Mel Lisboa estreia duas peças de teatro, revisita carreira e hipersexualização de seu corpo na TV


Após o fim de “Cara e Coragem”, Mel Lisboa volta à cena com duas montagens teatrais. Em “Misery”, um suspense baseado na obra de Stephen King e adaptado por Cláudia Souto e Wendell Bendelack, ela faz par com Marcello Airoldi. Já em “Madame Blawastsky – Amores Ocultos” dá vida à Helena Blawatsky, mãe da teosofia. A peça é um monologo. Na TV desde o início dos Anos 2000, revelada pela minissérie “Presença de Anita”, Mel foi alvo de manchetes excessivamente sensuais/sexuais quando a personagem estava no ar. Duas décadas depois, lança um olhar para aquela fase da vida. Ainda que seja grata à projeção que a personagem lhe deu é crítica à forma com a qual fora tratada, especialmente pela imprensa. “Essa hipersexualização afetou meu psicológico e saúde mental. Não foi separada uma coisa da outra, de forma que passei a ser vista de uma forma que não sou (…) Conheço a cicatriz que deixou em mim”

Mel Lisboa estreia duas peças de teatro, revisita carreira e hiperssexualização de seu corpo na TV

*por Vítor Antunes

Depois de haver sido um dos destaques de “Cara e Coragem“, novela das 19h encerrada no início do ano, Mel Lisboa entrará numa maratona teatral. A atriz fará uma peça chamada “Misery”, que além dela, conta com o ator Marcello Airoldi nos papeis de destaque, e, além desta, um monólogo sobre a escritora e teósofa Helena Blavatsky (1831-1891) chamado “Madame Blavatsky – Amores Ocultos“. Nesta última, Mel propõe uma discussão sobre a liderança e o empoderamento feminino, visto que as mulheres, especialmente na época em que Blavatsky viveu, eram brutalmente silenciadas. “Se não fosse ela teríamos uma história diferente. Vivendo o momento atual e podendo falar dela, isso nos permite vê-la de maneira mais generosa”. Em observância à transcendentalidade de Blavatsky, Mel diz como interpretá-la dialoga com seu – quase – ateísmo: “Tem a ver com o fato de eu não ter uma religião, uma crença em Deus. Mas falo na peça que há algo para além da compreensão humana”.

Mel, assim como outras atrizes que se imortalizaram por um papel específico ainda que tenham feito outros de equivalente importância, fala sobre Anita, personagem da minissérie “Presença de Anita“, de 2001. Vinte e três anos depois de exibida, a série ainda gera discussões e acaba norteando a abordagem à atriz e, sob algum aspecto, ofuscando seus trabalhos novos. “É também responsabilidade da própria imprensa que fala da mesma coisa o tempo inteiro e não deixa esquecer”. Sobre a minissérie, a atriz observa, com o distanciamento do tempo, como lidou com a hipersexualização do seu corpo e de seu trabalho.

A hipersexualização do corpo foi algo que afetou meu psicológico e saúde mental. Não se separa uma coisa da outra. Passei a ser vista de uma forma que não sou e a me defender de uma avalanche de coisas que são impossíveis de se lutar contra. Eu sei a cicatriz que deixou em mim. Conheço e tive que trabalhar para entender esse processo e de forma independente da minha vontade – Mel Lisboa

Mel Lisboa em dupla empreitada teatral. Atriz estará com duas peças em cartaz, em São Paulo (Foto: João Miguel Junior/TV Globo)

EMBRUXADAS

Uma das peças que Mel Lisboa encena é “Misery”. Um suspense de Stephen King traduzido e adaptado para o teatro por Claudia Souto Wendell Bendelack – respectivamente autora e colaborador de “Cara e Coragem“. Na montagem encenada no Teatro TUCA, Marcello Airoldi vive Paul Sheldon, um escritor, que após sofrer um grave acidente de carro, é resgatado pela enfermeira Annie Wilkes (Mel). “Esta é uma peça que a gente se diverte muito fazendo, ainda que seja trabalhosa, longa, exaustiva. É uma maratona, mas eu gosto de fazer. A gente elabora tensões e distensões, deixando o público dentro da história e num ambiente cada vez mais denso, a ponto de atingir o clímax. Minha personagem é complexa e oferece à plateia subjetividades, sentimentos conflituosos”. A outra montagem da atriz, é um monólogo, no qual dá vida à Helena Blavatsky (1831-1891). Mel Lisboa diz que esta é uma personagem “interessantíssima, riquíssima e polêmica. Ao mesmo tempo, com um olhar distanciado, entendemos o porquê de ela ter sido apagada da História”. Um artigo do professor Antonio Gasparetto Junior assinala que a a teoria blavastskiana reza que “o materialismo e a superstição desvirtuavam o grande público, atrapalhando o conhecimento dos povos ocidentais. Por outro lado, combate o dogmatismo irracional do cristianismo e de vários credos, estimulando a liberdade de pensamento e de pesquisa”. Mulheres que questionavam o status quo eram marginalizadas, ou vistas como bruxas.

Lisboa acredita que esta razão torna-se “muito clara quando percebemos que ao mesmo tempo ela tem importância fundamental na história do conhecimento. Contar sua História é ter o privilégio de ver que uma pessoa que nunca ouviu falar da teósofa possa ter interesse e, conhecê-la”. E prossegue: “Entendendo a importância e a relevância que ela teve, se não fosse Blawatsky teríamos uma História diferente. Vivendo esse momento e falar sobre ela, permite que consigamos vê-la de uma forma mais generosa”.

Passamos a olhar essas mulheres de uma outra forma. Temos um outro olhar, menos  viciado nos preconceitos que estão enraizados na sociedade. O machismo passa por uma necessidade de desconstrução diária de homens e mulheres. O machismo faz parte do modus operandi da sociedade. Precisamos descontruir paradigmas. A gente passa por processos na sociedade que nos fazem ter mais atenção para com as pessoas minorizadas entre eles a mulheres – Mel Lisboa

Ainda que a peça trate um tanto sobre questões transcendentais e este seja um tema muito sedutor à atriz, ela tende mais ao ateísmo. “Classificar-me como ateia talvez seja uma afirmação definitiva demais. Afinal, sou filha de astróloga [a também professora e escritora Cláudia Lisboa], então fui criada num outro ambiente. O meu ateísmo tem a ver com o fato de eu não ter uma religião, uma crença em Deus, mas crer que há algo mais além da compreensão. Eu acredito nisso, ainda que saiba da minha insignificância e que não sou dona da verdade. Só vivo de uma forma um pouco mais pragmática.

Mel Lisboa é Madame Blavatsky na peça homônima (Foto: João Caldas)Canon 5DIV

ANITA: PRESENÇA OU SOMBRA?

No início dos Anos 2000, mais precisamente em 2001, Mel Lisboa tornou-se famosa para o grande público. Foi a personagem título da minisssérie “Presença de Anita“, de Manoel Carlos. O papel da adolescente sensual que punha a cidade a seus pés é até hoje falado. E cabe aí muito questionamento. Tanto Mel Lisboa como Lucélia Santos são atrizes que viveram personagens icônicas na TV. A personagem de Mel já tem 23 anos. A de Lucélia, 47. E ainda assim, norteiam qualquer entrevista feita a elas. “Há um tanto de responsabilidade da própria imprensa, que fala da mesma coisa o tempo inteiro e não deixa esquecerem. Há toda uma geração [depois destes papéis]. Eu mesmo tenho filhos, há jovens na faculdade que eu convivo e que não me conheciam pela Anita, mas por “Coisa Mais Linda” – série do Netflix – ou por uma peça. Mas este é um processo retroalimentado. Sou grata por minha trajetória, vivi algo que é um privilégio para pouquíssima gente”. A atriz, ainda que revele-se grata à personagem da trama manequiana, diz não incomodar-se em falar sobre a menina da minissérie, mas de ter, necessariamente, que tratar dela. “Não que seja algo que me sufoque, mas as pessoas não a deixam [no passado]”

Faço teatro com dificuldade e luto para levar gente para para assistir montagens teatrais. E, nas entrevistas que dou, a manchete é justamente a Anita. Há alguém que possa se interessar pela Blavatski, mas tem a Anita chegando na frente – Mel Lisboa

Sobre a personagem, partindo da perspectiva atual, perguntamos à sua intérprete como ela vê a hipersexualização da qual ela foi alvo. Afinal, manchetes demasiadamente sensuais/sexuais apresentavam Mel assim, misturando a personalidade da atriz à de sua personagem. “Se formos olhar hoje, e de forma não anacrônica, Anita é uma personagem hipersexualizada, ainda que tivesse atitudes e fosse dona de si. Era uma mulher que provocava, destruía famílias, além desse pano de fundo da sexualidade e da sexualização. É algo que hoje, aos 41 anos, lido melhor. Embora saiba a cicatriz que deixou em mim. Conheço-a e tive que trabalhar para entender esse processo, e de forma independente da minha vontade”.

Mel Lisboa sobre Anita: “é uma personagem hiperssexualizada, ainda que tivesse atitudes e fosse dona de si” (Foto: Divulgação/TV Globo)

 

DESTA VIDA DESTA ARTE

Uma atriz de multiplataformas, perguntamos à Mel como ela vê o fechamento de espaços teatrais no Brasil. Tornou-se público que a Sala Marília Pêra, no Leblon, Rio, dará vez a um templo religioso. Outros espaços anteriormente voltados à cultura, como cinemas,  transformaram-se em farmácias, templos, mercados. “O Brasil é um país que consome cultura estrangeira e desvaloriza a nacional, não tendo por hábito valorizar a própria cultura. Evidente que há quem valorize e prestigie. Mas me parece que tem algo a ver com essa síndrome de vira-lata de não credibilizar o que é brasileiro. Mas vejo que há uma mudança de comportamento da sociedade. Acredito plenamente que o teatro não acabará nunca. Ao longo dos anos, com crises e em momentos mais tranquilos o teatro permaneceu. Enquanto houver vida haverá teatro. É algo insubstituível. Quando vejo teatro ou cinema fechados eu sofro, mas também quando há teatros sendo abertos e eu celebro. Precisamos entender que deve haver política de incentivo à cultura, algo que deve nascer nas escolas. A população merece ter uma sociedade crítica, analítica, com opção e escolhas”, diz.

Fazendo um trocadilho com a primeira novela da atriz, “Desejos de Mulher“, perguntamos à Mel qual do seu maior desejo hoje: “É que haja um bem estar amplo, que se expanda para a sociedade. Almejo haver uma sociedade, onde passamos estar mais juntos, onde haja um bem estar social amplo, saúde total e integral, psicológica e financeira”, finaliza.