*Por Lucas Rezende
A TV matou a janela, diria Nelson Rodrigues, mas abriu as portas de uma sala de estar que assiste do sofá retrátil uma linha nada tênue entre o que é opinião – ou a ausência dela – e preconceito. Mas nada que 24 horas full time não permitam separar o joio do trigo. Há quase duas décadas no ar, o “Big Brother Brasil” segue imaculado na liderança de audiência, mas, agora, virou caso de polícia. A Civil fluminense abriu inquérito na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância ( Decradi) por supostos casos de racismo praticados no reality show.
Caucasiana, loura e de olhos claros, Paula contou a dois colegas que tem medo de Rodrigo – competidor negro de dreadlocks – por ele ter contato “com esse negócio de Oxum”. A também branca Hariany chegou a alertar a amiga de que aquela poderia ser uma conversa tingida pelo preconceito, mas não adiantou: “Mas eu não sou não”. E completou: “Nosso Deus é maior”. Maior e reincidente. Para Paula, humor negro “é você pegar uma pessoa negra e começar a fazer piadinhas contra ela”. Como pouca ajuda é bobagem, Paula mais uma vez foi alertada por Gabriela, uma negra: “Você entende como a palavra negra sempre entra em um lugar ruim? Não tem humor branco, entendeu?”. Paula insiste no discurso: “É porque é uma piada ruim que não deveria ser dita. Quando a gente pesquisa humor negro no Google, tem um monte de piada racista. Não sei o que seria humor negro para vocês”.
Paula também é boa em misturar feminicídio com discursos tortos. Ao contar a história de uma conhecida que tinha levado facadas de seu parceiro , ela se saiu assim: “Ela levou umas 34 facas, mas ela achou que tinha levado três, porque ela levou e desmaiou. Só sentiu um molhado nas costas. Ele achou que ela tinha traído ele. Ela cheia de vergão, e era aquela faca de pão. E aí eu pensei que ia chegar mó faveladão lá (no tribunal), e quando eu vi o cara era branquinho, morou não sei quanto tempo na Austrália ou no Canadá, não sei”. O branco Diego, então, arrematou: “O cara era louco mesmo, então”.
Maycon, também no confinamento, não deixou por menos. Ao assistir Rodrigo e Gabriela dançando numa festa, disse que sentiu um arrepio enquanto ouvia “músicas esquisitas”: “Olhei para os dois, num sincronismo legal. Achei legal, juro por Deus. De repente, comecei a olhar e escutar uns negócios. ‘Não faça igual a eles’. Aí veio Jesus Cristo em minha mente. ‘Não para aqui. Para a vida inteira. Se fizer igual a eles, eles ganharão mais força’. Eu não sou doido”.
A Decradi não informa quem são os participantes envolvidos no inquérito, uma vez que as investigações seguem sob sigilo. A edição do Big Brother, no entanto, nos entrega o retrato de um Brasil muito bem recortado. No país em que a taxa de homicídios de negros cresceu 23% em 10 anos, em que 71% das negras são mais mortas que brancas e que há uma denúncia de intolerância religiosa a cada 15 horas, esse é o enredo da casa mais vigiada: candomblecista causa medo, Jesus faz alertas contra danças africanas e a negritude na nossa semântica é pura…colocação. O programa que fiscaliza provas de resistência com esmero e aplica punições por causa de uma goiabada, no entanto, se limita ao papel de reprodutor diante desse espetáculo tão brasileiro.
Até porque você pode titubear no discurso, desde que se junte aos bons. A irmã de Paula defende que “ela não é preconceituosa”, porque”já teve dois namorados negros.” Pode ser só opinião. Pode ser só ingenuidade. Pode ser só uma interpretação curva de uma fala jogada ao vento. E pode ser crime. Pode ser ódio à pele escura. Enquanto os inquéritos não deixam a chefatura de polícia, ficamos como começamos, lembrando de Nelson: “É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda. O ser humano só se salvará se, ao passar a mão no rosto, reconhecer a própria hediondez.”
E, na busca por um milhão, não se salvarão caindo no esgoto do próprio discurso. Há faces que são apenas hediondas, grande irmão.
Artigos relacionados