esta história passa pela minha vida e cabeça de forma irrelevante, mas poderia ser, para outra pessoa algo monumental. Eu tenho completo pavor dessa coisa de abuso. Juro que não sei como levar esse assunto. Trata-se de uma tara, de uma doença, de uma maluquice, sem-vergonhice… Não sei adjetivar. É algo que tomou tamanho relevo que tamanho relevo que toda a população feminina diz ter sido abusada. Isso me horroriza, é algo grave. Não há mais espaço para sociedades machistas”, exclama.
Próximo de encerrar a entrevista, Ronnie comentou haver sido prolixo em razão de as perguntas também serem extensas. Está aí a manifestação de uma carreira vitoriosa. A extensão de vida, saberes acumulados e o vasto repertório de talentos oriundos de Ronnie exigem robustez. De um príncipe que, nas águas de um rio de sonhos, nega-se a ser rei. Quer ser o príncipe menino do “Reino de Parassempre”.
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