Micheli Machado, de “Todas as Flores”, fala sobre feminismo negro e como o racismo afetou sua autoestima


Além de ser a primeira mulher preta da América Latina a ter um especial de stand-up na Netflix, o “Lugar de Mulher”, a atriz vive a Chininha da novela “Todas as Flores”. Micheli, bem como Douglas Silva Zezeh Barbosa, Xande de Pilares e Mumuzinho compõem um núcleo negro, numa proposta inclusiva. Além disto, a atriz fala sobre ser uma das primeiras assistentes de palco negras de programas infantis – era angelicat, dos programas de Angélica – e como enfrentou o preconceito desde criança: “Lembro de crescer ouvindo das amigas de minha mãe coisas do tipo: ‘Você tá louca, você tá dando uma esperança que essa menina não merece ter. Essa menina é preta, feia, pobre. Nunca ela vai ser alguma coisa’. E isso afetou diretamente em minha autoestima, precisando de terapia para conseguir compreender”

*Por Vítor Antunes

Micheli Machado vive Chininha em “Todas as Flores”, novela de João Emanuel Carneiro, que vem encontrando muito sucesso de audiência e repercussão nas redes sociais. A trama que tem Sophie Charlotte como protagonista é, atualmente, a novela mais vista da platatorma e ocupa o segundo lugar entre os 10 programas mais assistidos do player. A atriz, que foi uma das primeiras assistentes de palco de programas infantis negras, fala da importância de seu pioneirismo e como encontrou resistências em seu início de carreira por esta razão. Além disto, ela pertence à nova geração de comediantes mulheres. Segmento que, majoritariamente masculino, sempre foi alvo de preconceitos. É a primeira mulher preta da América Latina a ter um especial de stand-up na Netflix, o “Lugar de Mulher“. Diante disso, perguntamos à Micheli como ela enxerga a inserção das mulheres pretas no humor. Segundo ela, há uma transformação, que “acontece em passos lentos, mas ela está acontecendo. Não podemos parar de lutar pela representatividade de mulheres pretas no humor e nas telas”.

Eu lembro de crescer ouvindo das amigas de minha mãe coisas do tipo: ‘Você tá louca, você tá dando uma esperança que essa menina não merece ter. Essa menina é preta, feia, pobre. Nunca ela vai ser alguma coisa’. E isso afetou diretamente em minha autoestima, precisando de terapia para conseguir compreender – Micheli Machado

Micheli Machado. Um dos destaques de “Todas as Flores” (Foto: Jaime Leme)

Micheli Machado. Atriz é afirmativa na questão negra (Foto: Jaime Leme)

 

FLORES DE SUCESSO

Todas as Flores”, por muito tempo, foi tratada como sendo uma das novelas das 21h a substituir “Pantanal”. Nesta fase, ainda se chamava “Olho por Olho”, mesmo título que uma antiga trama da extinta Manchete – já abordada recorrentemente, aqui, no Site Heloisa Tolipan – e nome muito semelhante a uma trama global, de 1993. Talvez esta tenha sido uma das razões que influenciou na mudança de no nome da novela, quando a mesma migrou para o streaming. Protagonizada por Sophie Charlotte, a novela tem logrado mais sucesso e repercussão que “Travessia”, novela das 21h, exibida na TV aberta. Um núcleo importante do folhetim é o de Mauritânia (Thalita Carauta), que vem roubando a cena. A personagem de Carauta é irmã de Chininha, vivida por Micheli.

Alma de artista e parte de um triângulo amoroso composto pelos personagens de Xande de Pilares e Mumuzinho, Chininha vai embora de casa para morar com um novo homem que jura ser produtor de cinema e seu novo amor, Joca (Mumuzinho). A atriz apresenta a sua personagem da seguinte maneira: “Chininha é uma jovem moradora de Gamboa, no Rio de Janeiro, que sonha em ser atriz (…) Na trama, a personagem compõe o núcleo de humor, ao lado de grandes referências, como Zezeh Barbosa, Mumuzinho, Xande de Pilares, Thalita Carauta, Douglas Silva e Mary Sheila”.

A novela está inserida num contexto muito especial e moderno que é o de ser lançada no streaming e em temporadas – diferente daquela que inaugurou o formato, “Verdades Secretas II”, cujos episódios eram liberados no Globoplay de maneira semanal e em temporada única. Segundo Micheli, “Essa revolução na teledramaturgia é algo importante e positivo para o mercado. O aumento nas produções de streaming motiva os artistas a estarem qualificados em ambos segmentos, o que acarreta em uma diversidade de conteúdo para diferentes públicos. E isso traz uma bela transformação, pois valoriza os artistas que são amplos e conseguem atuar em diversas áreas”.

Pretendo ter a oportunidade de trabalhar em todas as vertentes que a arte me permite. Enxergo isso como um ponto positivo para a minha carreira, também sou realizada por conquistar reconhecimento com o meu trabalho em diferentes projetos,  formatos e gêneros – Micheli Machado

Micheli Machado. Atriz faz parte do núcleo da Gamboa na trama do streaming global (Foto: Jaime Leme)

PRETAGONISMOS

A palavra “Pretagonismo” é um neologismo pelo militante da causa negra Rodrigo França e lançado no livro homônimo, escrito em parceria com Jonathan Raymundo. Segundo os autores daquele livro, a palavra traduz “aquilo que foi negado às pessoas negras durante séculos: o domínio sobre suas próprias histórias”. Micheli Machado começou a trabalhar na TV muito jovem, quando era assistente de palco da apresentadora Angélica nos programas “Casa da Angélica” (SBT) e “Angel Mix” (TV Globo). Casada há 20 anos com o também ator Robson Nunes, Micheli é mãe de Morena, de 10 anos. Diante de uma sociedade na qual as negritude precisa se reafirmar a todo tempo, como enfrentar o mundo enquanto mulher preta? Segundo a atriz, um de seus propósitos enquanto mãe é “criar a Morena para se tornar uma mulher empoderada e com boa autoestima, além de estar preparada para enfrentar preconceitos e racismos”.

A atriz prossegue dizendo esforçar-se para fazer com que sua filha tenha “consciência da preta linda que ela é. Tenho muita sorte por Morena ser muito empoderada. Ela sabe que pode se tornar o que quiser e acredito que isso tenha sido uma consequência de sempre ter apresentado a ela mulheres pretas cientistas, artistas, autoras e cantoras”. Com efeito, e tomando por base a teledramaturgia, por muitos anos a presença de artistas negros nas novelas foi invisibilizada ou ausente. Mesmo personagens que deveriam ser interpretadas por atrizes negras acabaram por ser embranquecidas, em razão do diminuto espeço concedido a pessoas pretas. A “Gabriela” da novela homônima, ainda que tivesse características enegrecidas, foi interpretada por Sônia Braga e Juliana Paes, nas versões de 1975 e 2012 da trama. Em ambos os casos recorreu-se ao whitewashing para tornar as atrizes brancas numa “mulata bonita, cor de canela”. Bibliografias apontam, inclusive, que Gal Costa chegou a ser considerada na escalação da trama setentista para o papel principal.

Quanto às mulheres humoristas, elas próprias já eram encaixadas em arquétipos, desde o teatro de revista aos programas humorísticos de TV: Ou eram excessivamente sexualizadas, ou tinham sua inteligência diminuída, ou a piada era pautada justamente sobre uma possível ausência de beleza. Em muitas das vezes, as moças não eram nem vistas como engraçadas, quando comparadas a humoristas homens da mesma geração . No caso das mulheres negras, além das questões anteriormente tratadas , havia, também, o racismo por sobre seus ombros. Atrizes, como Marina Miranda (1930-2021), eram forçadas a repetir estereótipos preconceituosos na representação de negras. Por anos, Marina foi a única negra no gênero. O primeiro troféu que recebera, segundo ela própria, foi em 2010.

Marina Miranda. Uma das poucas comediantes negras. Atriz precisava reforçar a estereotipação para existir artisticamente (Foto: Reprodução/TV Globo)

Para uma mulher, os obstáculos para ingressar no universo artístico já são muitos, e quando falamos de mulheres pretas, eles se multiplicam. Não acho que deveria haver tanta luta para chegar aonde sonha, mas sempre falo que para todas as meninas pretas, que o importante é não desistir e sempre acreditar no seu talento – Micheli Machado

Ainda sobre esse tema, Micheli prossegue dizendo que o assunto anterior, no que tange às humoristas negras, elas, recorrentemente eram encaixadas em piadas ou situações estereotipadas. Você tem visto avanço e inclusão de negros na comédia? “Antes de me entregar ao humor, sempre via como os  grupos eram formados apenas por homens ou tinham, no máximo, uma mulher. Então, infelizmente, era natural assistir peças com conteúdos machistas, racistas e colocando a mulher sempre como um gênero inferior. O mercado está começando a perceber que estamos além do estereótipo e começando a incluir artistas negros e mulheres em personagens diversificados, o que é muito positivo para conseguirmos dialogar e compreender que não tem mais sentido a recorrência em piadas ou situações com certos estereótipos que apenas reforçam o preconceito e a necessidade da inclusão”.

Micheli Machado aposta no letramento racial como forma de combater o racismo (Foto: Jaime Leme)

TOQUE “ANGELICAL”

Em tratando-se de inclusão, Micheli foi uma das primeiras assistentes de palco em programas infantis a ser negra. Não era algo comum naquela época. Nos programas de Xuxa, por exemplo, todas eram louras e a proposta era que elas se assemelhassem à apresentadora. Somente nos EUA foi haver paquitas pretas. No programa de Angélica, ainda na Manchete, havia uma brecha maior para outras etnias. Tanto que a Geovanna Tominaga, oriental, foi uma das moças a auxiliar a dinâmica do palco. A primeira negra nesta função foi a atriz Camila Pitanga, que foi substituída por Tábita Keila. Em 1993 a atual esposa de Luciano Huck transferiu-se para o SBT. Micheli Machado entrou para o grupo de assistentes da apresentadora em 1994 e permaneceu no cargo até 1999, quando Angélica já estava na TV Globo.

Angélica, Juliana Silveira, Geovanna Tominaga e Micheli Machado. As angelicats no SBT (Foto: Divulgação/SBT)

Como uma das músicas da época, “Angelical Touch” – toque angelical – a chegada da hoje atriz à TV foi um grande desafio. Não apenas pelo fato de ser negra, mas também, em razão de sua idade: 12 anos. Segundo a atriz, haver iniciado na carreira assim tão jovem não foi algo traumático “Eu era uma criança, então eu me divertia muito enquanto fazia o meu trabalho. Tenho muito orgulho até hoje pela minha trajetória até aqui. Acredito na importância da representatividade para inspirar mais mulheres pretas a ocuparem espaços que antes não era possível. Era incrível ser Angelicat e trabalhar ao lado de artistas que sempre admirei, como a Angélica, tínhamos uma ótima relação e ela era muito legal com todas as angelicats”.

Não foram poucas as angelicats  a obterem sucesso em suas carreiras. Além das já citadas Camila Pitanga e Micheli Machado, constam Juliana Silveira, Giovanna Antonelli e Joana Limaverde. A ancestralidade negra aponta que o caminho ocupado por um negro hoje, só existe por que foi sido carpido por outro, no passado, que inventou uma estrada no que era mato. Precisou haver a Marina Miranda para que houvesse Micheli, bem como é preciso que haja Micheli para haver Morena. Ainda que uma palavra masculina, o futuro é uma mulher. Só ele é capaz de dar vida à vida.