“É uma história que se passa no começo do século XIX, no interior de Minas Gerais, em uma fazenda decadente por causa do fim do minério de diamantes. Deste cenário, temos os dramas que acontecem em um lugar muito longe de tudo e com diversos sofrimentos, como o da escravidão”. Este é o enredo de “Vazante”, o novo filme de Daniela Thomas que estreia nesta quinta-feira, 9. No longa, que tem uma história real como inspiração, a diretora aborda questões como racismo, feminismo e exploração em um momento delicado. Atualmente, paralela à estreia de Daniela Thomas, o trabalho escravo voltou a ser discutido em Brasília em um dos episódios recentes da política brasileira.
Mas este não é um filme novo no imaginário criativo de Daniela Thomas. Como nos contou na pré-estreia de “Vazante”, que ocorreu esta semana no Rio de Janeiro, o enredo vem sendo amadurecido há 20 anos. “Uma vez eu visitei uma fazenda e fiquei muito impressionada em pensar como poderia ter sido a vida no Brasil nesta época. Para completar, meu pai ainda contou a história do casamento de uma menina de 12 anos com um cara de 50 na nossa família que me deixou assustada. Fora que eu sempre tive a curiosidade de olhar para trás e ver a questão da escravidão, que eu acho que é o nosso grande pecado”, lembrou a diretora que é filha de Ziraldo.
Com o olhar artístico sobre a história de sua família, Daniela lança o filme que traz o casamento de um homem mais velho com uma jovem escrava em uma relação de violência e exploração. Na ficção, a escravidão é um elemento importante para o desenrolar da trama. Não por acaso, desde o começo, a ideia de Daniela Thomas era abordar este episódio da história do Brasil por um viés problemático. E, o panorama que temos hoje, foi uma coincidência oportuna – ou arriscada – para a estreia do longa. “O filme foi lançado em uma época muito acalorada, mas a minha preocupação sempre foi o matiz e a complexidade da questão. Eu não gosto muito dos assuntos claros e definidos”, disse a diretora que completou sobre a questão em seu filme. “A escravidão é uma maldade de Estado. Era uma violência que se manifestava em todas as esferas. A partir do momento que se considera uma pessoa menos valiosa que a outra e isso faz a base da economia do país, estamos de frente de uma perversão. É algo terrível”, completou.
No entanto, como adiantamos, este não é o único tema quente e contemporâneo em “Vazante”. No filme, a partir da relação principal, questões como feminismo e preconceito também ganham destaque na obra. “Esses são os temas que me mobilizam. Porém, este não é um filme com plano de ação político. Para mim, é um longa que pensa político”, analisou a diretora que, sobre suas escolhas para as telonas, defendeu a ideia de liberdade poética. “Eu sou mulher e branca, mas sou artista. E, na minha visão, o artista deve poder usar sua imaginação, inventar e trazer temas para serem discutidos na vida. E essa liberdade de criar é o que eu mais prezo na vida”, completou.
De todo modo, pode ser que a discussão acalorada sobre a escravidão que Daniela Thomas citou seja um ponto positivo para a estreia de “Vazante” no cinema. Para a diretora, ainda não é possível saber se o fato de a escravidão estar nos jornais e nas telonas será uma combinação de sucesso para a arte. “O tempo vai dizer, eu não tenho como prever. O filme ganhou um contorno de evento que é importante para o cinema brasileiro, que, muitas vezes, é tratado no final do caderno de cultura. Eu sinto que cada vez menos somos tratados com um calor diferente”, afirmou Daniela Thomas que não escondeu a preocupação com uma possível repercussão negativa. “Todo embate é dolorido. Fora que isso ainda pode turvar a visão e fazer com que as pessoas assistam apenas como um filme sobre a escravidão e a representatividade do negro hoje. Mas não é. Este é um longa sobre a vida brasileira e o passado. Eu gostaria que o filme fosse tratado como complexo e visto sem nenhum tipo de preconceito. Tomara que eu consiga”, disse.
Disso tudo, o importante é reconhecer que a arte segue à serviço da realidade e, seja no cinema, no teatro ou na literatura, agregar novas opiniões é um ponto necessário em um cenário de tantos debates. E é isso o que Daniela acredita e vem destacando em sua carreira. Além do lançamento de “Vazante” no cinema, a diretora ainda estrou o espetáculo “Selvageria” em São Paulo, no qual assinou o cenário, e uma montagem ao lado de seu pai, Ziraldo, no Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro. No cinema e no teatro, as histórias resgatam o Brasil do passado como forma de entender o país do presente. “O Brasil tem uma espécie de fixação por sua própria identidade. Eu me sinto envolvida por isso também. A gente quer entender o nosso comportamento porque somos um país de muitos contrastes e criatividade. Na minha opinião, nós artistas somos meio obcecados pela cultura brasileira. Não sei se estou exagerando, mas esta é a minha visão”, explicou Daniela Thomas.
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