*Por Flávio Di Cola, direto de Veneza
Seria um curioso exercício de imaginação supor a reação do poderoso mercador Marino Contarini – primeiro proprietário do mais fabuloso exemplo da arquitetura gótica florida de Veneza, a Ca’ D’Oro, edificada entre 1421 e 1440 – diante das 350 bijuterias que se espalham pelos salões da Galleria Giorgio Franchetti no interior desse monumento. Para o riquíssimo comerciante que mandou cobrir as paredes do seu palácio com ouro e o mais raro mármore “broccatello”, essas bijuterias confeccionadas com materiais baratérrimos como borracha vulcanizada, celulóide, resinas sintéticas, plexiglas e acrílico soariam como um deboche à sua riqueza e autoridade. Felizmente, o signore Contarini já morreu há 573 anos e podemos nos deliciar tranquilamente com essas pequenas obras-primas de criatividade, engenhosidade e, principalmente, de ilusionismo, mas cujos exemplares vintage criados entre 1920 e 1970 são hoje disputados a tapa em leilões especializados da Europa e Estados Unidos.
“Costume jewelry” no mundo anglo-saxão ou “gioiello fantasia” para os italianos, a bijuteria tem uma história fascinante e que acompanha os altos e baixos da moda e do entretenimento de quase todo o século passado. Ela aparece no início dos anos 1920 como complemento de realce e brilho de algumas criações da alta moda parisiense, principalmente nas maisons Chanel e Schiaparelli. As bijuterias logo se incorporam ao vocabulário dos figurinos do music hall como nas luxuosas apoteoses das Ziegfeld Follies em que as pseudo-jóias precisavam também encher os olhos do público sentado lá no fundo da platéia ou no alto das galerias, chegando a Hollywood para expressar toda a volúpia e dissipação das vampes que tomaram de assalto as telas de cinema e que foram imortalizadas por estrelas como Theda Bara, Gloria Swanson, Pola Negri ou Lya De Putti.
As falências e a penúria generalizadas provocadas pela Grande Depressão dos anos 1930 foram as maiores responsáveis por elevar as bijuterias a um status ainda mais alto. Com as jóias penhoradas, milhões de mulheres mundo afora não se acanharam em se enfeitar com simulacros ostentosos dos seus antigos anéis, broches, colares, braceletes, brincos e tiaras, mas que – ainda assim – garantiam o brilho e mantinham a vaidade em alta. Essa tendência se transmitiu rapidamente para as mulheres das classes menos favorecidas que não só adotaram as bijuterias, como também adoravam vê-las faiscando sobre os corpos das suas estrelas de cinema favoritas, num momento em que Hollywood redobrava o luxo e o esplendor dos cenários e dos figurinos das suas produções para alimentar as massas com imagens de beleza e prosperidade – pelo menos na tela prateada – enquanto o desemprego e a miséria corriam soltos nas ruas.
Fotos (Divulgação)
Assim, os grandes figurinistas dos estúdios – como Walter Plunkett, Adrian ou Travis Banton – passaram a dotar os looks das estrelas com um brilho e um glamour que as tornassem nada menos do que “divinas”, multiplicando engenhosamente o impacto visual de simples bijuterias com o auxílio de filtros e de efeitos de luz. Os vinte anos que cobrem as décadas de 1930 e 1940 equivalem ao apogeu daquilo que se pode chamar de profissionalização máxima do glamour hollywoodiano em que as bijuterias de cena atingiram um grau excepcional de qualidade e beleza graças a joalheiros e artesãos que sabiam adaptar o seu know how às exigências da lente da câmera e ao sofisticado processo de fabricação de estrelas. É desse período eminentemente cinematográfico que se destacam nomes especializadíssimos no “costume jewelry”, como Marcel Boucher, Jonas Eisenberg, Miriam Haskel, Kenneth Jay Lane e, principalmente, Joseff of Hollywood, de cujos galpões (em Culver City, na grande Los Angeles) saíram grande parte das bijuterias de cenas para milhares de filmes da era de ouro de Hollywood.
Fotos (Reprodução)
Maravilhosos exemplares das oficinas de todos eles integram a coleção de Patrizia Andretto Re Rebaudego, iniciada nos anos 1990, e de onde a curadora Rosangela Cochrane selecionou as peças que compõem a exposição “Divine, stage splendor” que é uma das grandes atrações atualmente em cartaz em Veneza. Patrizia afirma que uma das razões pelas quais se interessou por esse tipo de coleção foi exatamente o fato de que essas bijuterias representam o patrimônio cultural e material de uma época difícil e de traumáticas mudanças comportamentais. Condições estas, aliás, que – por sua vez – logo mudariam.
Com o fim da Segunda Guerra, com a recuperação econômica generalizada e a prosperidade nos anos 1950, com o declínio do cinema como provedor hegemônico das fantasias do público e com a retomada do prestígio da alta costura, as bijuterias voltam a ser sinônimas de artefato barato, enquanto o culto às jóias absolutamente autênticas volta com toda a força. Estava decretado o fim do mundo de faz-de-conta dos “gioielli fantasia”. Embora fake e patético na sua pretensão de encobrir o precário ou de iludir, o “costume jewelry” continua vivo no esplendor de filmes e de estrelas que até hoje não foram suplantados.
Serviço:
“Divine-Stage Splendor. Costume Jewelry The Patrizia Sandretto Re Rebaudengo Collection” (Divine-Splendori di Scena. Gioielli Fantasia dalla Collezione di Patrizia Sandretto Re Rebaudengo)
Galleria Giorgio Franchetti Alla Ca’ D’Oro, Veneza.
Até 11 de janeiro de 2015.
*Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul -, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria
Artigos relacionados