Morte de Cid Moreira e as facetas poucos conhecidas do halterofilista, artista plástico e “Brotinho de Taubaté”


Uma das vozes mais emblemáticas da televisão brasileira, que apresentou o “Jornal Nacional” entre 1969 e 1996, na vida pessoal era bastante discreto e poucos sabem que também foi halterofilista e artista plástico, com uma pintura destacada na revista Manchete. Pioneiro na TV, foi o primeiro locutor a aparecer em cores na Globo. Antes, porém, se divertia ao ser chamado de “Brotinho de Taubaté”, pela Revista do Rádio em relação onde nasceu e considerado muito bonito. Mas gostava mesmo de frisar: “sou o caipira de Taubaté”

Morte de Cid Moreira e as facetas poucos conhecidas do halterofilista, artista plástico e “Brotinho de Taubaté”

*por Vítor Antunes

Ele era de uma época em que o jornalista não buscava a fama e, sim, a notícia. Não se permitia protagonismo fora das reportagens, não usava roupas chamativas, vivia pela e para a  profissão. Era também uma era em que o jornalismo sequer era institucionalizado. Não havia faculdades que formassem jornalistas, mas sim vozes que se forjavam na prática, na dicção precisa, no domínio da palavra falada. Cid Moreira (1927-2024), por muito tempo, foi uma dessas vozes. Não apenas o apresentador de telejornal, mas um ícone de uma era que ele ajudou a definir. Sua voz, inconfundível e poderosa, preenchia as salas dos brasileiros como uma presença quase ritualística e também marcada pelo seu “Boa noite”. Ele não apenas lia as notícias, ele as interpretava, as vestia com a solidez que sua época pedia — uma época em que os portamentos da locução eram marcas de estilo e nos transmitia credibilidade. Uma das vozes mais emblemáticas da televisão brasileira. Não falemos apenas do “Jornal Nacional“, programa que por décadas foi seu lar, mas da figura multifacetada. Um “caipira de Taubaté“, como ele mesmo gostava de se definir, que, de maneira inesperada, fez de sua despedida algo maior que um simples adeus.

Poucos sabem, porém, que Cid também era um talentoso artista plástico. Em uma faceta pouco explorada pela mídia, ele se dedicava à pintura, e uma de suas obras chegou a ser destaque na revista “Manchete” no início dos anos 1970. Este lado sensível e criativo contrasta com a imagem que o público conhecia, revelando um homem em constante diálogo entre a arte e a notícia. Cid era também um halterofilista, exibindo uma força física que poucos imaginavam em um locutor, esporte que depois trocou pelo tênis.

Cid Moreira halterofilista, em 1955, quando ainda era locutor d Rádio Mayrink Veiga (Foto: Reprodução/Revista do Rádio)

Leia aqui nossa entrevista com mais histórias de backstage:  “Não conheci o fracasso. O que vou fazer? Alguns já nascem com o negócio para a Lua”, dispara Cid Moreira 

Pedra da Gávea, pintura de Cid Moreira (Foto: Reprodução/Revista Manchete)

A história, quase folclórica, de apresentar o “Jornal Nacional” de bermuda ele mesmo confirmou ter acontecido. Assim como o episódio em que, durante um direito de resposta concedido a Leonel Brizola (1922-2004), teve que ler ao vivo um texto que criticava a própria emissora. Também, sabemos todos que era dele a voz que anunciava o quadro do mágico Mister M, no Fantástico. Sua carreira começou em Taubaté, passou por São Paulo, até alcançar o Rio de Janeiro nos anos 1950, quando ingressou na Rádio Mayrink Veiga. E não era só sua voz que impressionava;  Em uma das raras entrevistas que concedeu, mencionou que, na verdade, sonhava em ser advogado. Chegou a prestar vestibular para Direito em 1955, mas seu destino foi outro.

Cid Moreira: locutor em Taubaté (Reprodução/Instagram)

Cid Moreira: locutor em Taubaté (Reprodução/Instagram)

Seu apelido de “Brotinho de Taubaté” dado pela “Revista do Rádio” em 1966, é apenas um exemplo de como sua beleza também foi parte de seu reconhecimento público. Em 1972, a revista “Manchete” destacou ele e Sérgio Chapelin –  com quem dividiu a bancada do “Jornal Nacional” – como “galãs da notícia”. Cid, com seu jeito discreto e sua fama involuntária, foi chamado de muitas coisas: “Cidão” na Globo, “Touro de Taubaté” e “o homem que ri” na Mayrink Veiga.

ALÉM DO ‘BOA NOITE’

Na televisão, Cid Moreira se tornou uma presença obrigatória. Trabalhou na Tupi, na Excelsior e, antes de chegar à Globo, passou pela TV Rio. Em 1969, Irene Ravache apresentava o “Ultranotícias“, que logo depois virou o “Jornal da Globo” (JG), e já contou com Cid Moreira. Não seria errado dizer que Irene Ravache “substituiu” Cid Moreira. O “Jornal da Globo” daquela ocasião, por sua vez, daria vez ao lendário “Jornal Nacional“. Importante ressaltar que o JG como conhecemos hoje foi o que estreou em 1982. A versão antiga do jornal ficou no ar entre 1967 e 1969, e depois teve uma segunda fase, no fim dos Anos 1970.

O pioneirismo de Cid na tela em preto e branco ou na colorida foi marcante. Em um tempo em que as cores ainda eram novidade, ele se destacou ao ser o primeiro locutor da Globo a aparecer nas transmissões coloridas, em uma época em que até mesmo o uso de roupas era pensado para evitar problemas técnicos — azul, por exemplo, não podia ser usado devido ao chroma key. E também o primeiro a ficar 20 anos num telejornal – recentemente foi ultrapassado pelo próprio William Bonner no Jornal Nacional.

O “Jornal Nacional“, em sua estreia, inclusive, foi transmitido simultaneamente em apenas quatro capitais no seu primeiro ano e para o máximo de afiliadas possível, mas algumas capitais não foram privilegiadas, como Vitória ou Cuiabá. Cid ajudou a transformar o telejornal em uma referência de jornalismo para todo o país. Um país que, naqueles tempos, recebia fragmentos do mundo exterior com dificuldade, como os curtos 10 minutos de filmes jornalísticos da Espanha, pela TVE, assim como pela Asssociated Press e Reuters

Cid Moreira nos Anos 1970 (Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã)

“Em um telejornal, é importante que o apresentador tenha sensibilidade e saiba interpretar a notícia de modo que ela chegue inteira e clara até o telespectador” – Cid Moreira, 1973

Em 1979, o Serviço Nacional de Informações divulgou uma lista de jornalistas que trabalhavam também para o governo. Cid e Chapelin apareciam vinculados ao Ministério da Educação e Cultura (MEC). Apesar de ser monitorado, Cid nada tinha a esconder. O regime militar chegou a elogiar seu trabalho, ainda que o tenha considerado “inexpressivo sob o aspecto da inteligência e cultura”. Em 1975, Cid narrou um documentário que exaltava os 11 anos da “Revolução de 1964” – nas palavras do próprio documentário – destacando a “libertação do Brasil da ameaça comunista”. Seu irmão, Célio Moreira, chegou a tentar seguir seus passos, mas não alcançou o mesmo reconhecimento nacional.

Cid Moreira foi monitorado pelo SNI, ainda que fosse funcionário do Governo (Foto: Reprodução/Arquivo Nacional)

Cid Moreira, o caipira de Taubaté, se despede de milhões de brasileiros que, por décadas, aguardaram sua voz ao final do dia, trazendo as últimas notícias, sempre com aquele seu inconfundível “Boa Noite”. E, assim, sua voz ecoará na memória de uma nação.