*Com Thaissa Barzellai
Arretada. Imprevisível. Impenetrável. Independente. Esses são alguns dos adjetivos que, à primeira vista, o espectador pode relacionar ao conhecer Domingas, personagem de Sonia Braga no novo trabalho da atriz com os diretores Kleber Mendonça e Juliano Dornelles no longa-metragem “Bacurau”. Vencedora do Prêmio do Júri no Festival de Cannes, a obra traz a atriz completamente entregue à história do interior nordestino no qual moradores são retirados do mapa e ameaçados por uma onda de assassinatos misteriosos, resultando numa necessidade de reencontro cultural e de resistência.
Reconhecida e, acima de tudo, celebrada pelos papéis complexos e intensos, Sonia manteve a tradição de levar a irreverência dos personagens escolhidos na pele de Domingas. E ainda bem, pois como uma médica sem papas na língua e medo do perigo, a personagem é a representação da força da mulher nordestina que, diariamente, vai à luta a fim de manter o mínimo de ordem social. “Domingas é uma mulher da terra. Ela é daquele lugar e tem uma força e dor imensa de perder tudo o que conhece”, reflete.
Foi exatamente essa complexidade, oriunda dos feitos do passado e da relação da personagem com a região de Bacurau – tão sofrida pela ausência de direitos básicos e potente pela presença singular das características que transformam corpo e alma de quem ali vive – que fez com que Sonia conseguisse se conectar com a essência de tudo. Atriz de direção e de imersão, Sonia Braga ama o que faz e mergulha de corpo e alma em cada personagem. “Domingas está inserida na história de uma forma muito abrangente”, afirma a atriz.
Na pele dessa mulher arretada, Sonia conseguiu colocar os holofotes sobre as mazelas da sociedade. Pautas como luta contra estigmas da mulher, resgate histórico e cultural de uma região e tantas outras questões contemporâneas da sociedade, influenciadas pelos efeitos sociopolíticos em grupos de minorias, são algumas das temáticas que contemplam o roteiro. Durante nossa conversa com a atriz na Serra Gaúcha um dia após a exibição do longa-metragem no Festival de Cinema de Gramado, ela lembrou que, desde a infância, já se via admirada pelo outro e pelas diferenças positivas que cada um agregava em sua vida. “Eu cresci gostando muito de gente, independente de onde elas eram. Quase ninguém acredita nisso, mas quando eu me mudei para os Estados Unidos foi porque eu queria aprender a falar inglês e a me comunicar com as pessoas. Queria absorver toda a cultura não para copiar, mas para pertencer, viver o momento com todas as pessoas”, relembra.
Com mais de 40 anos de carreira, cujo trajetória traz diversos e importantes títulos do nosso cinema – como “Tieta” (Cacá Diegues), “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (Bruno Barreto), “O Beijo da Mulher-Aranha” (Hector Babenco) e “Gabriela, Cravo e Canela” (Bruno Barreto), os sentimentos de justiça, representatividade e pertencimento só se intensificaram, transformando-se em uma das principais facetas da sua trajetória artística no Brasil e no exterior. Foi exatamente essa chance de mais uma vez mostrar que tem voz para causas muito importantes que a fez dizer ‘sim’ quando recebeu o convite para atuar em “Bacurau” e para a oportunidade de filmar no sertão do Brasil. A decisão de integrar esse projeto ganha ainda mais força quando descobrimos para quem e pensando em quem Sonia vestiu a camisa de Domingas. “Eu dediquei esse projeto para Marielle e eu quero saber quem matou Marielle”, declara.
Para Sonia, depois de assistir ao filme pela primeira vez na tela grande do Palácio dos Festivais, em Gramado, a trama dialogo com o contexto atual do país, escrachando as atrocidades sociais. “Bacurau” é, portanto, o que Sonia enxerga como a chance de chacoalhar a sociedade e abrir os olhos dos espectadores, trazendo um possível ponto de mudança. “Quando as pessoas virem “Bacurau“, que é um filme que se passa no futuro, elas vão se unir de novo, vão entender que a gente pode ter um futuro melhor, que a gente pode começar, que a gente deve se unir. Como sempre, eu sou uma pessoa muito otimista. Quando eu estive no Festival de Cinema de Gramado com “Aquarius“, eu voltei ao Brasil como um país dividido e foram tempos muito tristes para a gente. Então, eu acho que está na hora de a gente consertar tudo isso”, relete.
Não há como saber como o filme, visto como um catalizador do momento repleto de diálogos intergêneros, vai ressoar no público geral. Se a resposta dos espectadores de Gramado deixou alguma pista do que vai ser a partir do dia 29 de agosto, quando entra em no circuito nacional, é de que Sonia Braga talvez esteja certa em manter a sua esperança mais viva do que nunca. Afinal, ela frisa: “Embora tenhamos vidas diferentes, problemas diferentes, só existe uma coisa nesse planeta em comum: a raça humana. E temos que preservá-la, porque se não prestarmos atenção, não haverá futuro”. Agora só resta a atriz e toda a equipe torcer para que a resistência do povo de “Bacurau” transforme-se na de todo mundo.
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