Novela ‘Cortina de Vidro’, com Sandra Annenberg no elenco, é exibida no exterior desde 1991. SBT alega pirataria


Primeira novela em produção independente da história da TV e obra que marca a estreia de Walcyr Carrasco no gênero foi permeada de problemas desde sua pré-produção até o tempo presente, 33 anos após a sua estreia. Novela vem sendo exibida em países estrangeiros pelo menos desde 1991, sob o desconhecimento de seu elenco. Um dos atores da obra, Raymundo de Souza, disse estar em litígio judicial com a TV, que alega ser vítima de pirataria. Mikson, uma das empresas produtoras do folhetim, afirma não haver sido paga pelo serviço do qual fora contratada o que a fez endividar-se.

*Por Vítor Antunes

“Cortina de Vidro” foi a primeira produção independente do gênero teledramaturgia a ser exibida na TV brasileira entre 23 de outubro de 1989 e 5 de maio de 1990, pelo SBT. Os créditos de abertura e encerramento apontam tratar-se de uma co-produção entre a Miksom e a AVP Arte Vídeo, de modo que cabia ao SBT apenas a sua exibição. Trata-se do primeiro trabalho de Walcyr Carrasco como autor. Todavia, a novela passou por toda sorte de dissabores. O insucesso de “Cortina de Vidro” no Brasil foi grande. Entre problemas de produção, desalojamento de locações e atores pedindo demissão, “Cortina” passou a ser lembrada diante do fato de ser a última novela de Sandra Annenberg como atriz, além da já citada estreia de seu autor, e da cena de violência sexual incestuosa praticada entre os personagens de Antônio Abujamra (1932-2015) e Carola Scarpa (1971-2011). No entanto, a contrário do Brasil, a novela vem sendo exibida com sucesso ao menos desde 1991 em países como Itália e Portugal. Ao passo que o SBT nega havê-la comercializado para o mercado internacional: “A novela “Cortina de Vidro“, fruto de produção conjunta com Miksom e AVP, não foi licenciada para emissoras estrangeiras”, disse em comunicado oficial o SBT.

Segundo aponta o site antoniogenna.net, especializado em catalogar novelas latinas exibidas na Itália, a primeira exibição de “Cortina da Vidro” na Itália deu-se em 16 de março de 1991 e, desde então, vem sendo incansavelmente reexibida em solo italiano. Em março de 2022, a novela estava sendo exibida em um canal de TV local, o Donna TV, sob o nome “L’Amore Vero Non Si Compra”. A novela chegou a ser exibida simultaneamente à outra produção da TV de Silvio Santos, igualmente problemática: “Meus Filhos Minha Vida” – chamada na Itália de “Figli Miei Vita Mia”.

Carola Scarpa [Na época apenas Carola] e Antonio Abujamra na exibição de “Cortina de Vidro” na QTV, um canal estrangeiro (Foto: Reprodução)

UMA CORTINA DE VERSÕES

Conforme anteriormente citado, a novela vem sendo exibida continuamente na Itália pelo menos desde 16 de março de 1991. Em solo italiano, “L’Amore Vero Non Si Compra” foi exibida em canais como a Sitcom1, a Facile Tv, a e21 Network (extinta em 2015), a Easy TV e a AB Channel (em 2015), bem como “Meus Filhos Minha Vida”. Ambas foram televisionadas pela Telecittà e, tal como neste ano, 2022, as novelas foram exibidas simultaneamente, pela Donna TV. O site SBT-Pédia, referência em pesquisas sobre o canal de Sílvio Santos, fala de uma exibição na Inglaterra. Esta reportagem, além das exibições italianas, localizou que a novela fora exibida em Portugal, pela RTP, em 21 de agosto de 1995, no horário de 12h30, antes de um jornal vespertino da TV lusitana, em 168 episódios, mesma quantidade que aquela exibida originalmente no Brasil. Informação reiterada pela TV portuguesa:

Acerca (da novela) “Cortina de Vidro” (…), informamos: “Cortina de Vidro” foi exibida a 21 de agosto de 1995 no Canal 1, no horário do 12h30, antes do Jornal da Tarde; a série tem 168 episódios – TV RTP

Logomarca da exibição de “L’Amore Vero non si compra”, exibida pela RunningTV , em 2015 (Foto: Reprodução)

Tal como “Meus Filhos Minha Vida”, o sucesso de “Cortina de Vidro” em solo italiano fez com que a quantidade de capítulos exibidos por lá fossem ajustados, diferentemente daqueles exibidos no Brasil. Dos 168 aqui exibidos, chegou a ter 248, quando transmitida pela Running TV, e 164 episódios quando foi exibida pela TeleDue. Aliás, a exitosa carreira da novela no estrangeiro é muito diferente de sua passagem aqui no Brasil, onde nunca foi reexibida, justamente por seu grande insucesso. Para fins de referência, e usando a praça São Paulo como exemplo, o Jornal Nacional iniciava suas notícias com índices de 51% de Ibope e já próximo do seu fim chegava a atingir 75%. Os 25% restantes cabiam a todas as outras emissoras somadas, incluindo aí o SBT – segundo dado publicado na coluna Regina Rito, do Jornal do Brasil de 17/11/1989. O noticioso global passava quase que ao mesmo tempo da novela da novela do SBT’.

Em razão de haver passado por problemas de toda ordem, o folhetim ficou esquecido, inclusive por seus atores, que se surpreenderam ao serem procurados a falar sobre uma obra de 33 anos atrás, e sobre a qual não têm recebido os direitos conexos inerentes ao licenciamento no estrangeiro. Caso de Herson Capri: “O SBT nunca se manifestou junto a mim quanto ao recebimento de direitos conexos. Nunca! Eu só recebi o meu salário o quando trabalhei na novela, entre 1989 e 1990, e nunca mais soube nada sobre ela. Nunca recebi nada após havê-la feito. É uma coisa maluca esta, que não dá para entender. Alguém parece estar tirando proveito disso. A empresa ganha tudo o que quiser, ao passo que o trabalhador não”.

 

Herson Capri em cena em “L’Amore vero Non Si Compra”, na exibição de 2022 da Donna TV (Foto: Reprodução)

Outra a figurar no elenco, Sandra Annenberg, a co-protagonista Ângela, por sua vez, celebrou a reprise, embora também não soubesse dela. Disse-nos que “não sabia que “Cortina de Vidro'” estava sendo exibida na Itália, que legal! Foi um trabalho bem interessante, no qual acabei virando protagonista no meio da novela. Carrego sempre comigo os ensinamentos de grandes atores com quem trabalhei. Em “Cortina de Vidro” contracenei, com Miriam Mehler, Antonio Abujamra, Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006)… e muito mais! Olha só que elenco maravilhoso! Tanto a aprender…”. Perguntado se sabia sobre esta exibição e o sucesso da trama em solo italiano, Carrasco disse “Não sabia do sucesso da trama na Itália”.

Em virtude da época em que foi exibida a novela, a AVP Arte Vídeo, vinculada ao publicitário Guga de Oliveira (1941-2018) não foi localizada. A Miksom disse-nos através de seu representante Dirceu Vieira que a empresa apenas realizou “um serviço de gravação e edição. Aliás, um serviço que foi realizado e não pago. Os autores e responsáveis pelo projeto nunca cumpriram com o pagamento devido à Miksom e com isso, a empresa teve que assumir um prejuízo extremamente significativo que não cabe expor neste fórum”.

Dirceu Vieira prossegue dizendo que a então produtora “apenas captou e editou as imagens”, ou seja, fez a gravação e procedeu com a sua finalização, e prosseguiu dizendo que “não fez parceria com as demais empresas citadas e muito menos tem algum conhecimento sobre a comercialização do produto aqui no Brasil ou no exterior”. Sobre o imbróglio que envolve esta produção, o SBT limitou-se a dizer que:

A novela “Cortina de Vidro”, fruto de produção conjunta com Miksom e AVP, não foi licenciada para emissoras estrangeiras –  SBT

Desde sua primeira exibição no Brasil, “Cortina de Vidro” contava com uma possibilidade de venda para o exterior. Inclusive, em seus créditos de encerramento, havia uma sinalização de que a pessoa responsável por este fim era o produtor, teatrólogo e advogado Sérgio Dantino, falecido em 2021.

Crédito de encerramento de “Cortina de Vidro”, quando de sua exibição pela Telecittà e a sinalização do responsável pelas vendas internacionais, Sérgio Dantino (Foto: Reprodução)

UMA NOVELA PROBLEMÁTICA

Afastada da produção de teledramaturgia desde 1985, quando apresentou “Uma Esperança no Ar”, o SBT experimentou um retorno ao segmento através da compra de produções independentes. A primeira delas, também com a AVP, deu-se através da série “Joana”, exibida inicialmente pela TV Manchete e, depois, pela então TVS, no ano de 1984. Todavia, ao fim daquela década interessou-se em retornar à produção de teledramaturgia de maneira mais econômica através das produções independentes. “Cortina de Vidro” é, portanto, a primeira novela neste formato. No posicionamento cobrado desta reportagem, a TV diz tratar-se de uma “produção conjunta”, o que dialoga com o informado do site SBT-Pédia: “O SBT adotou o esquema de produção independente (apesar de 50% dos custos serem pagos pela emissora), com a Miksom, de Guga de Oliveira”. Inclusive, a logomarca da emissora está presente na capa da trilha sonora da novela.

Na capa do LP com a trilha sonora da novela, a logomarca do SBT. Segundo o site SBT-Pédia, o produtor master da obra (Foto: Calmito Miranda Costa/Colecionador)

Depois de “Cortina”, o próprio SBT retomaria a fórmula em novelas como “Colégio Brasil” (1996), “Dona Anja” (1996) e “O Direito de Nascer” (2001). Algo que a Manchete faria anos mais tarde, com “74.5 – Uma Onda no Ar” (1994),  e expediente do qual a Record faria no tempo presente, quando suas novelas são produzidas pela Casablanca.

Voltando à “Cortina”, o primeiro problema se deu justamente quanto à autoria. Um dos atores do elenco disse-nos que a novela era de Bráulio Pedroso (1931-1990) e que este havia escrito os primeiros capítulos – que chegaram a ser gravados – porém fora substituído depois por Walcyr Carrasco. Este último disse-nos que sua “relação com Bráulio foi curta, porque ele saiu da novela logo no começo, antes mesmo de ir ao ar. Mas era um grande parceiro”. Ao passo que outras fontes relatam que Bráulio fazia apenas a supervisão de texto. Por fim, nos créditos de abertura da novela aos quais tivemos acesso, tanto na versão brasileira como na italiana, consta apenas os nomes de Carrasco e de Miguel Filliage. Bráulio não é sequer citado. Ele viria a falecer em agosto de 1990, poucos meses depois da exibição do último capítulo de “Cortina de Vidro“.

Logomarca de “Cortina de Vidro” quando de sua estreia. Ao fundo, o Edifício Dacon que servia de locação e do qual a produção foi expulsa (Foto: Reprodução/SBT)

A fim de destacar-se frente a um mercado muito competitivo naqueles idos, onde ao menos outras duas emissoras – Globo e Manchete – se destacavam na produção de teledramaturgia, a emissora paulista pegou carona na expressão que costumava definir aqueles que compunham o elenco da TV presidida por Roberto Marinho (1904-2003). Como boa parte dos atores procurados para compor o elenco havia feito trabalhos de destaque na Globo, e eram classificados como “globais”, durante a divulgação de “Cortina de Vidro” o SBT classificou-os como “sbtais”. E a montagem do elenco “sbtal” passou por problemas: Lucélia Santos e Cássia Kiss foram convidadas para fazer a sindicalista Ângela e  declinaram. O papel acabou ficando com Sandra Annenberg. Esther Góes entrou no elenco substituindo Nívea Maria, que também recuou. Nuno Leal Maia faria um personagem que, à sua desistência, deixou de existir. Os outros escalados acabaram sendo Gianfrancesco Guarnieri, Renato Borghi, Herson Capri, Antônio Abujamra e Sérgio Mamberti. Débora Duarte também fazia sua primeira novela na emissora. A obra contou com ao menos três nomes incomuns em sua escalação. Um deles foi o do jornalista Jorge Kajuru, outro o da apresentadora Sabrina Sato, que era uma criança e assinava com seu outro sobrenome – Rahal – e a socialite Carola de Oliveira, então apenas Carola, e que mais tarde, ao casar-se com o playboy Chiquinho Scarpa,  receberia o nome que a fez famosa, Carola Scarpa. Neste que era o seu primeiro trabalho como atriz. Esta novela acabou por ser a última de Sandra Annenberg, e não só dela, mas de Matilde Mastrangi.

Anúncio de “Cortina de Vidro”, em 05/11/1989: Os atores SBTAIS (Foto: Reprodução)

Como mencionado anteriormente, a novela tinha tão pouca relevância que até mesmo Silvio Santos errou seu nome. Segundo aponta o SBT-Pédia, ao divulgar a trama no Programa Sílvio Santos, em 1989, o “patrão” chamou-a por Cortina… de Ferro! Além disto, o prédio que servia de locação, o edifício Dacon, construído em 1981, e que tornou-se famoso, justamente, por sua fachada envidraçada que deu o nome à novela, fez uma parceria com os produtores e o condomínio a fim de que a trama fosse gravada lá. Era como se o próprio prédio, na Avenida Cidade Jardim, 400, no Itaim Bibi,  fosse protagonista do folhetim.

Contudo, antes do capítulo 100 – O site SBT-Pédia aponta ser o episódio 80 – a novela viu-se obrigada a encontrar uma solução dramatúrgica que justificasse a perda do seu principal cenário, justamente o Edifício Dacon. O 22° andar do prédio onde a novela era gravada, fora comprado pelo Banco Luso-Brasileiro, que solicitou o espaço para si. Revelando-se então que não havia um contrato formal entre os produtores da trama e o edifício. Os novos proprietários não aceitaram que a trama continuasse sendo gravada ali. Como solução, Walcyr Carrasco optou por justificar a ausência do cenário principal trama através de um incêndio. Segundo o autor, no livro “Cenas do Próximo Capítulo“, de Cíntia Lopes e André Bernardo, a novela viu-se obrigada a reduzir todas as suas ações a oito cenários, e a, também, enxugar o elenco em razão dos poucos recursos financeiros.

Um dos poucos registros disponíveis da cena do incêndio que dizimou o elenco, os cenários e as locações de “Cortina de Vidro” (Foto: Reprodução)

Outras questões trazidas pela novela foram polêmicas. Dentre elas, duas: Numa cena, segundo consta no livro “Biografia da Televisão Brasileira”, de Flávio Ricco e José Armando Vannucci, o personagem de Antônio Abujamra, Arnon Balakian, violentava a própria filha, Michele, vivida por Carola. Ao que apuramos, a cena foi cortada na exibição italiana.
Outra cena, cortada sem ir ao ar, tratava-se de um beijo gay entre os personagens de George Otto (1955-1991) e José Américo Magno. Segundo aponta o jornal O Estado de São Paulo (14/03/1990), Magno recusou-se a gravar a cena que comporia o Capítulo 143. Walcyr intencionava levantar uma discussão sobre a AIDS na novela e, diante da recusa do ator, o mesmo foi desligado da obra e sua ausência foi justificada com uma “viagem para Santa Catarina”. À época, o Brasil vivia o grande auge da síndrome e não se sabia suas formas de contágio e as pessoas HIV positivas eram vistas com muito preconceito. Curiosamente, anos depois, o próprio Walcyr seria o responsável por levar ao ar o primeiro beijo gay da história da TV Globo, em “Amor à vida”.

Edifício Dacon, principal locação de “Cortina de Vidro”, num take do primeiro capítulo da novela, exibido na e21, extinta TV italiana (Foto: Reprodução)

TELHADO DE VIDRO

O ator Raymundo de Souza, que faz parte do elenco tanto de “Cortina de Vidro” como de “Meus Filhos Minha Vida”, revela que entrou com um processo contra o SBT reivindicando o pagamento dos direitos conexos por “Cortina de Vidro”, segundo consta em processo datado de 2021 no TJSP – Foro Central Cível da Comarca de São Paulo, SP. Conversamos com o seu advogado, Eduardo Pimenta, que o representa. Segundo ele, o contrato foi feito com o SBT, a quem os atores eram vinculados: “A diretriz é linear: O Raymundo nunca foi contratado da produtora, mas pelo SBT e com carteira assinada pelo canal”. Algo semelhante é apontado por Victor Drummond, advogado e presidente executivo da Interartis, associação que visa promover a gestão coletiva do setor audiovisual, formada por artistas brasileiros, que objetiva assegurar aos seus associados o recebimento do direito decorrente da utilização de obras audiovisuais tanto no Brasil como no exterior. Segundo Drummond, “O responsável [pelo artista] é aquele com quem ele assina o contrato”.

Raymundo de Souza em cena na novela “Cortina de Vidro”, na exibição da Tellecità (Foto: Reprodução)

Diante do exposto, a emissora foi solicitada a se pronunciar no tocante a dizer se seria ela a responsável pelo contrato junto aos atores, assim como, em se tratando de uma produção tripartite, quem seria o responsável pela tutela do folhetim, quem detém suas fitas originais e direitos de imagem, bem como sendo a TV a proprietária da obra, que ações tomou a fim de proteger seu patrimônio de uma – possível – pirataria. O SBT não se posicionou quanto a isso.