* Por Flávio Di Cola
Em tempos de Copa do Mundo, talvez seja interessante lembrar que as seleções de futebol do Brasil e da Tchecoslováquia já estiveram juntas no pódio na lendária conquista do Bi-Campeonato, disputada no Chile em 1962. Outros se recordarão de que na mais emocionante entre todas as Copas vencidas pelo Brasil – a do México, em 1970 – os tchecoslovacos foram os primeiros a serem abatidos pela seleção canarinho de Zagalo rumo ao título de Tri-Campeão. Essas citações se fazem necessárias aos mais jovens para que eles consigam entender que a rara e oportuna seleção que está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), do Rio de Janeiro, de hoje a 2 de junho, é sobre o que há de mais expressivo na cinematografia de um país que não existe mais desde 1992, quando o império soviético desmoronou – após a Queda do Muro de Berlim, em 1989 – levando de roldão um grupo de “repúblicas democráticas” que, na verdade, não passavam de estados-satélites da finada União Soviética. Uma delas foi a Tchecoslováquia, hoje dividida em dois países democráticos e independentes, a República Checa e a Eslováquia. Assim, Nouvelle Vague Tcheca – O Outro Lado da Europa torna-se significativa não apenas pelo conteúdo cinematográfico que apresenta, mas também por este representar um ´momento histórico relacionado a profundas transformações.
Outro ponto de ligação entre o Brasil e a antiga Tchecoslováquia é que historicamente o cinema de ambos os países foi fortemente influenciado pela Nouvelle Vague francesa, movimento de um grupo de jovens críticos e cineastas – como François Truffaut, Jean-Luc Godard, Louis Malle, Éric Rohmer, Alain Resnais e Agnès Varda – que a partir de 1960 mudaram completamente a forma de fazer e ver o cinema, sacramentando a figura do diretor-autor e os processos criativos anticonvencionais. Se no Brasil, a Nouvelle Vague inspirou a eclosão do Cinema Novo, capitaneado por Glauber Rocha, na Tchecoslováquia, a “nova onda” se aproveitou do relativo degelo político de todo o Bloco Soviético após a morte de Stálin. É a partir desse momento que floresce o cinema polonês nas figuras do diretor Andrzej Wajda e da Escola de Lodz, onde estudou Roman Polanski.
Mas, no início dos anos 1960, a Tchecoslováquia começa a ameaçar a supremacia polonesa como a principal cinematografia do leste europeu, através de nomes como Vojtech Jasný e Milos Forman, ou ainda como a dupla Jan Kadar-Elmar Klos e Jiri Menzel que arrebataram para esse pequeno país dois Oscars quase consecutivos de ‘Melhor Filme Estrangeiro’, respectivamente por “A pequena loja da rua principal”, em 1966, e “Trens estreitamente vigiados”, em 1968. Dessas duas obras-primas, apenas a segunda foi programada pela curadoria da mostra.
Chegamos em 1968, ano-símbolo da década que mudou tudo: a mais charmosa onda revolucionária da história do século 20 parecia que ia pegar em cheio a Tchecoslováquia e libertá-la do jugo soviético quando o líder reformista Alexander Dubcek assumiu o poder em janeiro, instaurando no país um incipiente, mas esperançoso clima de liberdades democráticas. Esse breve período entrou na história da Guerra Fria com o nome lírico de “Primavera de Praga”, o que deve ter enfurecido ainda mais a cúpula comunista de Moscou. Em agosto desse ano, os tanques soviéticos invadiram a Tchecoslováquia e rechaçaram rapidamente essa ilusão primaveril. Dezesseis anos depois, esses meses tensos e heróicos de Praga se tornaram o pano de fundo de um dos maiores best-sellers mundiais – “A insustentável leveza do ser” (1984) de Milan Kundera, adaptado para o cinema em 1987 sob a direção de Philip Kaufman e elenco estelar: Daniel Day-Lewis, Juliette Binoche e Lena Olin.
Todas essas peripécias da história tcheca pareciam já estar previstas no mais irresistível e imperdível filme de toda a mostra – “Um dia, um gato”, dirigido por Vojtech Jasný, em 1963, e estrategicamente programado para abri-la. É uma fábula banhada por um surrealismo ingênuo que exibe extraordinários efeitos de cor que explodem despudoradamente na tela com uma pujança jamais vista antes no cinema europeu. Jasný narra a história de um professor de uma pequena cidade que tem um gato que usa óculos escuros. Quando o felino retira o seu Ray-Ban, ele colore as pessoas que enxerga de acordo com os seus sentimentos e caráter verdadeiros: vermelho para os apaixonados, roxo para os mentirosos, amarelo para os traidores e cinza para os desonestos. É claro que o gato logo se torna uma ameaça à frágil estabilidade do burgo e seus habitantes passam a persegui-lo, enquanto as crianças o protegem. Uma lição de simplicidade e beleza de que o cinema precisa se lembrar de vez em quando, principalmente neste pesado outono brasileiro.
“Um Dia, Um Gato”
Serviço:
“Nouvelle Vague Tcheca – O Outro Lado da Europa”
De 21 de Maio a 02 de Junho no CCBB Rio de Janeiro – de quarta a domingo
Local: Cinema do CCBB (102 lugares)
Centro Cultural Banco do Brasil – Rio de Janeiro
Rua Primeiro de Março, 66 – Centro
Telefone: (21) 3808-2020
Funcionamento: quarta a segunda, das 9h às 21h
Ingressos: R$ 4,00 e R$ 2,00 (meia-entrada)
www.bb.com.br/cultura
PROGRAMAÇÃO – NOUVELLE VAGUE TCHECA
*** Todos os filmes serão exibidos em 35mm e são provenientes do acervo da Národní Filmovy Archiv (NFA)
21/5 quarta
15h – Um dia, um gato (Až přijde kocour), de Vojtěch Jasný (Tchecoslováquia, 101’, cor, 1963)
17h – O Choro (Křik), de Jaromil Jireš (Tchecoslováquia, 77’, p&b,
19h – As pequenas margaridas (Sedmikrásky), de Věra Chytilová (Tchecoslováquia, 74’, cor, 1966)
22/5 quinta
15h – Iluminação Íntima (Intimní osvětleni), de Ivan Passer (Tchecoslováquia, 71’, p&b, 1965)
17h – Diamantes da noite (Démanty noci), de Jan Němec (Tchecoslováquia, 64’, p&b, 1964)
19h – Coragem de todo dia (Kazdy den odvahu), de Evald Schorm (Tchecoslováquia, 87’, p&b, 1964)
23/5 sexta
15h – Mártires do amor (Mučedníci lásky), de Jan Němec (Tchecoslováquia, 71’, p&b, 1966)
17h – A Piada (Žert), de Jaromil Jireš (Tchecoslováquia, 77’, p&b, 1968)
19h – Valerie e sua semana de deslumbramentos (Valerie a týden divů) de Jaromil Jireš (Tchecoslováquia, 73’, cor, 1970)
24/5 sábado
16h – O Cremador (Spalovač mrtvol), de Juraj Herz (Tchecoslováquia, 96’, p&b, 1968)
18h – Os amores de uma loira (Lásky jedné plavovlásky), de Miloš Forman (Tchecoslováquia, 85’, p&b, 1965)
20h – Diamantes da noite (Démanty noci), de Jan Němec (Tchecoslováquia, 64’, p&b, 1964)
25/5 domingo
16h – Alguma coisa de outro (O něčem jiném), de Věra Chytilová (Tchecoslováquia, 82’, p&b, 1963)
18h – Fruto do Paraíso (Ovoce stromů rajských jíme), de Věra Chytilová (Tchecoslováquia / Bélgica, 95’, cor, 1969)
20h – A festa e os convidados (O slavnosti a hostech), de Jan Němec (Tchecoslováquia, 68’, p&b, 1966)
26/5 segunda
15h O Choro (Křik), de Jaromil Jireš (Tchecoslováquia, 77’, p&b,
17h–Mártires do amor (Mučedníci lásky), de Jan Němec (Tchecoslováquia, 71’, p&b, 1966)
19h – Debate com os críticos de cinema Leonardo Bomfim e Ruy Gardnier sobre o contexto do cinema moderno dos anos 1960. Mediação da curadoria Gabriela Wondracek Linck
27/05 terça – não há sessões
28/5 quarta
15h – Pedro, o negro (Černý Petr) , de Miloš Forman (Tchecoslováquia, 86’, p&b, 1963)
17h – Os amores de uma loira (Lásky jedné plavovlásky), de Miloš Forman (Tchecoslováquia, 85’, p&b, 1965)
19h – O baile dos bombeiros (Hoří, má panenko), de Miloš Forman (Tchecoslováquia, 71’, cor, 1967)
29/5 quinta
15h –Um verão caprichoso (Rozmarné léto), de Jiří Menzel (Tchecoslováquia, 74’, cor, 1967)
17h – Andorinhas por um fio (Skrivánci na niti), de Jiří Menzel (Tchecoslováquia, 90’, cor, 1969)
19h – O retorno do filho pródigo (Návrat ztraceného syna), de Evald Schorm (Tchecoslováquia, 100’, p&b, 1966)
30/5 sexta
15h – A Piada (Žert), de Jaromil Jireš (Tchecoslováquia, 77’, p&b, 1968)
17h – A festa e os convidados (O slavnosti a hostech), de Jan Němec (Tchecoslováquia, 68’, p&b, 1966)
19h – Fruto do Paraíso (Ovoce stromů rajských jíme), de Věra Chytilová (Tchecoslováquia / Bélgica, 95’, cor, 1969)
31/5 sábado
16h – Iluminação Íntima (Intimní osvětleni), de Ivan Passer (Tchecoslováquia, 71’, p&b, 1965)
18h – Valerie e sua semana de deslumbramentos (Valerie a týden divů) de Jaromil Jireš (Tchecoslováquia, 73’, cor, 1970)
20h – Coragem de todo dia (Kazdy den odvahu), de Evald Schorm (Tchecoslováquia, 87’, p&b, 1964)
1/6 domingo
16h – Trens estreitamente vigiados (Ostre sledované vlaky), de Jiří Menzel (Tchecoslováquia, 92’, p&b, 1966)
18h – O retorno do filho pródigo (Návrat ztraceného syna), de Evald Schorm (Tchecoslováquia, 100’, p&b, 1966)
20h – As pequenas margaridas (Sedmikrásky), de Věra Chytilová (Tchecoslováquia, 74’, cor, 1966)
2/6 segunda
16h – Marketa Lazarová (Marketa Lazarová), de František Vláčil (Tchecoslováquia, 165’, p&b, 1967)
19h30 – Pedro, o negro (Černý Petr) , de Miloš Forman (Tchecoslováquia, 86’, p&b, 1963)
* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul -, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria
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