*por Vítor Antunes
O tempo para Murílio Benício neste 2023 acabou por coincidir com efemérides relevantes: os 30 anos em que estreou na TV, na novela “Fera Ferida”, as duas décadas da morte do escritor e dramaturgo Mauro Rasi (1949-2003) e o lançamento do seu segundo longa como diretor, “Pérola”, inspirado na peça teatral de Rasi e com Drica Moraes como protagonista. O primeiro filme dirigido por Murilo Benício foi “O Beijo no Asfalto” (2017), agora vamos conferir “Pérola” e ele já tem dois novos projetos: uma série para TV e mais um longa-metragem, que ainda correm em segredo, mas Murilo nos antecipa que um terá supervisão-geral sua, e outro, contará com seu filho Antônio Benício como co-roteirista. Desmentindo rumores de que estará no remake da novela “Renascer”, Murilo relata que esse burburinho parece ser originado mais por uma vontade do público que a uma da Globo, de maneira imediata, já que o elenco de “Renascer” já está fechado. Sobre a sua relação com a emissora, relata que ainda está contratado e assim permanecerá pelo menos até o ano que vem. Nesta entrevista, ele também comenta de forma divertida sobre o namoro com a jornalista Cecília Malan, correspondente da Globo em Londres: “Ela mora na Inglaterra e eu moro aqui. Namoro à distância é isso, lonjura é isso. Cada hora um está num lugar e é assim que nos vemos”.
Com anos de estrada, Murilo revisita personagens obscuros da carreira, como Arthur Fortuna, protagonista de “Pé na Jaca“, obra cult. Fala também como usou a própria gagueira como recurso cênico em “Fera Ferida” sua primeira novela: “Eu tinha de encaixar uma frase no meio de uma discussão entre as personagens da Cássia Kis e da Giulia Gam e estava apavorado. De tão tenso, gaguejei, o diretor achou que era criação e eu tive de fazer o personagem gaguejar por toda a novela. Foi a segunda vez que exorcizei a gagueira”. A primeira, revela-nos ele, foi quando morava sozinho nos Estados Unidos, aos 18 anos, e com muito poucos recursos. “Meu dinheiro estava acabando e eu não arrumava emprego. Passei uma semana comendo pão e leite”.
A NOUVELLE VAGUE DE BAURU
Mauro Rasi era um dos expoentes do Teatro Besteirol, que ainda que tenha sido criado em São Paulo no final dos anos 1970, transformou-se em fenômeno carioca no início dos anos 1980 com “As 1001 Encarnações de Pompeu Loredo“, peça escrita por ele e por Vicente Pereira (1949-1993). Mauro e Vicente chegaram a ser um casal e, junto aos dois, coletivamente, muitos outros dramaturgos – Miguel Falabella, Luís Carlos Góes (1944-2014) e Maria Lúcia Dahl (1941-2022) são alguns nomes – passaram a escrever peças que compunham esse estilo de dramaturgia, de humor debochado, anárquico, carioca e que era muito pautado no travestimento e nas referências cinematográficas. No fim dos anos 1980, Mauro se afasta do grupo e passou a escrever projetos autorais. Assim nasceu “A Cerimônia do Adeus“, “A Estrela do Lar“, e, em 1995, sua obra de mais destaque: “Pérola”. No teatro, a personagem coube à Vera Holtz. A montagem fez tanto sucesso que permitiu a Rasi comprar um apartamento em Ipanema, na Avenida Vieira Souto.
Foi neste contexto, e mais ou menos naquele ano, que Mauro e Murilo Benício se conhecem. “Ele me chamou para atuar na peça ‘As Tias‘ e fez o convite para eu assistir a montagem de “Pérola“, seu maior sucesso. Me impactou tanto que eu disse a ele que deveria filmar a peça. Decididamente, “Pérola” atravessou a minha alma e fiquei impressionado com a potência do projeto, que eu já entendia como filme. Naquele momento, eu tinha 25 para 26 anos e estava terminando a gravação de “Irmãos Coragem” (1995)”.
Mauro Rasi ter me chamado para atuar no teatro era algo como o Woody Allen me convidar para fazer um filme. Mauro era um autor exponencial do teatro e era de um time que revolucionou a comédia, tanto com o TV Pirata como através das peças de sucesso – Murilo Benício
Ao ver de Murilo, dirigir “Pérola” teve, de excepcional, “o acesso ao universo de Mauro Rasi. Fizemos uma homenagem linda a ele e essa é minha visão do Mauro e as pessoas que conviveram com ele reconhecem isso”. O diretor lastima que hoje em dia muitos poucos conheçam Mauro Rasi. Coincidentemente, além do filme em cartaz, uma peça, que traz Beth Goulart no elenco, “A Cerimônia do Adeus“, também está sendo encenada. Mas, por muitos anos, nada dele ganhou os palcos. Inclusive, quando houve a encenação de “Batalha de Arroz num Ringue para Dois“, um processo judicial recaiu sobre Miguel Falabella e Claudia Raia, conforme Miguel declarou a nós em entrevista no ano passado. “Acho que esses imbroglios são uma coisa triste que acontecem nas famílias [de herdeiros]. Tanto que depois que a Gal Costa (1945-2022) morreu, eu perdi o direito de colocar uma de suas músicas no filme. No caso da família Rasi havia uma questão em relação ao legado e ao espólio. Suas peças não deixaram de ser produzidas por ele ter sido esquecido, mas em razão de ser nada fácil comprar os direitos. Eles chegaram a ficar nas mãos de um familiar que Mauro declaradamente não gostava”, relata. Hoje, os direitos das obras estão sob posse das irmãs de Mauro Rasi. “Precisamos de nomes e obras para mostrar o Brasil. Temos de ter Histórias nossas para contar e temos tantas coisas para falar. Não há motivo para tanta dificuldade para isso. O Brasil tinha que batalhar para rodar um filme atrás do outro e ser uma indústria cinematográfica”.
Nunca vou à praia, mas entraria em parafuso se soubesse que o mar não está mais lá. Perder o Mauro é ficar com o mesmo vazio — Murilo Benício, em 2003
A frase acima foi uma declaração de Murilo tão logo após a morte de Mauro Rasi. “Convivi com ele três anos. Era prazeroso, engraçado estar com ele. Quando soube de sua morte, eu não fazia parte de seu cotidiano, mas pensava que poderia estar com ele, encontrá-lo em Ipanema. Afinal, era um cara leve, que parecia ser puro, tinha algo especial, era um prazer estar do lado. Ele fazia a gente rir. Quando nos dirigia, subia ao palco e lia cada personagem e era de rolar de rir do jeito que ele falava e interpretava as pessoas que estavam no texto”. Segundo Murilo Benício, é sob essa prerrogativa que nasce “Pérola”, o filme. Como forma de homenagear Mauro.
O diretor comenta que “Pérola” foi gravado em um mês. E com todos os desafios de um filme de baixo orçamento “tem dias que a gente acha que ganhou a batalha, tem dias que não. Foram dias de maturação do roteiro, a equipe se encontrando a cada 15. O texto ia sendo escrito e toda a equipe se falava muito, jogando ideias e, quando o roteiro estava perfeito, percebemos que a forma como ele estava escrito não cabia na tela, e assim prosseguimos nesse exercício. É difícil fazer cinema, estou adorando dirigir, mas é difícil. Há a sensação de que a cada novo instante tudo pode ser destruído, como através da inclusão de uma trilha errada pode deteriorar tudo. Eu vivo intensamente quando produzo filme”.
O filme conta a história da matriarca Pérola, pelo olhar e memória do seu filho Mauro. Uma história, acima de tudo, sobre o reencontro de uma mãe e seu filho, com conflitos e sonhos traduzidos na construção de uma piscina no quintal de casa. Um retrato de uma família comum, que briga, faz as pazes, comemora, chora e segue cheia de histórias.
MÚLTIPLO
Além de “Pérola”, Murilo nos antecipou alguns fragmentos de seus novos trabalhos. Um deles é uma série para TV e outro de um filme. “Desde que comecei a dirigir, tinha uma trilogia de filmes a fazer. Já fiz “O Beijo no Asfalto” e “Pérola” e só falta esse. Do longa já estamos fazendo o roteiro, e é um projeto grande. Já havia uma roteirista que me interessava, mas que não podia fazer e achou melhor que houvesse uma curadoria e alguém que lesse sobre o tema. Sugeri meu filho, que fez um bom trabalho e agora estará escrevendo junto a ela. O projeto de série, eu gosto muito e estou fazendo uma espécie de direção artística e de conceito”.
Quando Murilo Benício surgiu na TV, sua primeira novela foi “Fera Ferida” (1993). Na ocasião, ele ainda estava sob tratamento da sua gagueira. “Eu não sei se tem um gago que se cure. Em casa, eu gaguejo e há lugares onde não gaguejo. Na minha intimidade, eu era muito gago e ainda sou com meus pais. Não é algo que recaia em um problema físico. 100% da gagueira é emocional. Em minha primeira novela, eu estava na frente da Cássia Kis e da Giulia Gam depois de varias tentativas em fazer novela. Quando entrei em cena, era um estúdio gelado – no qual é impossivel até sorrir com naturalidade – eu teria que intervir numa discussão acalorada entre as personagens da Cássia e da Giulia. De tão tenso, gaguejei, o diretor achou que era criação e eu tive de fazer o personagem gaguejar por toda a novela. Foi a segunda vez que exorcizei a gagueira”.
A primeira, relembra ele, foi quando morou nos Estados Unidos e teve de aprender a lidar sozinho com a vida: “Estava com 18 anos e queria aprender inglês, estava com pouco dinheiro e sem uma promessa de emprego e lugar para ficar. Fiquei duas semanas em casa de amigos e aluguei um quarto. Procurei vários empregos e não conseguia. Diante da dificuldade, voltar para o Brasil com o discurso do “não deu, vou voltar”, era impraticável. Naquela semana, eu arrumei emprego e aquilo me deu a certeza do quão independente eu era na vida e que e conseguiria me virar sozinho. Foi o meu primeiro exorcismo à gagueira”.
Já estabelecido nos Estados Unidos, liguei para casa e falei sem gaguejar. Meu pai se surpreendeu e perguntou a razão de eu não estar gaguejando. Disse apenas: “É caríssimo ligar daqui” – Murulo Benício
Com tantos trabalhos em televisão, Murilo não define qual trabalho foi o mais malsucedido ou bem aventurado. Há rajados de sucesso no fracasso, bem como o contrário. “Já fiz trabalhos lindos que foram um fracasso e outros que nem tanto e eram sucesso. Entendo que o fracasso não é fracasso quando é bem realizado. ‘Irmãos Coragem” (1995), por exemplo era a coisa mais linda do mundo e estreou às seis da tarde, no horario de verão e no dia 02/01. Não tinha como dar certo. Já “Vira Lata” foi a primeira novela a qual protagonizei, mas o Lombardi me fez imitar um cachorro por semanas, andando de quatro num sofá. Mas é uma novela importantíssima para mim, tenho grande carinho por ela”.
Outro personagem ao qual relembra com carinho é o Arthur Fortuna de “Pé na Jaca” (2006). A novela não foi exatamente uma explosão, mas Arthur tem um grupo de cultuadores. Entre eles, Whindersson Nunes. “Uma amiga estava gravando com o humorista, e meu filho o adorava. Pedi que Whind gravasse um vídeo mandando um beijo para o Pietro e ele gravou… imitando o Arthur!”.
Ante a rumores que estaria na próxima novela da Globo, “Renascer”, Murilo nega que vá estar no novo remake da obra de Benedito Ruy Barbosa. “Parece que é mais uma vontade do público do que uma vontade da Globo. A casa nunca conversou comigo sobre isso. Não sei sequer como surgiu essa história. Em 2024, eu quero produzir as coisas que faço e isso não necessariamente implica que eu saia da Globo. Meu contrato vai até o ano que vem e já gravei “Justiça 2“, mas estou animado com esse novo caminho”, pontua.
Para finalizar, perguntamos para Murilo, qual a função que a arte se coloca e que dá sentido à vida? “Eu nem me considero um artista. É algo muito grande para mim. Mas creio que se passo um dia sem rir de verdade, acredito que é um dia jogado fora. Rir é muito gostoso. A arte mexe comigo nesse lugar que o riso ocupa. Decidi ser ator quando vi Chaplin (1889-1977). Ainda que eu não entendesse nada foi algo que me moveu. Dialogo com a arte nessa suspensão de mundo e é assim que nossa relação se estabelece”.
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