* Por Carlos Lima Costa
Na última quinta-feira, quando celebrou 92 anos de idade, Nathalia Timberg, uma das maiores atrizes desse país, recebeu inúmeras manifestações de carinho nas redes sociais. Sem uma festa à altura por conta da pandemia, ela passou recolhida em sua casa, mas ocupada. “Além da quarentena continuar, não tenho o hábito de programar festejos nessa data. Mas passei o dia inteiro no celular, não sei como a orelha não caiu, fui dormir às três horas da manhã. Foi uma avalanche de carinho, ainda mais em uma época em que estamos sem ter os encontros que normalmente a vida nos leva a ter de trabalho, amigos que vamos semeando ao longo da nossa trajetória. É engraçado, são famílias que se formam e se desmancham nos espetáculos, mas deixam raízes. Então, me comoveu muito ver essa família toda pujante se manifestando. Foi emocionante perceber esse carinho e atenção que recebi dos meus pares”, reflete.
Enquanto aguarda o fim da pandemia, conta que se sente plena para retomar a antiga rotina de trabalho assim que for possível. “Estou igual como estava me sentindo aos 91 e como devo me sentir aos 93 que vem vindo aí”, diz ela, que fará uma live comemorativa pelo aniversário, em 26 de setembro, com a apresentação do espetáculo Através da Iris, que vai poder ser conferida no canal do YouTube do Theatro Municipal de Niterói. A estrela estava em cartaz com esta peça quando a pandemia interrompeu todos os projetos artísticos. “Por enquanto, ainda me sinto com fôlego para seguir mais por esse meu caminho. Vamos ver até onde eu vou. Minha família tem ramos longevos. Mas tomara que não tenham que me aguentar quando eu já não estiver batendo bem, porque aí eu não vou gostar”, observa.
Por conta de seu estilo de vida, se adaptar ao isolamento social não foi complicado para Nathalia. “De todas as pessoas da família a menos sociável fui eu. Gosto de ficar quieta, por isso acho que estou me adaptando bem”, pondera ela, que nasceu em 1929, 11 anos após outra grave crise sanitária que assolou o mundo, a gripe espanhola. “Esse tipo de consciência veio um pouquinho mais madura, quando fui estudar esses assuntos na aula de história. Acho que a covid veio de uma forma muito violenta para dar uma boa sacudida na consciência do homem. Tenho um amigo médico que me diz que ‘nós não vamos morrer na praia. Vamos segurar a nossa ansiedade, segurar as medidas até quando for declarada realmente resolvida a pandemia e ainda saber que seríamos um pouco responsáveis pelas sequelas se começarmos a fazer muitas bobagens’. Ela deve dar uma consciência ao planeta da nossa ainda fragilidade diante desse tipo e de outros tipos, porque além dessas tragédias sanitárias, temos outras bélicas que são tão danosas quanto, então, ter o saneamento físico e mental vai ser uma grande conquista se conseguirmos”, avalia.
Nathalia tem passado a pandemia na companhia de uma funcionária que está com ela há quase 40 anos e que para ela já virou da família. Através do celular vai mantendo contato com o mundo externo. Mas não é tão antenada com toda tecnologia de um smartphone. “Fui instruída e sei dele o suficiente para utilizá-lo. Não sou apaixonada para ir descobrindo todas as suas possibilidades. As minhas de comunicação como estamos tendo agora são mais do que suficientes.” Por sugestão do produtor tem um Instagram. “Evidentemente instalei, mas não passo o meu dia com esse aparelho na mão. Realmente, serve para eu me comunicar, às vezes, mas não sou expert para ficar mexendo nisso. Preciso de reciclagem nesse sentido, quando tudo liberar vou voltar a minha humildade de aluna. Mas não quero me tornar adicta. Existe esse fator bem perigoso que é o viciante. Tem pessoas que não vivem sem isso na mão. E não pode. Acaba até limitando seu pensamento em vez de ajudar a expandir”, ressalta.
Ao longo desse longo isolamento social, Nathalia perdeu as amigas e colegas de profissão Nicette Bruno (1933-2020), Eva Wilma (1933-2021) e Camila Amado (1938-2021), que estiveram em sua festa de 90 anos. “Nem fala, a dificuldade de perder entes queridos, porque é aí na arte que se forma a família do ator, porque esse saltimbanco não tem tempo de cultivar outra. São famílias que se formam e que não nos abandonam mais, mesmo após o fim previsível de uma temporada teatral, por exemplo. Como você lida com a perda de uma pessoa, de um amigo, que é um irmão de escolha? As perdas são muito difíceis. Você imagina o que é pra mim aos 92 anos percorrer a minha agenda”, pondera.
Sem poder exercer a profissão na plenitude como era habitual, Nathalia além de assistir mais televisão, vem escutando música e lendo com maior frequência. “Agora, tenho espetáculos que tem que ser mantidos apesar de tudo, preciso reencontrá-los em um nível, no estágio que estavam quando foram interrompidos. O próximo trabalho que eu devo fazer no ano que vem, o Três Mulheres Altas, vamos começar os ensaios, é uma obra difícil, o (Edward) Albee (1928-2016) é muito interessante. Então, estou me preparando para essa volta”, explica.
E se posiciona sobre a fase não só da cultura, mas do país. “É um momento difícil em que todos nós temos que reavaliar o que se pode fazer para reencontrar uma normalidade civilizada aqui dentro.” Recentemente, o Brasil se surpreendeu com o incêndio na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. “Eu só lamento que isso afetou a muitos, mas a maioria só no discurso, porque é uma coisa de manchetes, porque a pouca gente interessa a Cinemateca, a pouca gente interessa o Museu Nacional, no Rio, que também foi destruidíssimo (em um incêndio, em 2018) e pouco se faz. Quando está em manchete você não leva em consideração, porque são todos meros discursos. Eu quero ver na prática”, observa.
Nathalia atravessou muitos momentos políticos no Brasil, como a ditadura militar. E explica como encara o momento retrógado que o país atravessa. “Há muito tempo eu me queixo que se tem feito tábua rasa da formação do brasileiro e evidentemente que dessa formação tão falha nasce esse chão instável que passa a ser muito fácil para ser levado por toda espécie de demagogia, porque o cérebro não está suficientemente exercitado para ter uma visão sólida do que seja a sua vida, o seu presente, a vida de um país, as possibilidades e os perigos constantes que nós estamos correndo atualmente por uma espécie do mau uso. Pra mim, antes de se candidatar a qualquer cargo, inclusive de condução do país, todo homem público devia ser obrigado a fazer um vestibular para mostrar se ele sabe o que está fazendo e o que se espera dele. Enquanto estivermos podendo ser arrastados por demagogias de todo tipo, de quem não tem consciência da sua responsabilidade como ser humano, aí vai ser complicado. Vamos ver se nós conseguimos um dia desses amadurecer pelo menos ao mínimo necessário para que esse ar se torne respirável”, reflete.
Percebe alguma luz no fim do túnel? “Apesar de acharem que os atores são saltimbancos, eu não tenho bola de cristal. Eu não tive filhos, mas somos gerações que deixamos descendência de pensamento, de conhecimento e quando vemos que isto está tendo um caminho de restrição em vez de desenvolvimento isso se torna muito assustador. Não é que você queira doutrinar A, B ou C. Agora, o conhecimento é fundamental para você poder ter uma visão clara”, explica Nathalia, cuja mais recente novela de que participou A Dona do Pedaço, na Globo, foi exibida até novembro de 2019. Ela ainda não tem um retorno previsto para à TV. “Nesse momento que estamos no entreato, podemos justamente aproveitar esse tempo esvaziado das nossas atividades normais, para preencher de uma forma mais útil possível para que tenhamos força para sair fora disso mais fortes”, frisa.
Nathalia analisa também preconceitos latentes no Brasil como o racismo e contra os homossexuais. “Enquanto nós tivermos um nível de desenvolvimento questionável tudo isso vai continuar presente, mas você tem países mais desenvolvidos e tem coisas que são inerentes ao ser humano, infelizmente. Eu digo sempre que quando o padre eterno inventou esse bicho que nós somos, ele veio com defeito de fábrica, pois vemos o preconceito ser ainda muito forte na humanidade, seja racial, religioso…Desde pequena, desde a primeira impressão de que fosse isso eu sou revoltada contra isso. Jamais consegui entender esse posicionamento. Não posso entender que seres inteligentes e principalmente que se dizem, às vezes, respeitadores, de seitas, de religiões, e seja o que for possam viver esse tipo de problema, porque eles próprios negam o que eles querem pregar. Se você quer pregar que o ser humano é uma criação divina. Se ele criou o ser humano, ou ele criou a todos ou não criou nenhum”, avalia.
A extensa carreira teve início no filme O Grito da Mocidade, de Raul Roulien (1905-2000), em 1937. “Foi minha primeira experiência, foi aí que eu fui inoculada. Meus pais tinham um grande amigo, que depois continuou comigo, com quem fiz todo teatro infantil com ele, o Olavo de Barros que me levou para o filme, pois conhecia o Julien. E meus pais com raízes europeias não viam nenhum desdouro em eu estar pisando nesse terreno tão estranho para as pessoas na época. O teatro, que propriamente dito, veio depois. Eu comecei com o cinema. Quando fizemos viagem à Europa para visitar a família, o filme queimou, e foi refeito sem a minha augusta presença”, lembra.
A carreira vitoriosa de Nathalia, que estreou na TV, em 1956, na extinta Tupi, inclui novelas como O Direito de Nascer, A Rainha Louca, A Muralha, Sangue do Meu Sangue, Escalada, A Sucessora, Ti Ti Ti, Vale Tudo, Pantanal, Éramos Seis, Celebridade, Amor À Vida, Babilônia e O Outro Lado do Paraíso. Não consegue destacar seus maiores trabalhos. “Pra mim, a coisa mais difícil é falar disso, porque todos eles, do maior sucesso ao maior desastre, tem algo muito positivo na sua construção, principalmente nos que não deram certo, então, é uma pergunta da qual eu sempre fujo. Eu acho que tudo que a gente faz, faz parte dessa construção”, pondera ela, que conquistou seu primeiro Prêmio Molière por seu desempenho na peça Meu Querido Mentiroso, em 1965.
E acrescenta uma avaliação da trajetória. “Eu sei que foi a minha maneira de estar por aqui no mundo, que eu sinto que eu dediquei tudo que me veio, impulso de vida por percorrer esse caminho, que eu não sei se escolhi, se foi escolhido pela vida que eu vim desenvolvendo desde cedo com meus pais que gostavam de música, de arte de um modo geral e que não me impediram quando eu fiz a minha opção, quando estava ainda na escola de Belas Artes. Apoio esse que recebi em uma época que não era tão comum dar aos filhos”, realça.
Nathalia teve uma vida muito dedicada à profissão. Ela não teve filhos. “Mesmo com todas as experiências humanas que eu tive em termos de vida, de família, de tudo que seja, não me tirariam dessa estrada que foi se pavimentando pra mim. Acho que você constrói porque quando é uma vocação, escolha que vem da infância é um caminho que vai se construindo a medida que você toma consciência dele. Durante muito tempo oscilei pela Medicina, inclusive, pelas Artes Plásticas, a escola de Belas Artes, tive grupo de infância de teatro infantil com o Olavo de Barros. Depois, então, na Universidade eu conheci o Teatro Universitário que foi o meu nicho enquanto eu preenchi bolsa de estudo de teatro e fui embora, não queria começar a minha vida profissional sem pavimentá-la melhor, queria ter mais embasamento para fazer isso”, lembra sem arrependimento de ter se dedicado mais a vida profissional.
E prossegue: “Quando você quer fazer teatro ou algo na área, pelo menos naquele século passado de onde eu venho, porque estou quase centenária, a minha questão não era aparecer nem ter tal lugar no panorama da atividade. Pra mim, era fazer teatro. Pedi uma bolsa de estudo e fui estudar na Europa, porque queria me dedicar a isso, eu não queria começar a trabalhar sem ter qualquer formação. E eu dizia “eu faço teatro apesar de ter que me expor, não por ter que me expor’. Isso esclarece bem o tom do caminho que eu fiz, porque tem gente que quando me procura e pergunta como pode entrar pra Globo, eu digo, antes de mais nada vai aprender a desfilar, porque o interesse é outro, é a exposição. Eu não, fui embora porque queria ter uma base melhor. Aqui podia acabar envolvida por essa coisa e eu não queria”, lembra Nathalia, que no início dos anos 50, ao ganhar bolsa de estudos do governo da França, estudou com nomes como Jean-Louis Barrault (1910-1994) e Étienne Decroux (1898-1991) no curso de formação Education Par Les Jeux Dramatiques.
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