* Por Flávio Di Cola, direto de Veneza
A importância de Pier Paolo Pasolini para o mundo das artes e do pensamento contemporâneos é indiscutível, até mesmo para aqueles que o odiavam ou que simplesmente não toleravam a estranheza e a virulência das suas criações nos campos da poesia, do jornalismo, da filosofia, da literatura, da dramaturgia, do cinema, da pintura e da política. Tanto que ele foi sistemática e violentamente combatido por todo o espectro político-social italiano e mundial, passando uma boa parte da sua vida ativa dentro dos tribunais ou respondendo a enxurradas de ataques através de artigos tão brilhantes como penetrantes. Seu assassinato, ocorrido em circunstâncias especialmente trágicas há quase 40 anos atrás – e, para alguns, previsíveis – foi o episódio que faltava para cristalizar a sua imagem de artista maldito, iconoclasta, genial, inconformado, originalíssimo e – talvez – como o mais raro exemplo de figura pública independente e avessa a concessões.
Pois bem, era esse o material explosivo de que o roteirista Maurizio Braucci dispunha para chegar àquela fatídica praia romana no dia 2 de novembro de 1975 em que o cineasta foi quase esquartejado por um grupo de jovens marginais homofóbicos e, entre eles, o ragazzo di vita (michê) Giuseppe Pelosi, com apenas 17 anos, pego por Pasolini alguns momentos antes num barzinho de prostitutos e com quem ainda jantou numa osteria próxima a Óstia. Preso e condenado, Giuseppe voltaria às manchetes 29 anos depois para afirmar a sua inocência e inflamar as suspeitas de um complô político cujo objetivo era calar para sempre a voz cortante e inconformada do temido polemista.
Afinal, a versão dos fatos adotada por Abel Ferrara sobre a última noite de Pasolini parece devidamente amparada pelas participações no filme do diretor americano de amigos e colaboradores íntimos de longa data de Pier Paolo, como Ninetto Davoli e Adriana Asti. O primeiro foi um dos seus amores e figurinha carimbada em onze dos títulos que compõem a filmografia de Pasolini, como os picarescos “Gaviões e passarinhos” (Ucellacci e uccellini, 1966) ou “Decamerão” (Il Decamerone, 1971). Já a respeitada atriz de teatro e cinema Adriana Asti conhecia o cineasta desde os tempos em que era mulher de Bernardo Bertolucci de quem Pasolini foi – de certa forma –mentor. Asti no papel da adorada mãe de Pier Paolo – com quem este morava num amplo apartamento em Roma depois de uma vida conjunta de fugas e mudanças dramáticas desde a Segunda Guerra Mundial – abre e encerra o filme, conferindo à obra de Ferrara uma belíssima, embora rara, dimensão emocional, principalmente através de alguns magníficos close ups do olhar quente e úmido com que Adriana expressa a ternura indizível que unia mãe e filho.
Mas o problema do esperado filme de Abel Ferrara – tido, inicialmente, como um forte candidato ao Leão de Ouro e exibido ontem em première na Grande Sala do Palazzo Del Cinema completamente lotada – não foi ter se desviado das versões controvertidas acerca da morte de Pasolini ao reconstituir com competente sobriedade o relato mais aceito desses últimos minutos. O fator que realmente comprometeu o ritmo e a força esperada de um filme que tinha em mãos poderosos elementos biográficos foi exatamente o tributo que Braucci e Ferrara acharam necessário prestar à criatividade inesgotável de Pasolini que, no dia anterior à sua morte, retornava de uma curta viagem a Estocolmo para a rotina pesada de entrevistas a revistas ávidas por suas “profecias” ao mesmo tempo iluminadas e pessimistas sobre os rumos da civilização tecno-industrial. De fato, ao voltar da Suécia, Pasolini retomou imediatamente à composição do seu “grande romance” político “Petróleo”, sobre as maquinações por trás da indústria de energia da Itália, e o roteiro do que seria o seu próximo filme, o alegórico “Porno-Teo-Kolossal”.
A dupla Braucci-Ferrara achou, então, que seria uma boa idéia “recriar” literalmente – no lugar do próprio Pasolini – as imagens dessas duas obras inacabadas para escapar das contingências e das armadilhas típicas dos relatos biográficos, principalmente dentro dos limites de extensão de um filme de 87 minutos. O resultado é uma obra que fica no meio do caminho, entre uma biografia convencional situada no seu contexto histórico –em que foram reconstituídos minuciosamente não só a “aparência” dos anos 1970, mas também a própria figura física de Pier Paolo Pasolini, num dos casos mais bem-sucedidos de escolha de um ator pelo seu physique de rôle do cinema recente – e uma viagem perigosamente especulativa e desnecessária sobre aquilo que Pasolini teria criado caso tivesse sobrevivido àquela noite para nos legar, em definitivo, um novo romance e filme cujas gestações foram brutalmente interrompidas, exatamente no ápice da histeria mundial devido ao lançamento do escandaloso “Saló ou os 120 dias de Gomorra” (Salò o le 120 giornate di Sodoma, 1975).
A presença de “Pasolini” já no final da Mostra competitiva de Veneza é muito bem-vinda, pois restabelece a ponte do festival com esse cineasta cuja obra tão visionária e atemporal também marcou a turbulenta edição de 1968, ano-símbolo da década que mudou tudo e também quando foi apresentado “Teorema”, hoje um cult absoluto que provocou mais um dos terremotos morais e estéticos tipicamente pasolinianos. Durante a curta entrevista coletiva concedida à imprensa mundial que se estapeava diante dos criadores principais de “Pasolini”, Abel Ferrara afirmou que se Pier Paolo estivesse vivo hoje, aos 92 anos, ainda estaria filmando e expressando o seu inconformismo com veemência redobrada, considerando o desolador panorama atual do mundo. Uma hipótese que não deixa de ser plausível, uma vez que o centenário diretor português Manoel de Oliveira continua ativo até hoje e lançando praticamente um título a cada ano.
O filme de Abel Ferrara fez questão de frisar duas vezes uma das colocações mais contundentes de Pasolini – aprofundada em vários dos seus escritos que mesclavam engenhosamente arte e política – sobre a degradação da cultura em geral: “A arte narrativa está morta e estamos em luto”. O pensador e o artista, de fato, preconizaram com profundo pesar o óbito de uma das conquistas mais finas e belas do gênero humano – o senso de fabuloso que animava a narratividade dos nossos ancestrais, substituídos, hoje, por uma enxurrada de hiperestímulos primários que só rebaixam a condição humana. O frescor de filmes como “Os contos de Canterbury” (I racconti di Canterbury,1972) e “Os contos de Mil e uma Noites” (Il fiore delle Mille e una Notte, 1974) permanecem como um tributo eterno do tremendo apego de Pasolini à idéia sensualista da vida transformada em arte, o que só seria possível com um retorno a valores cultivados pela humanidade em eras pré-industriais. Bem, isto basta para justificar a sua advertência e compreendermos por que “estamos todos em perigo”.
Trailer oficial do filme (Divulgação)
*Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul -, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria
Artigos relacionados