* Por Carlos Lima Costa
Sem contrato com a Globo desde abril, Nelson Freitas, mesmo com a pandemia da Covid-19, não ficou em casa de pernas para o ar vendo os dias passarem. No decorrer de 2020, participou de vários trabalhos, como I’m Sorry Honey. O curta-metragem que, em novembro, concorreu a quatro categorias (Drama, Making Of, Sound Design e Voto Popular) em uma das maiores competições de curta-metragem do mundo, My Rode Reel, da Austrália, foi uma experiência catártica por tê-lo remetido a dois momentos difíceis da vida particular: a morte do irmão, Régis, em 2012, vítima de um câncer e a violência doméstica vivenciada na infância.
O projeto lhe foi apresentado pelo filho de Régis, seu sobrinho Gabriel Freitas, que tem empresa de produção de conteúdo audiovisual. “Difícil lidar com a morte. Naquele momento, o mundo acabou pra mim, metade da minha vida e da minha história foi embora com ele, sabe? Fomos juntos para o Colégio Militar, eu com 13, ele com 11. Depois, fomos para a Marinha Mercante, tínhamos uma ligação muito forte”, pontua o ator de 58 anos.
Quando Gabriel lhe disse que a história era sobre violência doméstica, de imediato abraçou a causa e chamou a amiga e atriz Suzy Rêgo para contracenar com ele, que interpretou o alcoólatra e agressor Rick. “Foi feito em inglês, pensei que se conseguíssemos alguma expressão poderíamos chamar atenção para este tema. Quando me envolvi, procurei institutos, como o Fala Mulher, que cuidam dessa causa e vi que durante o confinamento houve um aumento de 80% de casos registrados de violência doméstica. Esta questão precisa ser vista pelas autoridades. A mulher que sofre tem vergonha, medo de se colocar. Existe necessidade de se criar um programa de assistência para as mulheres e para os homens, os vetores dessa violência. Esses caras precisam de apoio psicológico para não chegarem mais nesse gatilho, nessas agressões verbais e físicas”, argumenta.
Este processo lhe trouxe lembranças difíceis, mais uma vez ajudando a exorcizar fantasmas, porque Nelson conheceu esta realidade de perto. “Tive infância difícil, conturbada, meu pai era alcoólatra, era complicado a convivência com minha mãe, que foi uma guerreira. Na separação deles foi uma briga homérica de agressão física e eu, enfim, recolhi meus irmãos, Régis e Fábio, para o quarto. Eu era o mais velho, tinha sete anos, então, foi um processo complicado pra gente viver. Outros trabalhos também me remeteram a essa circunstância e me ajudaram a bater de frente de novo com Nelson, meu pai, que morreu quando eu tinha 15 anos. Sempre um processo doloroso”.
Na novela O Tempo Não Para, ele interpretou um pai ausente do personagem do Nicolas Prattes. “Em vários momentos tive resgate dessa fase da vida. Terminava a gravação e ia aos prantos, até o carro no estacionamento por estar vivendo o lado contrário do que vivi quando criança”, desabafa.
Nelson tem certeza de que essa história influenciou no fato dele nunca ter desejado ser pai. “É inevitável que as crianças fiquem achando que a separação dos pais é responsabilidade delas. Isso, com certeza, é um dos temas que eu sempre tratei na análise. Minha vida inteira eu fiz análise. Não conseguiria chegar aonde cheguei se não tivesse o suporte dela”, acrescenta.
Mas há 20 anos, quando se uniu à procuradora da República Maria Cristina Cordeiro, abraçou as filhas dela, Gabriela, 38 anos, Maria Paula, 30, e posteriormente o neto, Felipe, 16, herdeiro da mais velha, como sendo seus também. “Devo isso ao cosmos. Eu fui criado por um padrasto, pai do meu irmão mais novo, o Guilherme. Era um nissei, o Akira Matsutani, o último dos samurais (risos). Ele foi meu grande herói. Casou com minha mãe com três filhos pequenos, abandonou a faculdade de arquitetura para cuidar da gente. Ele morreu em 1997, em um acidente de carro. Não era pai biológico, mas nos criou e nos salvou. Eu não queria ter filhos. Falo com segurança que não me arrependo, não ficou um vazio. Mas quando casei, abracei o pacote e falei vamos embora. Apesar de não ter filhos biológicos, sou pai das meninas e avô do Felipe, que me completam como homem e ser humano. Quando ele começou a falar e gritava avô, avô, nossa era uma emoção”, reflete.
Ao lado da mulher, Nelson compartilhou a quarentena. “Completamos duas décadas juntos este ano. Foi e é uma delícia. Com ela, vivi momentos únicos nessa pandemia”, assegura. E relembra a perda do vínculo empregatício com a Globo, em abril de 2020. Ele não foi surpreendido. Desde novembro do ano anterior, sabia que não haveria renovação. “Do jeito que as coisas estão, o mundo corporativo é complicado. Não tenho mágoa, pelo contrário. Com tantas transformações acontecendo, não estar preso a um contrato me favorece. O que adianta ficar lá contratado sem trabalhar? O mundo está aberto, os streamings estão produzindo muito conteúdo”, aponta.
Por isso mesmo, não sentiu medo com relação ao futuro. “Se quisesse ter segurança na vida dificilmente teria escolhido a carreira de ator. As únicas certezas que você tem nessa profissão são a instabilidade financeira e emocional. O fato de estar contratado é tudo temporário. Tive a graça de permanecer esse tempo longo. Mas vivi época de contratos por obra certa”, lembra. Além da Globo, atuou também na Manchete e no SBT, onde participou respectivamente das novelas Tocaia Grande e Chiquititas. “São 35 anos de carreira. Então, nessa fase, como todo mundo, ía fazer teatro, cinema, show, evento corporativo, eu me virava”, ressalta.
Quase toda sua permanência como contratado foi dedicada ao humorístico Zorra Total. Foram 15 anos, ficando ainda outros dois depois que o programa passou a se chamar apenas Zorra. E reconhece que o tipo de humor que se fazia no início, assim como em antigos humorísticos como Viva o Gordo e Os Trapalhões não cabe mais nos dias atuais. “A palavra de ordem no planeta é transformação, mas sobretudo adaptação. Hoje, é ofensivo falar sobre xenofobia, brincar com o chinês, com o preto, a mulher, o gay. O que naquela época não era. Será que ainda funciona o humor de bordão? Acho que sim. Mas não com os mesmos critérios. Temos que passar por isso para mais na frente chegar a um equilíbrio. Nos shows que fiz nunca topei fazer piada racista. Lembro que o Chico Anysio (1931-2012), meu maior ídolo, com quem tive oportunidade única de trabalhar e de ser amigo, me falava ‘nunca faça número de plateia, que o público não vai ao teatro para ser sacaneado’. Ele sempre prezou pela elegância. E eu sigo isso”, garante.
Nelson não se abstém de falar sobre a denúncia de assédio envolvendo Marcius Melhem. Mas explica que já não estava no Zorra, quando ele se tornou Coordenador do Departamento de Humor da TV Globo. “Soube das fofocas pela rádio corredor, que ele havia sido deselegante com a Dani (Calabresa), mas vim saber de detalhes pelas matérias que foram publicadas pela mídia. Não posso fazer julgamento, porque não acompanhei a circunstância para ter uma opinião formada. Mas claro que este é um tipo de situação que não pode existir, principalmente vindo de um colega”, observa.
Seus últimos dois anos na Globo foram longe da linha de humor. Algo que ele buscou ao pensar que poderia ter uma dificuldade para retornar a área dramática por ter seu nome muito vinculado à comédia. “Sem dúvida esse foi um dos motivos que me fez resolver dar um tempo do humor. Agora, me afastar foi uma decisão difícil, pois o Zorra estava vivendo momento de glória, tinha concorrido ao Emmy Internacional. Mas tive que dar essa guinada na minha história. Quando saí, meu primeiro trabalho foi a peça Uísque Com Água, livre adaptação do último livro do Charles Bukowski (1920-1994), com parte densa, no qual interpretei um alcoólatra. Um dos trabalhos que também me remeteu à infância”, ressalta.
Quando a pandemia chegou, ele respeitou a quarentena no que se refere à vida pessoal. “Se não for por motivo profissional, eu não saio, não vou a restaurante, não recebo ninguém, não faço festa”, conta. Mas nessa fase, trabalhou muito. “Viajei, corri riscos, mas sempre me protegendo, fazendo testes e não tive Covid-19. Mas me doeu e confesso que ainda não me recuperei da perda dos meus amigos Eduardo Galvão (1962-2020) e Gésio Amadeu (1947-2020)”, lamenta.
Logo no início da pandemia, ele foi convidado para fazer lives e sempre usava como carta na manga quadros do espetáculo Nelson Freitas e Você, que foi dirigido por Chico Anysio. “Quando entendi o tamanho da encrenca resolvi relaxar e viver o que tinha para viver. Uma das filhas casou tem dois anos, aí no quarto dela eu tinha montado um estúdio para trabalhar. Minha mulher também não parou. Por não ter o conforto do contrato, tenho que fazer algo para manter a cabeça ativa, comecei a fazer lives e abri um canal no YouTube”, explica. Assim, toda quinta, às 19h, em seu canal, canta um clássico e conta algo sobre a música.
Nesta próxima quinta, dia 14, ele vai interpretar Codinome Beija-Flor, sucesso de Cazuza (1958-1990). “Sempre tive uma história mal resolvida com a música. Quando larguei a Marinha Mercante, eu queria ser cantor, tive banda da escola de formação de oficiais, imitava Belchior (1946-2017 ), Elvis Presley (1935 – 1977). Acabei virando ator, mas fiz 18 musicais com diretores como Wolf Maya, Jorge Fernando (1955- 2019), Cininha de Paula, Flávio Marinho, e, no último fui dirigido pelo Daniel Filho, uma adaptação do filme Se Eu Fosse Você. Sempre tive isso recolhido. Coloco isso mais nos musicais”, diz. Ele mostrou esta vertente também no Show dos Famosos, quadro do Domingão do Faustão, em 2017, onde imitou artistas como Alejandro Sanz, Cauby Peixoto (1931-2016) e Tina Turner.
Entre seus trabalhos recentes estão o longa-metragem Tração, de André Luiz Camargo, que ainda está sendo realizado, o projeto multimídia Humanidade Embaralha e Dá de Novo, que conta com podcast, documentário, espetáculo teatral. “O primeiro que vai sair é o podcast, estou muito motivado com isso”, diz. Está finalizando ainda o filme Nina, de Samuel Machado, tem o longa A Parada, da Globo Filmes, dirigido por José Lavigne, em fase de pré-produção, e a série educativa Télos. “Na segunda temporada sobre empreendedorismo, vou protagonizar, vamos abordar matérias que não têm na escola, como saber como empreender, o que é ativo, passivo.”
E finaliza realçando um projeto de vida relacionado ao país onde moram a filha Gabriela e o neto, Felipe. “Eu e minha mulher temos essa meta há anos. Temos ido à Austrália, já tenho apartamento e casa lá, gostaria de passar meus últimos dias ali. É um país maravilhoso, tropical, de primeiro mundo. Tem população afável, agradável que respeita as leis. O fato de ter terminado meu contrato com a Globo foi importante e libertador para isso. Está difícil viver no Brasil, que tem uma postura social complicada de levar vantagem em tudo. Não tem respeito com regras e leis e esse exemplo vem de cima, dos nossos governantes. Não quero dizer que por essa inconformidade vou virar as costas para o meu país, para quem admira o meu trabalho, para os meus colegas e outros projetos que surjam aqui”.
Artigos relacionados